Qualquer modo de ver a realidade é necessariamente limitado. Estas são algumas das histórias que definem o meu olhar.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Tapeçarias de Portalegre
Este tríptico de 3 x (522 x 270) cm, efectuado em 1989 por Júlio Pomar, está no átrio da sede da CGD em Lisboa. Tem o nome de Tropel.
As Tapeçarias de Portalegre, reproduziram partes desta obra para tapeçaria, numa tentação de muitos mil euros!
No meu local de trabalho há uma de Guilherme Camarinha, que está desvalorizada por não encontrar parede que lhe dê relevo. Inicialmente colocada no Bar do Pessoal, cedo foi usada para encosto de cabeças pouco atentas. Depois de um alerta, foi para a administração, que ao fim de uns anos a enviou para
No meu local de trabalho há uma de Guilherme Camarinha, que está desvalorizada por não encontrar parede que lhe dê relevo. Inicialmente colocada no Bar do Pessoal, cedo foi usada para encosto de cabeças pouco atentas. Depois de um alerta, foi para a administração, que ao fim de uns anos a enviou para
o atendimento ao público, onde mal se vê.
Na cidade, conheço outra. É de Almada Negreiros, e está na Pousada de Sta Luzia com honras de Sala de Estar, mas não me admiro que haja muitas, nas salas do Tribunal e em outros edifícios públicos.
Ignoro se persiste a política de atribuir para arte, uma percentagem (1%) do custo de construção dos novos edifícios, com o que os governos animavam activamente a criação da arte pública.
terça-feira, 21 de setembro de 2010
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Os políticos bailarinos
Num tempo em que o conflito político se agudiza, vem-me à memória este excerto do livro "A Lentidão" de Milan Kundera
Todos os homens políticos de hoje, segundo Pontevin, são um tanto bailarinos, e todos os bailarinos se metem na política, o que apesar de tudo, não deveria fazer-nos confundir uns com os outros. O bailarino distingue-se do homem político corrente pelo facto de não desejar o poder mas a glória; não deseja impor ao mundo esta ou aquela organização social (borrifa-se para isso), mas sim ocupar o palco fazendo refulgir o seu "eu".
Para ocupar o palco, é preciso correr de lá com os outros. O que supõe uma técnica especial de combate. O combate travado pelo bailarino é aquilo a que Pontevin chama judo moral; o bailarino lança a luva em desafio ao mundo inteiro: quem é capaz de se mostrar mais moral (mais corajoso, mais honesto, mais sincero, mais disposto ao sacrifício, mais verídico) do que ele? E maneja todos os recursos que lhe permitam colocar o outro numa situação moralmente inferior.
Se um bailarino tiver a possibilidade de entrar no jogo político, recusará ostensivamente as negociações secretas (que são desde sempre o terreno de jogo da verdadeira política) denunciando-as como mentirosas, desonestas, hipócritas, sujas; adiantará as suas propostas publicamente, de cima de um estrado, cantando, dançando, e chamará os outros citando-os pelos nome a seguirem-no na sua acção; insisto: não discretamente (a fim de dar ao outro tempo para reflectir, para discutir contrapropostas), mas publicamente, e se possível, de surpresa: “Está disposto agora mesmo (como eu) a renunciar ao seu salário de mês de Março em benefício das crianças da Somália?” surpreendidas, as outras pessoas terão apenas duas possibilidades: ou recusar e desacreditarem-se assim enquanto inimigas das crianças, ou dizem um “sim” terrivelmente embaraçado que a câmara mostrará maliciosamente como mostrou as hesitações do pobre Berck no fim do almoço com os doentes com SIDA. Porque se cala o senhor, doutor H, quando os direitos do homem são desprezados no seu país?” Esta pergunta foi feita ao doutor H. no momento em que ele, estando a operar um doente, não podia responder; mas depois de ter cosido o ventre cortado, sentiu-se presa de uma tamanha vergonha pelo seu silêncio que debitou tudo o que tinham querido ouvir da sua boca e mais ainda; ao que o bailarino que lhe dirigira a sua arenga (e é outro golpe de judo moral, especialmente terrível) tornou: “Vá lá. Mais vale tarde …”
Podem ocorrer situações (nos regimes ditatoriais, por exemplo) em que tomar posição publicamente seja perigoso; para o bailarino é-o, contudo, um pouco menos que para os outros, porque, depois de ter passeado à luz dos projectores, visível em todo o lado, ele fica protegido pela atenção do mundo; mas tem admiradores anónimos que, obedecendo ao seu apelo tão esplêndido como irreflectido, participam em reuniões proibidas, fazem manifestações de rua; estes últimos serão tratados sem contemplações e o bailarino jamais cederá à tentação sentimental de se recriminar por ter causado a sua desgraça, ciente de que uma nobre causa pesa mais do que a vida deste ou daqueloutro.
Vincent objecta a Pontevin: “É bem conhecida a tua execração por Berck e nós acompanhamos-te nela. No entanto, apesar de ser uma besta, ele apoiou causas que nós também consideramos justas, ou, se quiseres, apoiou-as a vaidade dele. E eu pergunto-te: se quiseres intervir num conflito público, chamar a atenção para uma abominação, ajudar um perseguido, como poderás, na nossa época, deixar de ser ou de parecer um bailarino?”
Ao que o misterioso Pontevin responde: “Enganas-te se pensas que eu queria atacar os bailarinos. Defendo-os. Quem sente aversão pelos bailarinos e quer denegri-los esbarra sempre num obstáculo intransponível: a honestidade deles; porque expondo-se constantemente ao público, o bailarino condena-se a ser irrepreensível; não concluiu como Fausto um pacto com o diabo, concluiu-o com o Anjo: quer fazer da sua vida uma obra de arte e é nesse trabalho que o Anjo o ajuda; porque não te esqueças, a dança é uma arte! É nessa obsessão de ver na sua própria vida a matéria de uma obra de arte que se encontra a verdadeira essência do bailarino; ele não prega a moral, dança-a! Quer comover e deslumbrar o mundo com a beleza da sua vida! Está apaixonado pela sua própria vida como um escultor pode estar apaixonado pela estátua que está a moldar.”
domingo, 19 de setembro de 2010
Pequenos políticos
- Então é por isso que tu não vais à bola com ele!?
- Ele andava armado em defensor dos “pobres e oprimidos”, a tentar fazer obra com o dinheiro daqueles a quem chamava ricos, mas não abdicava de um carro "topo de gama". O método era sempre o mesmo: “criar dificuldades, para vender facilidades!” Freguês que lhe caísse na alçada, não andava para frente sem calcetar uma rua, alargar um caminho ou participar na iluminação. Criava-lhe obstáculos sobre obstáculos, para que num desespero, ele cedesse.
- Este tipo de gente pensa que é o Robin dos Bosques, mas são muito cientes dos negócios e oportunidades que o lugar lhes oferece. Isso em termos jurídicos, chama-se “extorsão”.
