Qualquer modo de ver a realidade é necessariamente limitado. Estas são algumas das histórias que definem o meu olhar.
terça-feira, 31 de julho de 2018
quarta-feira, 25 de julho de 2018
Motins
Provavelmente é impossível, para as pessoas que viveram e prosperaram num determinado sistema social, imaginarem-se na pele daqueles que, nunca tendo podido esperar nada desse mesmo sistema, encaram a destruição do sistema sem receio especial.
Ando a ler - Submissão, de Michel Houellebecq. Uma sátira política, que imagina uma situação em que um partido islâmico vence eleições em França em 2022.
O autor foi já acusado de islamofobia, mas não considera esta obra uma provocação. Na sua opinião é uma evolução muito provável.
segunda-feira, 23 de julho de 2018
Os Ismaelitas e "Os Lusíadas"
Aga Khan IV descende do profeta Maomé. É o líder espiritual de 15 milhões de fiéis muçulmanos, xiitas ismaelitas, 10 mil dos quais vivem em Portugal, comunidade que doa ao Imamato (que ele gere), cerca de 10 a 12% do que ganha.
É um dos homens mais ricos e mais influentes do mundo. Dizem que a sua fortuna ronda os 14 mil milhões de dólares. Está prestes a estabelecer residência em Lisboa. Será o novo sr. Gulbenkian.
Com funções múltiplas e muito além da orientação religiosa, Karim Aga Khan tem a seu cargo a educação cívica da comunidade, que o adula. Significa isso cuidar do seu bem-estar e guiá-los no sentido de criarem os seus próprios meios de subsistência. Terá dito: “Os meus deveres são bem mais latos que os do Papa!".
Luís de Camões, nos Lusíadas (1572) no CANTO I, via-os assim:
1
As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
2
E também as memórias gloriosas Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
...
3 ...
4 ...
5 ...
6 ...
7 ...
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco oriental, e do Gentio,
Que inda bebe o licor do santo rio;
domingo, 22 de julho de 2018
Vidas difíceis - 2
1:
28 anos. Solteira. Tem uma filha de cinco anos. Desempregada. 12 º ano, sem reprovações.
Tem consumos tóxicos desde a adolescência. Em 2015 esteve presa por não ter cumprido o trabalho comunitário que lhe tinha sido imposto. Depois, viveu na rua durante muito tempo. Desde Novembro que está a viver com os pais.
De acordo com a mãe, tem estado isolada no sótão, pouco fala com os familiares e o seu discurso é centrado em temas místicos - bruxas, anda a ler livros de São Cipriano. Não faz refeições com a família, tem comportamentos bizarros (ex: quando defeca, limpa-se a toalhas em vez de a papel higiénico), fala sozinha e não faz a sua higiene.
Não colaborante. Aspecto muito mal cuidado. Perplexa. Responde telegraficamente. Refere sono e apetite mantidos. Impossível apurar actividade delirante. Pesquisa de drogas de abuso na urina, negativa.
2:
28 anos. Solteiro. Vive com os pais. Trabalha numa carpintaria. Tem o 12º ano. Foi já seguido por psicólogo por ansiedade relacionada com problemas familiares.
Desde há um ano que nota agravamento - maior frequência de crises de pânico: sem motivo aparente, o coração acelera, descontrola a respiração, pensa que lhe vai dar qualquer coisa! Um ataque cardíaco!... As crises duram cinco a dez minutos e ultimamente têm sido diárias. Refere que: "escuta muito o seu corpo!"
Tem de fazer uma formação¸ e não consegue, por receio de ter nova crise.
3:
É solteira e vive com os pais. Tem um irmão a estudar em Lisboa. Tirou um curso no Politécnico. Trabalha para uma empresa, por catálogo.
É seguida em Psiquiatria por síndrome depressivo. Tem história de intoxicações medicamentosas voluntárias e teve internamento recente em Psiquiatria para resolução de conflito familiar.
