sábado, 6 de fevereiro de 2010

Quem entra a seguir?












- “Quem vem a seguir, Sofia?”, pergunto à interna que me acompanha na Consulta.
- “É aquela que era casada com o coveiro, que quase a matou à facada!”.
- “Má sorte a dela!”, comento, enquanto lhe rebobino o passado, que a atirou semanas para uma Unidade de Cuidados Intensivos, com uma grave laceração da traqueia e várias perfurações pulmonares, a culminar uma relação de anos de conflitualidade e de alcoolismo.
- “Mas ela, nessa altura, bebia assim tanto?”, pergunta-me, surpresa, por não lhe conhecer doença hepática significativa.
- “Pelo que disse, começou a beber depois dos partos, porque a sogra dizia que o vinho dava muito leite, e depois ficou com uma depressão nervosa dos nervos, porque queria ir trabalhar e o marido não deixava, com medo que ela lhe pusesse os cornos. Aquilo evoluiu de tal modo, que a Segurança Social acabou por lhe tirar o cuidado dos filhos e os pôs com os avós paternos, depois de a terem encontrado no meio do rio, numa tentativa de suicídio. Agora arranjou este, há para aí dois anos, que lhe pegou a doença!”

- “Dona Bernardete, faz favor de entrar!”

Vem luxuriante, neste dia escuro de Inverno. Calções de ganga curtos, por cima de umas leggings pretas, camisola amarela com um largo decote a deixar ver o soutien creme riscado de vermelho e, como cereja no topo do bolo, umas botas brancas até ao joelho de tacão alto. Só o cabelo, curto, ondulado e penteado para trás era o de sempre.
Tem um ar feliz e despachado, pese embora uma franca assimetria da face e um extenso herpes labial.
-“O que se passa, Dona Bernardete! Como é que arranjou isso?”, questiono-a, enquanto ela se ajeita na cadeira e responde com o mesmo ar:
-“Se calhar foi de uma bica que uma vizinha me deu!”
-“De uma bica?”, pergunto, estranhando aquela relação. A Sofia informa-me que na terra dela chamam assim a uma papa de farinha de milho para cobrir o peixe que vai ao forno, e ela continua:
- "Ou então, foi uma vizinha que se enganou e me deu remédio dos ratos! Se calhar até podia ter sido de umas azeitonas que eu comi, ou sei lá … do AVH que eu tenho!"

- “Oh Dona Bernardete! Isso é tudo da doença! A Sra. tem de tomar os remédios, que as suas análises já estão muito alteradas. Já na última consulta, recusou o tratamento, mas agora tem de ser!”, insisto.
- “Sra. Dra! Eu não o recusei! A Sra é que arrebenta comigo do estômago! Eu não consigo tomar aquilo!”, diz, enquanto se recosta e acena que não com a cabeça, para depois voltar a colocar os cotovelos sobre a mesa, para me dizer como quem confidencia: - “E olhe que com o meu marido vai ser pior. Ele é só Crofts de manhã à noite!", diz, enquanto faz repetidas vezes o gesto no ar com o polegar em direcção à boca. -" Não vai aguentar!... Eu é pela doença, que já em pequena estive paralítica das anginas. Até o médico disse que eu tive sorte, porque o pus das anginas até mata o coração!"

-“Dona Bernardete! Vai começar por só tomar UM comprimido por dia, e se não acontecer nada depois aumenta-se. Está bem?”



Dois dias depois, no Serviço: - “Dra.! Arrebentou-me com o estômago!”

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