- Um colega dele das Finanças, contou-me que ele, quando detectava irregularidades, fazia chantagem sobre as empresas, o que, naquele tempo, era o pão do dia. Fazia parelha com um amigo, que depois de algum sucesso regional, se abalançou para Lisboa. Mas lá a coisa piou fino e acabou “dentro”. Este, mais provinciano, ficou por cá e safou-se. O grosso da população não o critica, porque ele se vira mais para quem chega. É o eterno problema do “rouba, mas faz!”
- O homem viu na expansão da aldeia, a oportunidade para fazer obra que lhe rendesse dividendos políticos. Só que este estilo não dá com todos, e coisas que se resolveriam falando, ficaram paradas. No teu caso, tivestes que pagar!?
- Ele andava armado em defensor dos “pobres e oprimidos”, a tentar fazer obra com o dinheiro daqueles a quem chamava ricos, mas não abdicava de um carro "topo de gama". O método era sempre o mesmo: “criar dificuldades, para vender facilidades!” Freguês que lhe caísse na alçada, não andava para frente sem calcetar uma rua, alargar um caminho ou participar na iluminação. Criava-lhe obstáculos sobre obstáculos, para que num desespero, ele cedesse.
- Este tipo de gente pensa que é o Robin dos Bosques, mas são muito cientes dos negócios e oportunidades que o lugar lhes oferece. Isso em termos jurídicos, chama-se “extorsão”.
- Um colega dele das Finanças, contou-me que ele, quando detectava irregularidades, fazia chantagem sobre as empresas, o que, naquele tempo, era o pão do dia. Fazia parelha com um amigo, que depois de algum sucesso regional, se abalançou para Lisboa. Mas lá a coisa piou fino e acabou “dentro”. Este, mais provinciano, ficou por cá e safou-se. O grosso da população não o critica, porque ele se vira mais para quem chega. É o eterno problema do “rouba, mas faz!”
- O homem viu na expansão da aldeia, a oportunidade para fazer obra que lhe rendesse dividendos políticos. Só que este estilo não dá com todos, e coisas que se resolveriam falando, ficaram paradas. No teu caso, tivestes que pagar!?
- Aconselhei-me com o meu advogado, que me disse que: "os direitos não se pedem, exercem-se!"
sábado, 18 de setembro de 2010
Foi a minha sorte!
Aos onze anos fiquei órfão, depois da minha mãe morrer uma semana antes da minha avó. Fui viver para casa de uma tia, que me dava um comer diferente daquele que dava aos filhos.
Aos dezasseis, o meu irmão mais velho, chamou-me para trabalhar nas obras em Lisboa
Quando o patrão me viu, disse: “Tu não tens corpo para carregar um balde de massa! Olha lá! Queres ir para a carpintaria!”
Foi a minha sorte!
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Saudades do Ti António – 2
A Montaria
Era o padre Rafael Gonçalves Roque, natural de Sistelo, e pároco no Soajo, que organizava as montarias, para os “apaixonados” soajeiros e das freguesias vizinhas. Era também ele que comandava os tiros dos “réfes” de carregar pela boca, com que se davam as ordens aos batedores.
A primeira descarga era feita na fraga da Mó, para o avanço do povo vizinho, até ao Outeiro Maior onde terminava a batida.
Quando todos os batedores chegavam ao Alto da Pedrada, já cansados e cheios de apetite, iam buscar o farnel e descansavam, atentos aos tiros dentro das chãs da Seida, onde os atiradores tinham sido previamente colocados, entre os quais estava o saudoso padre Rafael. De vez em quando ouvia-se um “tau”, e o povo em silêncio, tentava vislumbrar qualquer movimento do lobo na direcção do fojo, ou se o topava a fugir noutra direcção evitando os tiros dos caçadores.
Terminada a batida, tudo regressava à branda da Cova onde se queimavam os últimos cartuxos, fazendo tiro ao alvo a um calhau posto em cima de uma rocha, no meio de grande animação centrada no almocreve, com as meias canadas (1,5l) e os quartilhos (0,5l) de bom vinho, levado em odres de pele de cabra.
O calhau do Alto da Cova
Deve estar cheio de dores
Está marcado de mil balas
Pelos bons atiradores
E depois todos voltavam a casa, ouvindo o chocalhos dos animais a pastar nas brandas – branda de Cova, e do Alto do Guidão, branda da Urzeira e a do Poulo do Aguilhão, tudo brandas soajeiras dos tempos que já lá vão.
Texto fundamentado, nas memórias manuscritas do Sr. António Carvalho (1931- … )
Era o padre Rafael Gonçalves Roque, natural de Sistelo, e pároco no Soajo, que organizava as montarias, para os “apaixonados” soajeiros e das freguesias vizinhas. Era também ele que comandava os tiros dos “réfes” de carregar pela boca, com que se davam as ordens aos batedores.
A primeira descarga era feita na fraga da Mó, para o avanço do povo vizinho, até ao Outeiro Maior onde terminava a batida.
Quando todos os batedores chegavam ao Alto da Pedrada, já cansados e cheios de apetite, iam buscar o farnel e descansavam, atentos aos tiros dentro das chãs da Seida, onde os atiradores tinham sido previamente colocados, entre os quais estava o saudoso padre Rafael. De vez em quando ouvia-se um “tau”, e o povo em silêncio, tentava vislumbrar qualquer movimento do lobo na direcção do fojo, ou se o topava a fugir noutra direcção evitando os tiros dos caçadores.
Terminada a batida, tudo regressava à branda da Cova onde se queimavam os últimos cartuxos, fazendo tiro ao alvo a um calhau posto em cima de uma rocha, no meio de grande animação centrada no almocreve, com as meias canadas (1,5l) e os quartilhos (0,5l) de bom vinho, levado em odres de pele de cabra.
O calhau do Alto da Cova
Deve estar cheio de dores
Está marcado de mil balas
Pelos bons atiradores
E depois todos voltavam a casa, ouvindo o chocalhos dos animais a pastar nas brandas – branda de Cova, e do Alto do Guidão, branda da Urzeira e a do Poulo do Aguilhão, tudo brandas soajeiras dos tempos que já lá vão.
Texto fundamentado, nas memórias manuscritas do Sr. António Carvalho (1931- … )
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
As saudades do Ti António
Comecei a ser pastor com a idade de seis anos. Logo pela manhã subia serra fora, com meia dúzia de ovelhas, para só voltar à hora das galinhas irem para o poleiro. À chegada ia à fonte buscar um cântaro de água, acendia o lume com o feixinho de lenha que trazia, e punha um pote a aquecer, para andiantar o caldo, enquanto esperava pelos meus pais.