Voltou a casa e, durante o fim-de-semana, envolveu-se em querelas com os pais e com o irmão. Ontem à noite, num episódio em que terá provocado a mãe, o pai perdeu o controlo e “tentou estrangulá-la”. Ao fugir, caiu de um muro. Diz ainda que o pai lhe deu um pontapé.
Depois, ligou para o 112. A GNR tomou conta da ocorrência e o INEM trouxe-a ao SU. Diz não ter condições para voltar para casa.
Está orientada e colaborante. Humor eutímico, sem evidentes sinais de ansiedade. Discurso espontâneo, fluente, pautado por interpenetração de temas e redundâncias, centrado no seu ambiente familiar, mas coerente e lógico. Sem alteração do timbre ou ritmo. Nega pensamentos de morte ou ideação suicida. Crítica preservada.
A mãe encontra-se neste SU. A doente diz não querer vê-la, mas dá-me autorização para conversar com ela. Pede-se colaboração do Serviço Social
4:
58 anos. Solteiro. Sem filhos. Vive só. Trazido pela GNR.
Refere-se que deixou de ir almoçar ao Centro de Dia e que causa desacatos na via pública: “manda bocas” na Praça, destrói as coisas que lhe dão e que trata mal as pessoas. De noite, anda de um lado para outro e os comerciantes queixam-se de insegurança.
Tem diagnóstico de esquizofrenia e dependência de álcool de longa data. Teve o último internamento em 2002. Sem acompanhamento actual em consulta externa da especialidade. O Médico de Família tem-lhe passado receitas.
Tem aspecto e vestuário pouco cuidados. Comportamento desorganizado. Verborreico, com discurso pouco perceptível. Humor irritado. Provável actividade alucinatória auditiva. Ideias delirantes de teor persecutório e místico, pouco sistematizadas. Não verbaliza ideias autolíticas. Sem qualquer insight.
Em risco para a sua integridade e a de terceiros.
5:
45 anos. Tem o 8º ano (sem retenções). Vive com companheira e um filho de 15 anos. Reformado após um AVC que lhe causou hemiparesia direita e afasia. Necessita de apoio na higiene. Alimenta-se por mão própria.
Dada a limitação na linguagem, a história é contada pela esposa, que é a principal cuidadora. Refere frequentes episódios de heteroagressividade: “anda sempre aos murros pela casa, atira copos, exalta-se, grita!" Desconfia dela. "Acha que tem amantes!". Refere consumos etílicos regulares de 1 garrafa de vinho por dia + 1 copo de aguardente, que o doente minimiza, mostrando-se defensivo na pesquisa de história tóxica.
Está colaborante e orientado. Aspecto cuidado. Postura adequada. Calmo. Claudica do membro inferior direito. Afasia. Humor eutímico, nega ideação autolesiva.
Ideias de teor celotípico em relação à esposa (sobrevalorizadas? delirantes?).
3:
É solteira e vive com os pais. Tem um irmão a estudar em Lisboa. Tirou um curso no Politécnico. Trabalha para uma empresa, por catálogo.
É seguida em Psiquiatria por síndrome depressivo. Tem história de intoxicações medicamentosas voluntárias e teve internamento recente em Psiquiatria para resolução de conflito familiar.
Voltou a casa e, durante o fim-de-semana, envolveu-se em querelas com os pais e com o irmão. Ontem à noite, num episódio em que terá provocado a mãe, o pai perdeu o controlo e “tentou estrangulá-la”. Ao fugir, caiu de um muro. Diz ainda que o pai lhe deu um pontapé.
Depois, ligou para o 112. A GNR tomou conta da ocorrência e o INEM trouxe-a ao SU. Diz não ter condições para voltar para casa.
Está orientada e colaborante. Humor eutímico, sem evidentes sinais de ansiedade. Discurso espontâneo, fluente, pautado por interpenetração de temas e redundâncias, centrado no seu ambiente familiar, mas coerente e lógico. Sem alteração do timbre ou ritmo. Nega pensamentos de morte ou ideação suicida. Crítica preservada.
