sábado, 16 de fevereiro de 2008

O "Permanente"


Em 1980 - tinha vindo do Serviço Médico à Periferia, que era uma espécie de bodo às populações periféricas do país, com médicos recém-formados que, por um ano, se deslocavam para os locais onde os Serviços Médico-Sociais das Caixas de Previdência e as Casas do Povo (nos primórdios do SNS), tinham gravosa falta de médicos – Alto Minho, Alto Douro e Trás-os-Montes, … mas disso falarei mais tarde.

Nessa altura o meu trabalho semanal no Hospital de S. João ocupava-me as manhãs e uma só tarde/noite de 12h Urgência. As restantes tardes ficavam livres e era prática da maioria dos médicos ter um período de 2h na “Caixa” onde deveriam ver 12 doentes (6 à hora).

As outras possibilidades eram os Domicílios, 6 por dia numa pequena zona da cidade e o Serviço Permanente.
Neste faziam-se domicílios nocturnos, 3 noites por mês, das 20:00h às 08:00h, e um dia de fim-de-semana de 4 em 4 semanas, das 08:00h às 08:00h. Nas noites deviam ser atendidos até 10 doentes e no fim-de-semana até 20. Cobria todo o Porto, Gaia central e Matosinhos.

Esta última modalidade tinha para mim a vantagem de deixar os dias livres e de ter um pagamento em que só por se estar à chamada se recebia metade do vencimento que se pagava pelo período de 2h/dia nas Consultas sentado à secretária (3.300$00), sendo o restante só atribuído de acordo com o nº de doentes observados. Assim 30 + 20 = 50 X 33$00 = 1.650$00.

Este esquema seduziu-me e quando apareceu a primeira vaga agarrei-a. Devíamos ser para aí 12 nestas funções. O mais aborrecido era o fim-de-semana, por se ter de andar todo o dia de um lado para o outro, cumprindo a obrigação de dar resposta às solicitações em 3 horas. À noite era mais fácil, porque nunca havia 10 chamadas – habitualmente eram 4 ou 5.

Às 21 horas o telefonista que recebia as chamadas na Sede, telefonava-me:
- “Doutor tem 4! Um no Bairro de Aldoar, Bloco L, Entrada 256, casa 21, outro na Rua da Vitória, nº 315, outro na Rua da Banharia, nº 31 e outro na Rua da Vilarinha, nº 6. É melhor começar pela Banharia, que aquilo ali não é seguro e o familiar da doente fica na Rua Mouzinho da Silveira à sua espera e leva-o lá. Se começar por lá eu aviso-o para ficar até o Dr. passar!”.
– “OK!, começo por aí! Diga-lhe que vou num R5 azul e que paro perto! Ele deve identificar-me.!” - “E a Rua da Vilarinha, onde é?”
- “É a meio da Avenida da Boavista. O melhor é parar logo no início da Rua Antunes Guimarães e ir a pé que é uma das primeiras casas “
- "E o Bairro em Aldoar?”
– “Fica atrás do Magalhães Lemos.! Veja no Mapa. Vá por Antunes Guimarães e a meio vire à esquerda. Atenção que os Blocos têm as letras identificadoras lá em cima nas paredes laterais!”.
- ”Obrigado! Quando estiver adiantado, volto a telefonar!” Adeus!

Aí vou eu! Certifico-me que tenho o material necessário dentro da mala e saio em direcção ao rio! Ainda há muita gente na rua! Paro perto do local combinado e sou rapidamente identificado por um homem que está na esquina. Tacitamente nos entendemos. Sigo-o medindo os poucos autóctones que ainda circulam, na tentativa de identificar disfunção! Nada! Tudo gente normal! Chegamos à porta e subimos. É coisa banal. Uma febre de ontem! Garganta bem! Pulmões bem! Abdómen bem! Vai por gripe! Receita e, embora que há mais vida! Despeço-me, mas o homenzinho faz questão de me levar em segurança até ao carro! Obrigado!