Comia um naco de pão de milho e, de vez em quando, uma sardinha ou um pouco de bacalhau, na companhia da “farrusca" e da "pega”, que sempre se aproximavam na esperança de uma côdea. Bebia na fonte das Chedas. Num dia de Abril apareceu uma cotovia para me animar as tardes, cantando, enquanto subia aos céus. Sentia-se bem comigo, poisava nas ovelhas, comia as migalhas do meu saco, e até me levou ao ninho onde tinha quatro pequeninos. Depois, satisfeita, cantou para mim o seu labri-labri. Ainda hoje, quando por lá passo, sei o monte de tojo onde os criou.
Pegureirinhos (pastorinhos) do monte
Dai-me da vossa merenda
A minha ficou em casa
Se a comi não me lembra
Em Janeiro, os pegureiros tinham o dia das merendas. Era uma festa que juntava todos os pastores, numa fraga com piocas naturais, já usadas pelos antigos e que ainda hoje se chama “Penedo das Merendas”, situada no cotinho dos Terreiros. Iam rapazes e raparigas e todos levavam uns rijõezinhos de porco para comer. Na pioca maior fazia-se o borralho para assar a carne e noutra faziam-se os formigos (água quente, grão de milho esfarelado, que se mexia com um garfo feito de fetos). Comia-se o petisco, e depois, mesmo sem música, tudo cantava o "Vira" e dançava ao toque do calcanhar.
Adeus dia das merendas
Dos pegureiros do monte
Comer formigos na fraga
E beber água da fonte.
Havia em S. Jorge, Oliveira e Barral, quem vendia uns bons cabaços (1 cabaço = 12 litros) de vinho para alimentar as gentes até aos lugares vizinhos de Adrão, Tibo, Paradela, Roucas, Gavieira e talvez Baleiral.
Eu então andava na Escola em Ermelo, a uns três quilómetros de casa. Pelo caminho cruzavamo-nos com os almocreves que o transportavam em burros e mulas, que trepavam por ranhadoiro fora, enervados com a carga e desejosos de chegar, para se aliviarem do peso e comerem as sopas de vinho que o dono lhes dava. A canalha de Vilarinho das Quartas, que passava o dia na escola, aguardava-os, pois quando lhes pedíamos, eles paravam, abriam um odre, e pegavam-nos ao colo para que pudéssemos beber.
Em Abril e Maio, quando o cuco e o gaio cantam, era o tempo das sementeiras. Começavam as carrejadas do esterco para os terrenos, para que estivessem prontos para semear o milho, na hora de virar a terra. E enquanto levávamos o cesto à cabeça, cantávamos:
Ó meu S. João Baptista
Ó meu belo marinheiro
Leva-me no teu barquinho
Lá para o Rio de Janeiro.
No fim da carregada, lá vinha a Ti Maria com bacalhau assado na brasa e um naco de pão de milho, para nos dar força à alma.
Depois era o tempo da sacha e da monda, e novos cantares ecoavam na aldeia.
Sachadeiras do meu milho
Sachai o meu milho bem
Não olheis para o portelo
Que a merenda já lá vem
Vivíamos satisfeitos e em paz. Passávamos uns pelos outros e cumprimentávamo-nos: “Olá rapaz, para onde vais? Não andes ao calor!" -"O Tio Zé hoje não vem?" -"Saiu de manhã à procura de um bezerro que nos falta, e não sei a que horas chega!”. “Ó ti Maria, quando é que há mais um serão?” -“Agora só quando rapar as ovelhas, para fazer um fiadeiro!”
Acarinhavam-se os animais e voltava-se para casa com um feixe de lenha para fazer na fogueira o caldo do dia seguinte, com um bom naco de toucinho, farinha de milho e um pouco de leite.
Laranjeiras do pé de ouro
Que dais laranjas de prata
Amar amores não me custa
O deixá-los é que me mata!
Em Julho começavam as preparações dos terrenos para aceitarem a rega dos milhos que se prolongava até ao fim de Agosto, quando ele começava a pintar, com amarelo no folhelho. Então cortava duas dúzias de pés e levava-as ao moinho para fazer pão de milho novo, que era uma das delícias da minha mãe.
Depois vinham as vindimas e o cheiro a vinho mosto. “Ó Teresa! Já tiraste as uvas todas?”, - “Porque perguntas?”, -“É que eu quero que vás comigo vindimar para o mês de Setembro!”
E depois de muita festa e muita música, vinha Setembro com o cheiro a rosmaninho a avisar que o S. Martinho estava à porta, para a prova dos vinhos. Ó videira, ó videirinha! E ó ai ó larilolela!
No Inverno, antes dos Serões, havia matança do porco. Era uma festa para todos, quando se repartia com quem não tinha.
No dia seguinte, de manhã cedo, levávamos um pratinho de sarrabulho aos vizinhos. Era feito de bicas de farinha de milho com mistura de centeio amassada num alguidar e cozidas no pote de cabaço, que depois se cortavam às rodelas para dentro de uma sopeira de barro, e se cobria de rojões, de acordo com a família a presentear.
Não saíamos da sua porta sem que aceitassem. Quando tal, aparecia a Ti Maria: “Meu filho, este ano não mato o porco. Leva o sarrabulho!”, e eu respondia: “Não senhora! O sarrabulho é para você!”, e ela aceitava o meu pratinho, ia despejar o convite, e na volta trazia-o cheio de batatas. Que agradável era este modo de partilhar.
Depois vinham os Serões para malhar as espigas, fiar a lã das ovelhas e cantar.
Em geral eram ao sábado, e vinha gente dos lugares vizinhos. Depois de debulhar as espigas com o malho e de escaroçar o resto do milho, aparecia a Ti Maria a cantar “Ó moças cantai, cantai, que o que passou, já lá vai!”, e todos dançavam ao som do fanga-fanga do harmónio do Ti Zé do Almónico, do “bira-que-bira” das moças e da voz do mandador “Bate certo! Seguidinho! Duas voltas! Ao meio! Palminhas para acertar!”.
E as raparigas em coro cantavam ao Ti Zé:
O Tocador do Almónico,
É bonito e toca bem!
Ó moças olhai para ele,
Olha a graça que ele tem!
Já madrugada, ainda a Ti Maria nos dizia: “Não vades embora já! Que bem cantades! Aguentai até de manhã!” Então, as moças faziam uma fogueira com lenha de urzeira, e assavam chouriças de fumeiro, para o pequeno-almoço. E quando já nos preparávamos para partir, lá vinha ela outra vez, com umas tigelas de café com mel e pão de milho cozido, dizendo: “Não vades antes do café!”, e, na hora da despedida, metia-nos no bolso do casaco, um pedaço de toucinho para o caminho, que fazíamos a olhar para traz, acenando-lhe de vez em quando com o lenço.
Hoje tudo isto acabou. Que saudade eu tenho da água de unto da Ti Maria, do fanga-fanga do Ti Zé do Almónico e daquele viver “tradicional”!
Texto fundamentado, num manuscrito com as memórias do Sr. António Carvalho (1931- … )
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Ansiedades 1
- “Mas está aqui escrito que a Sra. se tentou matar!”