A mãe encontra-se neste SU. A doente diz não querer vê-la, mas dá-me autorização para conversar com ela. Pede-se colaboração do Serviço Social
4:
58 anos. Solteiro. Sem filhos. Vive só. Trazido pela GNR.
Refere-se que deixou de ir almoçar ao Centro de Dia e que causa desacatos na via pública: “manda bocas” na Praça, destrói as coisas que lhe dão e que trata mal as pessoas. De noite, anda de um lado para outro e os comerciantes queixam-se de insegurança.
Tem diagnóstico de esquizofrenia e dependência de álcool de longa data. Teve o último internamento em 2002. Sem acompanhamento actual em consulta externa da especialidade. O Médico de Família tem-lhe passado receitas.
Tem aspecto e vestuário pouco cuidados. Comportamento desorganizado. Verborreico, com discurso pouco perceptível. Humor irritado. Provável actividade alucinatória auditiva. Ideias delirantes de teor persecutório e místico, pouco sistematizadas. Não verbaliza ideias autolíticas. Sem qualquer insight.
Em risco para a sua integridade e a de terceiros.
5:
45 anos. Tem o 8º ano (sem retenções). Vive com companheira e um filho de 15 anos. Reformado após um AVC que lhe causou hemiparesia direita e afasia. Necessita de apoio na higiene. Alimenta-se por mão própria.
Dada a limitação na linguagem, a história é contada pela esposa, que é a principal cuidadora. Refere frequentes episódios de heteroagressividade: “anda sempre aos murros pela casa, atira copos, exalta-se, grita!" Desconfia dela. "Acha que tem amantes!". Refere consumos etílicos regulares de 1 garrafa de vinho por dia + 1 copo de aguardente, que o doente minimiza, mostrando-se defensivo na pesquisa de história tóxica.
Está colaborante e orientado. Aspecto cuidado. Postura adequada. Calmo. Claudica do membro inferior direito. Afasia. Humor eutímico, nega ideação autolesiva.
Ideias de teor celotípico em relação à esposa (sobrevalorizadas? delirantes?).
segunda-feira, 16 de julho de 2018
Alguns humanos
A EMANAÇÃO
Contam os sábios tibetanos que o Inferno é dividido em 18 departamentos,
dos quais oito insuportavelmente frios e dez insuportavelmente quentes. Esta história
começa num dos departamentos menos quentes, onde dois condenados puxam uma
carroça cheia de blocos de pedra. Um tinha sido um salteador que assaltava
caravanas nas estepes de Changtang, e era forte como um touro. O outro, magro e
esquálido, tinha sido monge no mosteiro de Takpu, em Naksho Driru, e foi
parar ao Inferno porque se esmerava em exigir dos outros o comportamento que
ele mesmo nunca conseguira ter.
Os dois infelizes esforçam-se para fazer avançar a
carroça, mas a coisa vai mal. A todo instante o monge tropeça e cai, exausto, e
o seu companheiro é obrigado a parar para ajudá-lo, interrompendo o trabalho. As
pedras são usadas para construir novos alojamentos para os recém-chegados ao
Inferno, que nos últimos tempos tem recebido cada vez mais gente. Não há
moradias para todos e o Rei Sinje, o Senhor dos Mortos, ordenou que os condenados
trabalhassem a dobrar para reduzir o défice habitacional. Os capatazes estalam
os seus chicotes de fogo nas costas do monge, urram e gritam, mas ele mal se consegue
mexer, coberto de sangue e poeira.
Atormentado com tanto ver o seu companheiro sofrer, o ladrão
deixa de puxar a carroça e fica em silêncio, inerte. O capataz com cabeça de
cachorro, aproxima-se e ameaça-o com um porrete cheio de pregos. O ladrão diz
que só voltará a trabalhar se soltarem as correntes que prendem o seu
companheiro à carroça, pois assim ele poderá puxá-la sozinho e tudo andará mais
rápido. O capataz, enfurecido, grita que não recebe ordens de condenados, e esmaga
o crânio do ladrão com o porrete.