Aí vou eu para a Rua da Victória que é já ali em cima, mas antes confirmo no Mapa da Cidade o melhor caminho, porque tem sentido único e tenho que entrar pela Cordoaria.
É uma rua estreita, de grande declive, com calçada portuguesa de pedras lisas e escorregadias que não dão confiança para conduzir. Vou aos soluços, a olhar os poucos números de porta visíveis e a adivinhar onde estacionar. Mesmo colocando a placa de “Médico em Serviço Urgente” vai ser difícil parar o carro, mas como há pouco trânsito por aqui a estas horas, hei-de arranjar qualquer lado. 193, 207, 213 … é aqui o 215. Estaciono metros à frente, encostado à porta de uma das casas. Dá para passar um carro, mas se alguém quiser sair da casa vai ter que andar de lado. Vão ser só uns minutos!.
Bato e espero. Bato outra vez! Sinto passos apressados a descer as escadas e, momentos depois abre-se a porta! Vem um homem de cabelo oxidado, que me cumprimenta e pergunta com voz efeminada:
-“É o médico?”
–“Sim!”.
Começamos a subir enquanto conta a história da criança, da febre, da mãe e do não repare doutor! No cimo das escadas está uma motocicleta encostada. Espanto-me, mas não pergunto como foi possível subir com ela aquelas escadas íngremes e estreitas onde meço um a um os degraus. Vamos ao quarto! Há uma mistura de cheiros a urina, leite e a casa fechada, que aumenta à medida que me aproximo da cama onde uma mulher com estigmas de alcoolismo tem ao colo uma criança magra, de uns dois anos, a arfar. A pouca luz não esconde o completo desalinho, com gavetas entreabertas, roupa em montes pelo chão e alguma pendurada.
Pego na criança a medo a medir-lhe a reacção. Arde em febre e imite um gemido pálido enquanto a observo! Não vale a pena perder mais tempo! Pego no Bloco de Receitas, escrevo uma carta ao Serviço de Urgência do Hospital de Sto António, e digo com ar decisivo:
-“Não receito nada! Têm de a levar sem demora ao Hospital de Sto António!”
Certifico-me que perceberam e apresso-me a sair, mas o homem interpela-me com aquela voz melíflua:
- Dr.! Já agora, o Dr. não me dá uma receita para umas hemorróides que eu tenho e que me andam a afligir!”
Olho para ele a medi-lo! Este gajo tem a filha a morrer de febre, provavelmente com uma pneumonia, queira Deus que não tenha uma meningite e, em vez de dar à perna para a pôr no Hospital, quer que o médico aqui apanhado à má fila lhe receite para as hemorróides! Tá quieto ó mau! Nem pensar!
-“Oh meu amigo, trate agora da sua filha e amanhã vá ao Posto Médico para que lhe vejam as hemorróides porque é preciso ver isso antes de receitar. Está bem!”

Despeço-me e, ala para a Rua da Vilarinha.
Algum trânsito a dificultar-me andar depressa, Rotunda da Boavista e toca a andar. Estou no sítio, há aqui um lugar, paro e vou a pé. Mais uns passos e dou rapidamente com a casa térrea. Toco. Espero! Toco outra vez.
–“Quem é?”,
“É o médico!”.
“Um momento!”
Abre a porta uma mulher nos seus 60 anos, bem gastos, desfazendo-se em desculpas.
– Oh Dr.! Não repare que ele é como os recos! Não repare! Eu bem lhe pedi para ele vestir um pijama, mas ele quer ficar assim como os recos, sem roupa!”
Leva-me através de cadeiras, mesinhas e vasos até ao quarto onde numa cama estreita, encostada à parede, me aguarda sentado e todo nu, um homem gordo e careca com uma grande barba branca.
–“Sr. Monteiro?!” Pergunto a tactear.
-“Oh! Doutor! Ainda bem que vem! Não consigo mijar! É uma dor do carago! Quer ver?” e a mulher a apressar-se a meter-se entre nós,
-“Oh! Homem não é preciso mostrar, o doutor já percebeu!”, enquanto o homem pegava num cano de uns 20 cm que estava ao lado da cama, e enfiava pelas pregas que se acumulavam por entre as pernas à procura de um pénis invisível. A mulher já lhe suplicava: “Oh homem pára!”, mas ele, surdo, queria mostrar a dor. Por fim, conseguiu localizá-lo lá bem no fundo, dando início a uma micção ardente pelo tubo em direcção a um pote de plástico, enquanto gania IIIIIHHH. IIIHHHH!!!!
E eu, com ar benevolente, a tentar acalmar a perplexidade da mulher com aquela exibição, dizia: - “Pronto, pronto! Já vi!, Deixe agora isso, Sr. Monteiro”, mas o homem, sem me ligar, cumpriu a totalidade daquele ritual, despejando de seguida, sob o meu olhar incrédulo, o conteúdo do penico num funil que estava no início de uma mangueira transparente, que corria fixada à parede e bordejando a cama até aos seus pés, onde a perfurava, penso que em direcção ao quintal da casa (não confirmei).
Com o ar mais natural possível, diagnostiquei infecção urinária e mediquei de acordo. Quando me apressava-me para sair, a senhora diligente correu para mim com o jarro da água para me ajudar a lavar as mãos na bacia do lavatório esmaltado. Para minha desgraça o jarro não tinha água e para solucionar o lapso, a senhora, que já não sabia o que fazer, disse enquanto fuzilava o companheiro com o olhar:
-“Espere um bocadinho, que eu vou buscar álcool para lavar as mãos!”, e de imediato foi buscar uma garrafa transparente com um líquido transparente que me derramou delicadamente mas mãos. Era aguardente. Esfreguei as mãos e limpei-as a uma toalha limpa que me ofereceu.
–“Boa Noite!. Tenho de me ir que ainda tenho muito que fazer. As melhoras!”
- “Muito obrigado! E desculpe!”, dizia a mulher aflita com toda aquela disfunção.