- “Não Sr. Dr.! Eu estou, é desesperada! Nunca o pensei capaz daquilo!", respondia entre muitos soluços, aquela mulher bonita, de 32 anos, enviada ao Serviço de Urgência com o diagnóstico de “intenções suicidas”.
- “Eu sei que lhe custa, mas vai ter de me contar o que é que o seu companheiro lhe fez para que a Sra. ficasse neste estado!”, insisto, face à primeira recusa, que me pareceu motivada por pudor.
- “É que eu fui ao Computador dele e vi lá uma file cheia de material pornográfico. Fotografias e vídeos!”, responde por fim, no meio de muitos soluços e assoadelas, a intumescerem-lhe ainda mais a face.
Pondero a sua reacção ao que tenho em mente, e a medo pergunto:
- “Mas era ele que estava nos filmes e nas fotografias?”
Não era! Ufff!
- “Oh minha senhora! Onde é que a Sra. andou nestes últimos trinta anos! A maior parte dos homens troca esse material, como os catequistas de antigamente trocavam santinhos. A maior parte não guarda! Vê e faz “delete”, ... ou já nem vê, porque se fartou de ver! Que idade tem o seu companheiro?”
- “Tem trinta! … mas … podia não me ter escondido aquilo!”, ainda a fungar.
- “Olhe! Agora a sério! A senhora não lhe respeitou a privacidade. Quem devia estar furioso consigo, era ele! E se calhar está lá fora cheio de culpa! Já viu a situação que criou. Não seria melhor, não ter ido ao seu computador pessoal? Vá lá ter com ele, falem, mas não arengue em moralista, que você não tem cara de Madre Teresa! Quer tomar um comprimido “para os nervos” antes de sair?”
- “Não! Acho que não preciso! Obrigada!”
- “Não Sr. Dr.! Eu estou, é desesperada! Nunca o pensei capaz daquilo!", respondia entre muitos soluços, aquela mulher bonita, de 32 anos, enviada ao Serviço de Urgência com o diagnóstico de “intenções suicidas”.
- “Eu sei que lhe custa, mas vai ter de me contar o que é que o seu companheiro lhe fez para que a Sra. ficasse neste estado!”, insisto, face à primeira recusa, que me pareceu motivada por pudor.
- “É que eu fui ao Computador dele e vi lá uma file cheia de material pornográfico. Fotografias e vídeos!”, responde por fim, no meio de muitos soluços e assoadelas, a intumescerem-lhe ainda mais a face.
Pondero a sua reacção ao que tenho em mente, e a medo pergunto:
- “Mas era ele que estava nos filmes e nas fotografias?”
Não era! Ufff!
- “Oh minha senhora! Onde é que a Sra. andou nestes últimos trinta anos! A maior parte dos homens troca esse material, como os catequistas de antigamente trocavam santinhos. A maior parte não guarda! Vê e faz “delete”, ... ou já nem vê, porque se fartou de ver! Que idade tem o seu companheiro?”
- “Tem trinta! … mas … podia não me ter escondido aquilo!”, ainda a fungar.
- “Olhe! Agora a sério! A senhora não lhe respeitou a privacidade. Quem devia estar furioso consigo, era ele! E se calhar está lá fora cheio de culpa! Já viu a situação que criou. Não seria melhor, não ter ido ao seu computador pessoal? Vá lá ter com ele, falem, mas não arengue em moralista, que você não tem cara de Madre Teresa! Quer tomar um comprimido “para os nervos” antes de sair?”
- “Não! Acho que não preciso! Obrigada!”
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Os Fiscais
- E o Quim continua desempregado?
- Está pelo Fundo de Desemprego, mas trabalha nas obras de um empreiteiro amigo! Só que agora anda com a roupa de domingo, para o caso de aparecerem os fiscais, não o questionarem, ao vê-lo com roupa de trabalho!
domingo, 12 de setembro de 2010
Pastor
Olhe que é verdade! Se o cão lá estivesse, ele não lhe batia. De uma das vezes que levantou a mão para a minha mãe, ele arreganhou-lhe os dentes, e agora, quando se "passa", assegura-se que o cão não está por perto.
O bicho não foi ensinado. De manhã vai com ele e as ovelhas, para uma leira no monte. Às vezes, aborrece-se e vem para casa mas, ao fim da tarde volta lá para as trazer. E olhe que não as deixa misturar com as outras! Com as galinhas é a mesma coisa. As da casa não as quer longe do galinheiro, e ladra às das vizinhas. Foi o homem do talho que o deu ao meu pai, há para aí cinco anos. Guarda a casa, mas na rua não ladra a ninguém.
Fosse ele capaz, e proibia-o de beber!
O bicho não foi ensinado. De manhã vai com ele e as ovelhas, para uma leira no monte. Às vezes, aborrece-se e vem para casa mas, ao fim da tarde volta lá para as trazer. E olhe que não as deixa misturar com as outras! Com as galinhas é a mesma coisa. As da casa não as quer longe do galinheiro, e ladra às das vizinhas. Foi o homem do talho que o deu ao meu pai, há para aí cinco anos. Guarda a casa, mas na rua não ladra a ninguém.
Fosse ele capaz, e proibia-o de beber!
Centenários
Não resisto à divulgação desta notícia.
É bem certo que “Os homens fazem todo o mal que podem, e todo o bem a que são obrigados”
É bem certo que “Os homens fazem todo o mal que podem, e todo o bem a que são obrigados”
Que o diga a família de Sogen Kato
Adenda: Em Portugal o Decreto-Lei nº 329/93, no Artigo 89.º, obriga a que os pensionistas de invalidez e de velhice façam prova de vida (presencial ou testemunhal) na Junta de Freguesia onde residem.
Pelo menos nisto somos melhores que os japoneses.
sábado, 11 de setembro de 2010
A Fuga
-"Calma Marina! Não aumente ainda mais o problema!”, dizia, a tentar controlar a auxiliar, que alternava as mãos entre a cabeça e os joelhos, numa aflição irreprimível, depois de ter visto o doente saltar pela janela.
-"Ele partiu o vidro com aquele vaso de flores, e depois enfiou-se pelo buraco e desapareceu!", repetia, apontando para o negro do telhado do 4º andar através da janela partida. –“Estava descalço e só tinha as calças do pijama vestidas. Ele é tão grande! Ninguém o conseguia segurar. Aiiiiii! Sr. Dr.! ... O homem matou-se!", e não parava de andar de um lado para o outro.
-“Marina, deixe lá o choro, que não adianta, e só perturba! Veja se fica calada, para a gente poder pensar. Enfermeiro Ruiz, conte lá o que se passou!"