Como se sabe, no Inferno tibetano a danação não é eterna. Lá,
é possível morrer e renascer noutro lugar. E é exactamente o que acontece com o
ladrão, cuja compaixão faz com que ele reencarne com o nome de Li Xun, numa
pequena aldeia no sul da província chinesa de Quinghai.
Como ele ainda tem muitos crimes para purgar, o destino se
encarrega de que ele se torne um burocrata e leve uma vida enfadonha e
repetitiva.
… … …
É assim que começa o sexto conto, deste livro de contos, todos
eles sublimes.
domingo, 15 de julho de 2018
A dominância dos teimosos
Há uns meses, um amigo aconselhou-me o livro “Skin in the Game”. O segundo capítulo – O mais intolerante vence: A dominância da minoria dos teimosos”, deu-me luz sobre como se propagaram (e propagam) muitas das teorias que regem o Mundo.
A principal ideia por detrás de um sistema complexo é que o conjunto se comporta de modo não previsível pelos seus componentes e que as interacções são mais importantes que a natureza das suas unidades.
Estudar individualmente o comportamento de uma formiga, nunca nos irá dar uma clara indicação do como o formigueiro funciona. É necessário olhar para uma colónia de formigas como uma colónia de formigas e não como um conjunto delas. A isto chama-se uma propriedade “emergente” do todo, na qual as partes e o todo diferem, porque o que interessa são as interacções entre as partes.
Uma das suas regras é a "Regra da Minoria": Se um certo tipo de minoria intransigente – com significativo “skin in the game” (ou, melhor, “soul in the game”) - atingir um pequena percentagem da população - 3 a 4%, pode fazer com que toda a restante se submeta às suas preferências.
Um exemplo desta complexidade atingiu o autor, quando ajudava um barbecue em Nova York.
Estavam os anfitriões a desempacotar as bebidas, quando um amigo que só consome alimentos “kosher”, se aproximou para o cumprimentar. O autor ofereceu-lhe uma limonada, na certeza de que ele a iria rejeitar. Mas, para seu espanto, ele bebeu o líquido, enquanto outra pessoa comentou: “Aqui, todas as bebidas são kosher!”. Olhou para o rótulo da garrafa e, no fundo, tinha um pequeno símbolo – um U envolto num círculo, indicando que era kosher. O símbolo só é detectado por aqueles que necessitam de o saber, e fê-lo ganhar consciência de que bebia regularmente líquidos kosher sem o saber.
A população kosher representa menos de 0.3% dos residentes nos Estados Unidos (cerca de 9% dos noviorquinos são judeus) e estava-lhe a parecer que todas as bebidas eram kosher. Porquê? Simplesmente porque se forem kosher, os produtores, os revendedores e os restaurantes, não têm de fazer distinções entre kosher e não kosher para os líquidos, com marcações especiais, áreas e inventários separados.
A regra simples que altera o total é a seguinte: Um kosher (ou halal) nunca irá comer alimentos não kosher (ou não halal), mas um não kosher não está proibido de comer alimentos kosher.
Alguém com alergia ao amendoim, não irá comer produtos que o possam conter, mas uma pessoa sem alergia poderá comê-los. O que explica o porquê de ser tão difícil de encontrar amendoins nos aviões dos Estados Unidos e porque as escolas são “peanuts-free”.
Chamemos a estas minorias um grupo intransigente e à vasta maioria um grupo flexível.
Dois pormenores. Primeiro, o modo como estão implantados no terreno, é importante. Se a minoria dos intransigentes vive em guetos, com uma economia pequena e separada, então esta regra não se aplica. Mas quando a população tem uma distribuição espacial uniforme, isto é, quando a percentagem da minoria na vizinhança é a mesma que na cidade inteira, que a da cidade a do país, então a maioria flexível ir-se-á submeter à regra da minoria. Segundo, o custo também interessa. No exemplo da nossa limonada kosher o aumento de preço não é significativo.