Agora é o Bairro do Aldoar! Mas antes há que gastar uns toalhetes que a divina providência me colocou no tablier do carro.
É 01:00h e ainda não liguei para o telefonista a perguntar se tem mais chamadas para mim! Detesto ir a Bairros! Há sempre cães vadios a quem as pessoas dão de comer e que ficam em matilha pela rua a rosnar a quem passa perto das casas que consideram seu território!
Perco-me 2 vezes na entrada! Está um nevoeiro cerrado! Mas parece-me que já cá estou. Há candeeiros com luzes apagadas e outros com luzes partidas, talvez por pedradas e vê-se mal o topo dos Blocos de 3 andares, onde estão os números que os identificam. Não anda ninguém na rua! Paro e saio para decifrar a letra deste. É o B! O L deve estar lá para a outra ponta. Continuo, talvez encontre alguém! Passo 5 Blocos e paro. Saio e não vejo letra nenhuma no lado do Bloco. Dou a volta – é o G! Entro outra vez no carro e ando mais dois Blocos! Ninguém! Do carro não consigo ver as letras. Estaciono e vou a pé. O que vale é que não está frio, não chove, nem vejo cães, mas estou a desesperar. Estico a cabeça para identificar este aqui e é … o L! É aqui! Tem 2 entradas. A primeira tem os números caídos, deixa ver aquela, 256. Uff!! Subo 2 lanços de escadas ás escuras por causa das luzes partidas. Com a lanterna de ver gargantas foco o nº da porta - Nº21. Toco à campainha! Estão acordados e vêm abrir a porta! É um casal de velhotes. A casa está desarrumada. Ela está doente e tem dificuldade em andar. Há 3 dias que chamou o médico dos domicílios e ele ainda não apareceu. Foi por isso que chamou o Permanente. A doença é a do costume, mas não tem medicamentos e está pior! Tento ver se há qualquer coisa de novo, verifico a medicação, faço o trabalho do médico domiciliário às 01:30h da noite e antes de sair pergunto se posso usar o telefone. Que sim! Ligo para o Telefonista:
-“Então há mais que fazer?”
-“Sim! Dr.! Tem de ir à 2ª Rua Particular do Castelo do Queijo nº 2. É mesmo no fundo do lado direito, antes daquele Café que lá há! Está a ver?. Mas tenha cuidado que a rua mal se nota!”
Despeço-me e meto-me á estrada.
Dou logo com a casa, até parece que já lá tinha ido. Cães a ladrar e uma voz a acalmá-los.
- “É o Sr. Dr.?”
- “Sim! Os cães estão presos?”
- “Pode entrar, que os cães não fazem mal! Por aqui por este carreirinho, cuidado não caia. Aqui tem um degrau! É a minha mulher que está na cama há dois dias com um febrão dos demónios. Dói-lhe a garganta e não consegue comer!”
Vá que é fácil! Abra a boca, deite-se, respire fundo! Vai tomar isto e aquilo! Adeus e até á próxima! E vão 5. Queira Deus que não haja mais! O melhor é voltar a telefonar antes de chegar a casa. Não! A esta hora só por azar é que voltavam a chamar.

Entro em casa sem fazer barulho. Vou a telefone e pergunto:
-“Há mais?”
-“Não!
-“Estou em casa e vou dormir!”
-“Ok! Até à semana!”
-“Até à semana!”

3 comentários:

  1. Depois de um relato deste tipo… e tenho ouvido vários… de várias naturezas e origens…com vários contornos… penso com os meus botões. Porque é que escolhemos as profissões que temos? Como é que nós fazemos isso?

    Por dinheiro?
    Para agradar ao pai ou à mãe, seguindo a linha tradicional da carreira da família?
    Por status?
    Por missão?
    Por uma questão de necessidade de prestar “serviço”, ser útil?
    Por necessidade de significância?
    Por segurança?
    Porque é aquela, e só aquela, que nos traz significado à existência?
    Por…?

    Haverá com certeza um sem número de respostas possíveis e todas elas serão válidas e aceitáveis.
    Confesso que ando à procura da minha própria resposta, mas não é isso o que mais me interessa. O que a mim me fascina é poder olhar para a resposta à pergunta que me surge logo a seguir.

    O que é que isso, as razões dessa escolha muitas vezes inconsciente, nos dizem de nós mesmos?

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  2. É um expressivo "Retalho da vida de um médico" que não beneficiou dos lautos "incentivos", que alguns agora acham necessários para bem desempemharem a sua missão.

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  3. Eu não acredito em vocação. Entendo que uma maior facilididade constitucional para algumas tarefas possa estar na base de algumas opções.

    Eu acredito em posturas perante os desafios.
    Acredito nas pessoas que assumem as tarefas a que se propõem e as levam a cabo do melhor modo que sabem e podem.

    Acredito na Honra.

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