-"É o doente da cama 5. Entrou ontem com uma cirrose hepática e deve estar com delírio alcoólico. Esteve bem durante a tarde. À meia-noite, recusou a medicação e começou a ficar agitado, dizendo que eu o queria matar com as injecções. Passei-o à frente e continuei a dar a medicação aos outros. Quando voltei a ele, deviam ser umas duas horas, começou o sarilho. Ficou muito perturbado com a minha presença e, quando eu me tentei aproximar, fugiu para o átrio dos elevadores e, … atirou-se pela janela!"
-Ok! Você consegue vê-lo ali em baixo, no meio deste escuro?"
-"Não se vê nada! Ele também de branco pouco tem, embora volume não lhe falte. Pesa bem mais que 100Kg! Nem sei como é que ele passou pelo buraco do vidro. Deve estar todo cortado!" E depois de uns longos segundos a esticar-se pela janela, identifica-o a andar pelo telhado, uns cinquenta metros para lá do local da queda.
-“Está ali! Vai na direcção da janela iluminada do Serviço de Obstetrícia, no outro módulo do Hospital! ... Está aos gritos ao telefone a pedir para o virem buscar, que o querem matar!”
-“Pelo menos está vivo! Avisem os Porteiros, as Oficinas e a Polícia para ver se lhe deitamos a mão antes que ele caia dali abaixo. Como é que se chega onde ele está?”, e, enquanto uns lhe tentam adivinhar os movimentos, outros saem em direcção ao possíveis locais de fuga.
-“Esperem! Ele desapareceu! Deve-se ter atirado do telhado abaixo!”
São três horas da manhã, quando se inicia a “caça ao homem”.
-“Você vai por ali! Eu por acolá e você Marina, fica aqui com o enfermeiro Ruiz a tomar conta dos outros doentes. Se alguém o encontrar, telefona para o Serviço de Urgência!”
Dou uma volta pelo exterior do edifício e pelo local da possível queda, sem ver vivalma, e entro pelo Serviço de Urgência. Foi a Polícia que o encontrou. Estava na primeira rotunda, bem fora da cerca do Hospital.
Está agora na Sala de Pequena Cirurgia, sentado num banco, de tronco nu, descalço e com múltiplas feridas cortantes dispersas pelo tronco, mãos, pernas e pés. À volta destes o sangue faz desenhos no chão de mármore. É um homem gordo, escuro e tem o ar assustado de um urso acossado, sempre atento à porta de entrada, como que a prever o reaparecimento do enfermeiro do serviço, enquanto a enfermeira o punciona e lhe diz com voz estrelada:
- “Tenha calma! Nós somos amigos! Aqui ninguém lhe faz mal! Deite-se ai na marquesa, para lhe limparmos as feridas que tem debaixo dos pés!”, e, como por milagre as pálpebras descem-lhe sobre o amarelo dos olhos e a cai na maca, leve como uma criança, no colo da mãe.
- “Sr. Manuel! Sr. Manuel!”, e depois, olhando para o ao lado: “Já o sedaram!? Que rápidos! Eu nem notei! ... Está lá fora a mulher! Deixem-na ficar com ele, para que, ao acordar, não voltemos ao mesmo! ... Até amanhã!”
-"Ele partiu o vidro com aquele vaso de flores, e depois enfiou-se pelo buraco e desapareceu!", repetia, apontando para o negro do telhado do 4º andar através da janela partida. –“Estava descalço e só tinha as calças do pijama vestidas. Ele é tão grande! Ninguém o conseguia segurar. Aiiiiii! Sr. Dr.! ... O homem matou-se!", e não parava de andar de um lado para o outro.
-“Marina, deixe lá o choro, que não adianta, e só perturba! Veja se fica calada, para a gente poder pensar. Enfermeiro Ruiz, conte lá o que se passou!"
-"É o doente da cama 5. Entrou ontem com uma cirrose hepática e deve estar com delírio alcoólico. Esteve bem durante a tarde. À meia-noite, recusou a medicação e começou a ficar agitado, dizendo que eu o queria matar com as injecções. Passei-o à frente e continuei a dar a medicação aos outros. Quando voltei a ele, deviam ser umas duas horas, começou o sarilho. Ficou muito perturbado com a minha presença e, quando eu me tentei aproximar, fugiu para o átrio dos elevadores e, … atirou-se pela janela!"
-Ok! Você consegue vê-lo ali em baixo, no meio deste escuro?"
-"Não se vê nada! Ele também de branco pouco tem, embora volume não lhe falte. Pesa bem mais que 100Kg! Nem sei como é que ele passou pelo buraco do vidro. Deve estar todo cortado!" E depois de uns longos segundos a esticar-se pela janela, identifica-o a andar pelo telhado, uns cinquenta metros para lá do local da queda.
-“Está ali! Vai na direcção da janela iluminada do Serviço de Obstetrícia, no outro módulo do Hospital! ... Está aos gritos ao telefone a pedir para o virem buscar, que o querem matar!”
-“Pelo menos está vivo! Avisem os Porteiros, as Oficinas e a Polícia para ver se lhe deitamos a mão antes que ele caia dali abaixo. Como é que se chega onde ele está?”, e, enquanto uns lhe tentam adivinhar os movimentos, outros saem em direcção ao possíveis locais de fuga.
-“Esperem! Ele desapareceu! Deve-se ter atirado do telhado abaixo!”
São três horas da manhã, quando se inicia a “caça ao homem”.
-“Você vai por ali! Eu por acolá e você Marina, fica aqui com o enfermeiro Ruiz a tomar conta dos outros doentes. Se alguém o encontrar, telefona para o Serviço de Urgência!”
Dou uma volta pelo exterior do edifício e pelo local da possível queda, sem ver vivalma, e entro pelo Serviço de Urgência. Foi a Polícia que o encontrou. Estava na primeira rotunda, bem fora da cerca do Hospital.
Está agora na Sala de Pequena Cirurgia, sentado num banco, de tronco nu, descalço e com múltiplas feridas cortantes dispersas pelo tronco, mãos, pernas e pés. À volta destes o sangue faz desenhos no chão de mármore. É um homem gordo, escuro e tem o ar assustado de um urso acossado, sempre atento à porta de entrada, como que a prever o reaparecimento do enfermeiro do serviço, enquanto a enfermeira o punciona e lhe diz com voz estrelada:
- “Tenha calma! Nós somos amigos! Aqui ninguém lhe faz mal! Deite-se ai na marquesa, para lhe limparmos as feridas que tem debaixo dos pés!”, e, como por milagre as pálpebras descem-lhe sobre o amarelo dos olhos e a cai na maca, leve como uma criança, no colo da mãe.
- “Sr. Manuel! Sr. Manuel!”, e depois, olhando para o ao lado: “Já o sedaram!? Que rápidos! Eu nem notei! ... Está lá fora a mulher! Deixem-na ficar com ele, para que, ao acordar, não voltemos ao mesmo! ... Até amanhã!”
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Psiquiatria de Urgência
- "Socorro! SOCORRO! Quem me ACOOOOOODEEEEEEEE!", grita o psiquiatra na sala ao lado.