Os muçulmanos também têm leis do tipo “kosher”, que se aplicam à carne, regras de abate herdadas de práticas sacrificiais antigas dos cultos Grego Oriental e do Levante. Tudo o que é kosher é “halal”, para a maior parte dos Sunitas (ou era assim nos séculos passados), mas o reverso não é verdade.
No Reino Unido, onde a população muçulmana praticante é de 3 a 4%, uma grande proporção de carne que se encontra nos talhos é halal. Cerca de 70% do anho importado da Nova Zelândia é halal. Perto de 10% da restauração do metropolitano vende “Halal-only meat”.
Mas nos países de matriz cristã, halal não é suficientemente neutro. Há ainda muitos cristãos que entendem os valores sagrados dos outros como uma violação dos seus. Lembremos que, no século VII e anteriores, muitos mártires cristãos foram torturados por se recusarem a comer carne sacrificial e assumiram a postura heroica de morrer à fome por considerarem um sacrilégio aquela comida impura.
Se o objectivo é vencer e não vencer um argumento, pôr o foco unicamente nas palavras coloca-nos num declive perigoso. É necessário fazer preceder as palavras de actos significativos. Só a realidade consegue convencer alguém de que está errado.
Uma das suas regras é a "Regra da Minoria": Se um certo tipo de minoria intransigente – com significativo “skin in the game” (ou, melhor, “soul in the game”) - atingir um pequena percentagem da população - 3 a 4%, pode fazer com que toda a restante se submeta às suas preferências.
Um exemplo desta complexidade atingiu o autor, quando ajudava um barbecue em Nova York.
Estavam os anfitriões a desempacotar as bebidas, quando um amigo que só consome alimentos “kosher”, se aproximou para o cumprimentar. O autor ofereceu-lhe uma limonada, na certeza de que ele a iria rejeitar. Mas, para seu espanto, ele bebeu o líquido, enquanto outra pessoa comentou: “Aqui, todas as bebidas são kosher!”. Olhou para o rótulo da garrafa e, no fundo, tinha um pequeno símbolo – um U envolto num círculo, indicando que era kosher. O símbolo só é detectado por aqueles que necessitam de o saber, e fê-lo ganhar consciência de que bebia regularmente líquidos kosher sem o saber.
A população kosher representa menos de 0.3% dos residentes nos Estados Unidos (cerca de 9% dos noviorquinos são judeus) e estava-lhe a parecer que todas as bebidas eram kosher. Porquê? Simplesmente porque se forem kosher, os produtores, os revendedores e os restaurantes, não têm de fazer distinções entre kosher e não kosher para os líquidos, com marcações especiais, áreas e inventários separados.
A regra simples que altera o total é a seguinte: Um kosher (ou halal) nunca irá comer alimentos não kosher (ou não halal), mas um não kosher não está proibido de comer alimentos kosher.
Alguém com alergia ao amendoim, não irá comer produtos que o possam conter, mas uma pessoa sem alergia poderá comê-los. O que explica o porquê de ser tão difícil de encontrar amendoins nos aviões dos Estados Unidos e porque as escolas são “peanuts-free”.
Chamemos a estas minorias um grupo intransigente e à vasta maioria um grupo flexível.
Dois pormenores. Primeiro, o modo como estão implantados no terreno, é importante. Se a minoria dos intransigentes vive em guetos, com uma economia pequena e separada, então esta regra não se aplica. Mas quando a população tem uma distribuição espacial uniforme, isto é, quando a percentagem da minoria na vizinhança é a mesma que na cidade inteira, que a da cidade a do país, então a maioria flexível ir-se-á submeter à regra da minoria. Segundo, o custo também interessa. No exemplo da nossa limonada kosher o aumento de preço não é significativo.
Os muçulmanos também têm leis do tipo “kosher”, que se aplicam à carne, regras de abate herdadas de práticas sacrificiais antigas dos cultos Grego Oriental e do Levante. Tudo o que é kosher é “halal”, para a maior parte dos Sunitas (ou era assim nos séculos passados), mas o reverso não é verdade.
