Qualquer modo de ver a realidade é necessariamente limitado. Estas são algumas das histórias que definem o meu olhar.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
A beleza das frases
- Disseste que escrever é um prazer. Também disseste que é um sofrimento. Em que ficamos?
- As duas coisas são verdade. Quando estava a começar, quando estava a descobrir o ofício, era um acto alvoroçado, quase irresponsável. Naquela época, lembro-me, depois de acabar o meu trabalho no jornal, pelas duas ou três da madrugada, era capaz de escrever quatro, cinco, até dez páginas de um livro. Uma vez, de uma só assentada, escrevi um conto.
- E agora?
- Agora considero-me feliz se posso escrever um bom parágrafo num dia. Com o tempo, o acto de escrever transformou-se num sofrimento.
- Porquê? Dir-se-ia que com o maior domínio que tens do ofício, escrever deveria ser mais fácil.
- O que acontece simplesmente é que vai aumentado o sentido de responsabilidade. Temos a impressão de que cada letra que escrevemos tem agora uma ressonância maior, que toca muita mais gente.
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Gabriel Garcia Máquez / Plínio Apuleyo Mendoza in
“O Aroma de Goiaba” (1982)
Sei muito bem, e tristemente, que a cultura das letras começa a desaparecer e está condenada. Mas não deixo de lamentar que o prazer de uma frase, de um parágrafo ou de uma vírgula maléfica se percam para sempre.
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Vasco Pulido Valente in "Público" 06/09/2009
Hoje, depois de escrever dez horas seguidas e sentindo-me cansado demais para continuar, levantei-me da mesa e tirei um livro da estante do corredor. Calhou ser Dickens, numa edição barata da Wordsworth. Tempos Difíceis. Abri-o onde resolveu abrir-se e apareceram quatro linhas mágicas: um filho visita a mãe, velha e muito doente. Pergunta
- Sente dores, mãezinha?
e ela responde
- Tenho ideia que anda uma dor por aí mas não estou certa de me pertencer
e fiquei parvo com isto. Entre parênteses adoro ficar parvo com o que os outros escrevem: só costumo ficar parvo comigo, a interrogar-me de onde é que aquilo saiu, porque não foi de mim com certeza, de maneira que penso que a mão de um anjo substituiu a minha. Tenho ideia que anda uma dor por aí mas não estou certa de me pertencer é uma pérola única. Igual à vida: quantas vezes senti isto, sinto isto, sem ser capaz de o exprimir. As dores que me pertencem são fáceis, as que não estou certo de me pertencerem custam tanto. Viro-as para um lado e para o outro, estudo-as contra a luz, experimento-lhes o cheiro, a consistência, a cor e a dúvida perpétua
- Pertence-me?
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António Lobo Antunes in Visão nº 861 – 3 a 9 de Setembro de 2009
O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora).
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Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) - 1944
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