Levanto-me a correr e, no meio de maqueiros e enfermeiros, abro-lhe a porta do consultório, e ficamos todos à espera de uma ordem, pois o doente, um homem bem parecido, de cerca de 40 anos, parece calmo.
- "Dr.! Quer que chame a Polícia?"
- "Obrigado! Parece que não vai ser necessário. Quero só que lhe tirem esse saco que ele tem aos pés. É que eu tenho medo que ele tenha aí qualquer objecto com que me possa agredir!", sussurra depois de o contornar e se aproximar do grupo.
…
Minutos mais tarde ...
- "A colega não percebeu que eu estava em apuros, e que aquela conversa tinha a intenção de ganhar tempo para que alguém me ajudasse?"
- "Desculpe! Eu apercebi-me que o vosso diálogo tinha grandes variações de tom, e que o doente por vezes assumia uma postura agressiva, acusando-o de ser o responsável por um “chip” que tinha na cabeça. Mas não me passou pela cabeça que o estivesse a ameaçar!"
- "Você nem queira saber! Ele disse que tinha ali uma arma para me matar, e eu só chamei por ajuda, quando ele deitou a mão ao saco. ... Vocês têm de estar atentos ao que se passa no Serviço de Urgência, principalmente com quem lida com doentes com perturbações mentais".
- "Eu já tinha reparado nele, quando entrei ao serviço e me pus, com os processos na secretária, a planear o que ia fazer. Ele assomou à minha porta e disse: “Então aqui não se trabalha? Ninguém chama os doentes? Vi-vos entrar, e ainda não vos vi fazer nada!”, mas depois de lhe ter pedido calma e o ter informado que o psiquiatra não demorava, ele ficou calado. Eu ia lá adivinhar que ele era esquizofrénico? Há tanto malcriado por aí!"
Levanto-me a correr e, no meio de maqueiros e enfermeiros, abro-lhe a porta do consultório, e ficamos todos à espera de uma ordem, pois o doente, um homem bem parecido, de cerca de 40 anos, parece calmo.
- "Dr.! Quer que chame a Polícia?"
- "Obrigado! Parece que não vai ser necessário. Quero só que lhe tirem esse saco que ele tem aos pés. É que eu tenho medo que ele tenha aí qualquer objecto com que me possa agredir!", sussurra depois de o contornar e se aproximar do grupo.
…
Minutos mais tarde ...
- "A colega não percebeu que eu estava em apuros, e que aquela conversa tinha a intenção de ganhar tempo para que alguém me ajudasse?"
- "Desculpe! Eu apercebi-me que o vosso diálogo tinha grandes variações de tom, e que o doente por vezes assumia uma postura agressiva, acusando-o de ser o responsável por um “chip” que tinha na cabeça. Mas não me passou pela cabeça que o estivesse a ameaçar!"
- "Você nem queira saber! Ele disse que tinha ali uma arma para me matar, e eu só chamei por ajuda, quando ele deitou a mão ao saco. ... Vocês têm de estar atentos ao que se passa no Serviço de Urgência, principalmente com quem lida com doentes com perturbações mentais".
- "Eu já tinha reparado nele, quando entrei ao serviço e me pus, com os processos na secretária, a planear o que ia fazer. Ele assomou à minha porta e disse: “Então aqui não se trabalha? Ninguém chama os doentes? Vi-vos entrar, e ainda não vos vi fazer nada!”, mas depois de lhe ter pedido calma e o ter informado que o psiquiatra não demorava, ele ficou calado. Eu ia lá adivinhar que ele era esquizofrénico? Há tanto malcriado por aí!"
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
A Televisão
- E quem trouxe a Sr. Glória?
- Foi uma sobrinha que a encontrou meio caída na cama, na manhã de sábado, sem dar acordo de si e a arder em febre. É ela que a arranja e a leva ao Centro de Dia, mas à noite é outra que a deita, pelo que esta não sabe como é que ela estava ao fim do dia. Fica todas as noites sozinha, já não se levanta e há muito que não diz coisa com coisa.
- Foi uma sobrinha que a encontrou meio caída na cama, na manhã de sábado, sem dar acordo de si e a arder em febre. É ela que a arranja e a leva ao Centro de Dia, mas à noite é outra que a deita, pelo que esta não sabe como é que ela estava ao fim do dia. Fica todas as noites sozinha, já não se levanta e há muito que não diz coisa com coisa.
- E ao fim de semana?
- Antes de Abril ainda lhe metiam um braço de cada lado e levavam-na a almoçar à casa da que vive mais perto. Desde então, vão lá para a higiene e para as refeições!
- E, ela não tem gato nem cão?
- Não! Põem-na em frente da Televisão, mas ela já não lhe liga.
- Antes de Abril ainda lhe metiam um braço de cada lado e levavam-na a almoçar à casa da que vive mais perto. Desde então, vão lá para a higiene e para as refeições!
- E, ela não tem gato nem cão?
- Não! Põem-na em frente da Televisão, mas ela já não lhe liga.
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
A Moto 4
- Oh Dr.! Ela tem um feitio terrível. Sempre fez o que queria. Mesmo agora com oitenta e cinco anos ninguém tem mão nela! Vive numa quintinha lá para os lados de Valença, com a ajuda de uma surda-muda, que “só lá vai quando lhe apetece” e que só a atura, porque não a ouve!
Muita sorte teve ela no acidente, em só partir umas costelas e não ter morto ninguém. Diz que levava capacete, que ia devagar, e que a rapariga do carro contra quem chocou não sofreu nada.
- E há quanto tempo é que ela andava de Moto 4?
- Tinha-a comprado há dois dias, depois de ter vendido um desses carros que não necessitam de carta, a que chamam “os mata-velhos”. Parece que estava tudo legal.
O filho, que vive na América, esteve cá ontem e completou a história. Ela, ainda jovem foi servir para Lisboa e por lá casou aos 25 anos. Mas o casamento não correu bem. Aos 40 anos divorciou-se e, anos depois, emigrou com o filho para Clermont-Ferrant. Foi aí que ela aprendeu a andar de moto. Só lá estiveram 4 anos, porque voltaram a emigrar para os Estados Unidos, onde continuaram a morar juntos, sempre com uma relação difícil por causa da sua autonomia. Aos sessenta e cinco anos, decidiu voltar sozinha, para viver numa quintinha de uma cunhada, que está internada num Lar, lá nos States.
Muita sorte teve ela no acidente, em só partir umas costelas e não ter morto ninguém. Diz que levava capacete, que ia devagar, e que a rapariga do carro contra quem chocou não sofreu nada.
- E há quanto tempo é que ela andava de Moto 4?
- Tinha-a comprado há dois dias, depois de ter vendido um desses carros que não necessitam de carta, a que chamam “os mata-velhos”. Parece que estava tudo legal.