No Reino Unido, onde a população muçulmana praticante é de 3 a 4%, uma grande proporção de carne que se encontra nos talhos é halal. Cerca de 70% do anho importado da Nova Zelândia é halal. Perto de 10% da restauração do metropolitano vende “Halal-only meat”.
Mas nos países de matriz cristã, halal não é suficientemente neutro. Há ainda muitos cristãos que entendem os valores sagrados dos outros como uma violação dos seus. Lembremos que, no século VII e anteriores, muitos mártires cristãos foram torturados por se recusarem a comer carne sacrificial e assumiram a postura heroica de morrer à fome por considerarem um sacrilégio aquela comida impura.
Se o objectivo é vencer e não vencer um argumento, pôr o foco unicamente nas palavras coloca-nos num declive perigoso. É necessário fazer preceder as palavras de actos significativos. Só a realidade consegue convencer alguém de que está errado.
segunda-feira, 2 de julho de 2018
Carta de despedida a um amor antigo
Minha querida:
A nossa relação acabou!
Ao fim destes muitos anos em que me acompanhaste dentro do hospital, sempre atenta a qualquer ignição mais apaixonada, é forçoso que te deixe e prescinda da garantia de que nada mais acalorado se passará sem o teu conhecimento.
Pena que só nos dessemos a conhecer em fevereiro de 2012, quando os meus olhos tropeçaram no jeito meigo dos teus. Foi então que tudo começou e, animado pela tua timidez de menina, eternamente protegida atrás de uma vidraça, mantive-te informada do que se passava no meu peito.
Tens agora o cabelo encanecido pelas muitas confidências que escutaste. Ouviste familiares falarem mal dos médicos, médicos a queixarem-se dos seus pares, enfermeiros dos horários de trabalho, auxiliares da precariedade da sua vida. Ouviste falar do desperdício de quem tem pressa e fica incapaz de pensar antes de se meter a “fazer”, da gestão que não controla os custos e que diariamente põe em causa a sustentabilidade do SNS, do nivelamento por baixo dos profissionais desta casa, dos fracos vencimentos pagos pelo Estado, da procura desnecessária dos serviços hospitalares, … . Tantos a queixarem-se do que os outros não fazem bem, sem cuidar de melhorar o que podiam na sua área … .
De mim muito deves ter ouvido, porque pertenci ao grupo que lutou pela melhoria da qualidade assistencial a custos aceitáveis, sem aquela “flores” que são os “luxos” de quem se esquece que mais tarde os irá pagar, sob a forma de impostos ou da desvalorização do seu dinheiro. Percebeste as minhas mágoas quando falava dos meios auxiliares de diagnóstico e de terapêuticas desnecessárias, dos gastos com controles biométricos com médicos em vez de responsabilizar os directores dos serviços pelo qualidade e quantidade de trabalho produzidos, da promiscuidade entre o público e o privado, da necessidade de uma fiscalização eficiente ao favorecimento (nepotismo e compadrio - político / religioso / institucional) na escolha dos profissionais das organizações dos Estado, nesta "terra de primos que passam a vida a fazer jeitos uns aos outros”.
Obrigado pela tua paciência!
Em breve, só quando as saudades me trouxerem para os locais onde fui feliz, te encontrarei de novo. Talvez te escondas num novo penteado e me deixes inquieto por te ter deixado assim, de um dia para o outro, e me recrimines por, apesar da idade, ainda te manteres no teu posto assumindo as funções nessa missão de estar sempre disponível para entrar em acção a todo o tempo.
Eu sei que esta separação me irá custar mais a mim que a ti, pois não acredito que deixes que uma lágrima assome ao teu rosto, nem te vejo a alterar a rotina de tantos anos, já que tens quem te garanta a subsistência.
Eu tenho de programar o meu novo estar. Para já vou-me manter por perto e a todo o tempo te poderei visitar, queiram os deuses que sempre de sorriso estampado, mas, se o acaso me levar a ti na horizontal, que o nosso encontro seja breve e que a memória ajude a dar dignidade a quem por aí andou sem se preocupar com serviços mínimos.
Fica bem, meu romance tardio
Fernando