O filho, que vive na América, esteve cá ontem e completou a história. Ela, ainda jovem foi servir para Lisboa e por lá casou aos 25 anos. Mas o casamento não correu bem. Aos 40 anos divorciou-se e, anos depois, emigrou com o filho para Clermont-Ferrant. Foi aí que ela aprendeu a andar de moto. Só lá estiveram 4 anos, porque voltaram a emigrar para os Estados Unidos, onde continuaram a morar juntos, sempre com uma relação difícil por causa da sua autonomia. Aos sessenta e cinco anos, decidiu voltar sozinha, para viver numa quintinha de uma cunhada, que está internada num Lar, lá nos States.
Agora está tudo a monte, mas houve tempo em que ela a teve cuidada, embora nunca fizesse grandes obras. Foi até num desses arranjos, que caiu do telhado e fracturou a perna direita. Parece que estava a pôr umas pedras em cima de umas telhas que tinham voado com o vento.
- E agora? Vai voltar para casa, ou o filho leva-a para a América?
- Não sei! Para já vai para uma Unidade de Convalescença, e entretanto vê-se qual o grau de autonomia que consegue e a disponibilidade do filho. Agora que gastou todo o dinheiro na moto, parece mais convencida das suas limitações, e que aquele tempo em “não havia nada que eu não fizesse” já passou.
- E agora? Vai voltar para casa, ou o filho leva-a para a América?
- Não sei! Para já vai para uma Unidade de Convalescença, e entretanto vê-se qual o grau de autonomia que consegue e a disponibilidade do filho. Agora que gastou todo o dinheiro na moto, parece mais convencida das suas limitações, e que aquele tempo em “não havia nada que eu não fizesse” já passou.
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Obesidade Mental
O termo pretende definir o efeito da Comunicação Social sobre uma população pouco esclarecida, ao atafulhá-la de informação distorcida ou irrelevante. O conceito é útil, embora o texto o empole.
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Muriel por Ruy Belo
MURIEL
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas para dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas para dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido
domingo, 5 de setembro de 2010
A Velocidade
No Mundo actual, e no nosso país em particular, o imediato domina as atenções, tal é a pressão que a comunicação social faz sobre o minuto em que se vive.
Neste contexto, onde não é necessário conhecer o passado nem projectar o futuro, todos podem ter opinião, até porque ela é um dos ingredientes para o espectáculo em que se tornou o dia a dia.
Transformámo-nos em bombeiros voluntários, sem conhecimentos, nem equipamentos, impelidos a acudir a supostas emergências, ignorantes dos riscos das nossas acções pouco acertadas.
...
Milan Kundera in "A Lentidão".
“... o homem inclinado para a frente na sua motorizada só pode concentrar-se naquele exato momento de seu vôo; agarra-se a um fragmento de tempo cortado tanto do passado como do futuro; é arrancado à continuidade do tempo; está fora do tempo; por outras palavras, está num estado de êxtase; nesse estado, nada sabe da sua idade, nada da mulher, nada dos filhos, nada das suas preocupações e, portanto, não tem medo, porque a fonte do medo está no futuro e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase com que a revolução técnica presenteou o homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé continua presente no seu corpo, obrigado ininterruptamente a pensar nas suas bolhas, no seu ofegar; quando corre, sente o seu peso, a sua idade, mais consciente do que nunca de si prórpio e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a faculdade da velocidade a uma máquina: a partir de então, o seu próprio corpo sai do jogo e ele entrega-se a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.”
sábado, 4 de setembro de 2010
A Justiça
Foi assim que Miguel Torga pôs a Justiça num conto anterior a 1941, data da 1ª edição dos "Contos da Montanha"
Por mais ordeiro que um povo seja, sempre há coisa. É uma asneira que se diz, um marco que o arado arranca, uma cabra lambisqueira que salta à vinha de alguém, duas maçãs que uma criança rouba. Mas tudo isso não vale nada. As mulheres engaleiam-se, o falatório no tanque anima-se, discute-se nas cavas, e acaba tudo em águas de bacalhau. No tempo do Leonardo, porém, Deus nos livrasse! Aquele cobardola só sabia dizer:
- Embargo! Ou fazes o que eu digo, ou vou à vila e enrolo-te em meia folha de papel selado.
- Se tem assim tanta razão, salte! Salte para aqui, e tiram-se as teimas de homem para homem.
Olha lá não saltasse! Metia o rabo entre as pernas, e tribunal.
Ora o que a justiça quer é comer. Certo e sabido: vai-se ter com o Dr. Valério a Murça, e é logo:
- Você está cheio de razão, alma de Deus! Ponha a questão, que não há ninguém que lha perca. Se quiser, passe-me uma procuração, deixe trezentos mil réis para preparos, e o resto é comigo.
Um céu aberto. Até parece que a gente já está a ouvir o juiz. Mas depois é que são elas! Começa um moedoiro de dinheiro, que não há bolsa que chegue. O advogado só diz:
- Então agora, que isto vai tão bem encaminhado, é que você se quer compor?!
E cantem para aqui mais cinco notas! O pior é que daqui a um mês, zás: uma cartinha. "Senhor Fulano, é favor comparecer no meu escritório". Desce a gente de escantilhão pela serra abaixo, numas ânsias a cuidar mil coisas. E o que há-de ser? "Tenha paciência, isto não anda sem a mola real ..."
Até que chega o dia da audiência. Aí, então, é como quem quer livrar um filho. Presente a este, presente àquele, tia Preciosa, pelo amor de Deus, diga a verdade e beba mais uma pinga. E para nada, afinal de contas, porque o outro advogado, que é um bandalho da mesma raça, embrulha tudo. "Ora explique-me lá isso bem explicado! Não minta ..." A gente, quando se senta naquelas cadeiras, fica logo como há-de ir. Fazem-nos falar, apertam, apertam, e quem é que não cai? Tiram de nós o que eles querem. "Diga. Diga! Ora assim, sim! Vê como é tudo ao contrário do que pensava?!" Só visto! Ao fim, sai uma sentença que não é carne nem é peixe, uma pessoa fica borrada, empenhada até às orelhas, e a dever favores até às pedras da rua.
...
... com as devidas adaptações à actualidade, ... a coisa mantém-se!
Por mais ordeiro que um povo seja, sempre há coisa. É uma asneira que se diz, um marco que o arado arranca, uma cabra lambisqueira que salta à vinha de alguém, duas maçãs que uma criança rouba. Mas tudo isso não vale nada. As mulheres engaleiam-se, o falatório no tanque anima-se, discute-se nas cavas, e acaba tudo em águas de bacalhau. No tempo do Leonardo, porém, Deus nos livrasse! Aquele cobardola só sabia dizer:
- Embargo! Ou fazes o que eu digo, ou vou à vila e enrolo-te em meia folha de papel selado.
- Se tem assim tanta razão, salte! Salte para aqui, e tiram-se as teimas de homem para homem.
Olha lá não saltasse! Metia o rabo entre as pernas, e tribunal.
Ora o que a justiça quer é comer. Certo e sabido: vai-se ter com o Dr. Valério a Murça, e é logo:
- Você está cheio de razão, alma de Deus! Ponha a questão, que não há ninguém que lha perca. Se quiser, passe-me uma procuração, deixe trezentos mil réis para preparos, e o resto é comigo.
Um céu aberto. Até parece que a gente já está a ouvir o juiz. Mas depois é que são elas! Começa um moedoiro de dinheiro, que não há bolsa que chegue. O advogado só diz:
- Então agora, que isto vai tão bem encaminhado, é que você se quer compor?!
E cantem para aqui mais cinco notas! O pior é que daqui a um mês, zás: uma cartinha. "Senhor Fulano, é favor comparecer no meu escritório". Desce a gente de escantilhão pela serra abaixo, numas ânsias a cuidar mil coisas. E o que há-de ser? "Tenha paciência, isto não anda sem a mola real ..."
Até que chega o dia da audiência. Aí, então, é como quem quer livrar um filho. Presente a este, presente àquele, tia Preciosa, pelo amor de Deus, diga a verdade e beba mais uma pinga. E para nada, afinal de contas, porque o outro advogado, que é um bandalho da mesma raça, embrulha tudo. "Ora explique-me lá isso bem explicado! Não minta ..." A gente, quando se senta naquelas cadeiras, fica logo como há-de ir. Fazem-nos falar, apertam, apertam, e quem é que não cai? Tiram de nós o que eles querem. "Diga. Diga! Ora assim, sim! Vê como é tudo ao contrário do que pensava?!" Só visto! Ao fim, sai uma sentença que não é carne nem é peixe, uma pessoa fica borrada, empenhada até às orelhas, e a dever favores até às pedras da rua.
...
... com as devidas adaptações à actualidade, ... a coisa mantém-se!
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Um desabafo
Quando o SNS universal e gratuito, dava os seus primeiros passos e se media com um significativo incremento de doentes, um dos grandes problemas do Serviço de Urgência, era a escassa e morosa disponibilidade de meios auxiliares de diagnóstico, efectuados maioritariamente por processos manuais.
Na "Triagem", havia que ser comedido, pois do outro lado estava um médico que facilmente se “afogava” se não houvesse contenção, o que era perceptível pelo atraso das suas respostas. Em tais circunstâncias, se me era imperiosa qualquer análise, ia em mão entregá-la e justificar as razões.
Nesse dia levava um frasco de urina. Assomo à porta do Laboratório, meio a medo, e deparo com as costas do analista debruçadas sobre a banca de trabalho
- "Dr. Silva! Posso?", digo, a tentar medir-lhe a disponibilidade.
- "Diga, que eu já tenho aqui que fazer até à noite!", responde, sem levantar os olhos do microscópio, enquanto com a mão direita continuava a clicar no contador de células.
- "Dr. Silva! Eu vejo que isto aqui está complicado, mas tenho um doente lá fora, cheio de febre, que penso ter uma infecção urinária. Será que daria para fazer um sedimento urinário?", arrisco a pergunta, adocicando a voz, o mais que posso.
- “Outro? Na última hora é o quarto que pedem!”, responde, mal-humorado. "Pouse aí na bancada, e prepare-se para esperar!" E num desabafo de desespero, completa:– “Sabe! Isto aqui é um Laboratório! Não é um Mictório!”
- “Obrigado! Dr. Silva! Eu vou ver se este é o último de hoje!”, e saí meio a rir, meio aliviado por a conversa ter ficado por ali.
- "Dr. Silva! Posso?", digo, a tentar medir-lhe a disponibilidade.
- "Diga, que eu já tenho aqui que fazer até à noite!", responde, sem levantar os olhos do microscópio, enquanto com a mão direita continuava a clicar no contador de células.
- "Dr. Silva! Eu vejo que isto aqui está complicado, mas tenho um doente lá fora, cheio de febre, que penso ter uma infecção urinária. Será que daria para fazer um sedimento urinário?", arrisco a pergunta, adocicando a voz, o mais que posso.
- “Outro? Na última hora é o quarto que pedem!”, responde, mal-humorado. "Pouse aí na bancada, e prepare-se para esperar!" E num desabafo de desespero, completa:– “Sabe! Isto aqui é um Laboratório! Não é um Mictório!”
- “Obrigado! Dr. Silva! Eu vou ver se este é o último de hoje!”, e saí meio a rir, meio aliviado por a conversa ter ficado por ali.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Lisboa
Vive-se em Lisboa de uma forma que não se vive no resto do país. Tenho assistido a coisas que não pensava existirem. Vive-se de milhões de euros, de jantaradas, de almoçaradas, de grandes festas e, sobretudo, de grandes negociatas. Vivemos num país demasiado centralista e demasiado centralizado.
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
A Reforma
- Então!? Não se reforma? Você precisa de aturar esses gajos?
- Desculpe lá, mas eu não entendo a coisa assim! Esses gajos, como você lhes chama, não são vitalícios, e eu não entendo a reforma como uma libertação.
- Olhe que se eu pudesse, era já hoje. Metia-me a passear por aí fora, com a patroa, e dedicava-me ao jardim e aos netos.
- Mas eu não penso assim. A mim só me incomoda o trabalho, quando ele ultrapassa as minhas capacidades, de resto, sempre achei graça àquilo que fiz! O que eu queria era reduzir a carga horária e ter mais dias de férias, sem me mexerem no ordenado. Coisa como trabalhar das 9:00h às 13:00h, cinco dias na semana e ter dois meses de férias. Mas depois dos 65, queria só trabalhar quatro dias na semana, ter três meses de férias, e uma actividade menos exigente. Esta coisa de passar a reforma para os 65 ou para os 67 anos, devia ser acompanhada por medidas deste tipo. Já chegaram as cargas horárias de outros tempos, em que trabalhei mais de 70 horas por semana! Agora são os meus filhos que estão nessa. E, se retirarem disponibilidade aos avós, quem dá coesão à família vai ser a empregada doméstica, se a tiverem.
- É verdade! Nos dias de hoje, a maior parte dos empregos, com as deslocações, consomem o dia todo. Com sorte, metem os miúdos na cama. E ainda se fala de políticas de protecção às famílias.
- Lembras-te, quando em Julho de 2007, o ministro José Vieira da Silva, se congratulou com o alargamento do horário de funcionamento dos infantários, e até deu como exemplo uma creche em Vila Nova de Cerveira: «… que estava aberta das sete da manhã até as dez noite e estava cheia». Esquecem-se daquela máxima, que eu acho muito feliz: "Educação é aquilo que eu aprendi com os meus pais, quando eles não me estavam a ensinar nada!" Depois queixam-se de acontecimentos como os de Novembro de 2007 em Paris.