sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Burned in


Passamos sem nada que nos lembre, ou deixamos (que mais não seja) uma história. Lembramos situações de quem vimos uma única vez na vida e de quem se cruzou connosco nos corredores de todos os dias, principalmente quando a doença ou qualquer facto nos fragiliza e faz saltar o lado B de cada um de nós.

Marta era uma mulher de peso. Onde estivesse focalizava olhares e, até ao longe, aquele cilindro com uma trufa de cabelo ralo encaracolado no topo, marcava presença pelo andar de perna aberta e ombro a dar com a anca.
Quis o destino atingir essa força com um enfarte do miocárdio, e obrigá-la à via-sacra de exames, pareceres e intervenções, até à “Alta”, medicada com … 

Habituada a pôr e a dispor, a inactividade que se lhe seguiu, centrou-a nos pormenores da saúde. Hoje isto, amanhã aquilo. …-Esta dor, Sr. Dr.? …- E este mal-estar que me afoba e que me engulha, é do mal ou do remédio? … - Estou bem, ou vou da próxima?
E uma sucessão de exames e terapêuticas de corredor, de consultório e de cama de urgência, sem sucesso, fizeram com que a inicial preocupação com uma profissional na mesma arte, se transformasse numa maçada que só a custo se assumia.
- Outra vez? Marta? O que foi agora? É a dor, ou a angústia?
E com mais palavras e estudos, aos poucos todos foram descrendo de ver coelho sair daquela lura.
Naquele dia, como sempre, as queixas distribuíam-se por quem passava perto da cama que ocupava no Serviço de Urgência.
-Sr. Enfermeiro! Dê-me qualquer coisa! … -Sr. Dr. olhe aqui! … -Oh! Manuel! Ajuda-me que eu vou morrer!, dirigiu-se, por fim ao maqueiro, que passava nas imediações.
O Sr. Manuel era da sua criação. Um excesso de vida, atirara-o para aquela profissão, sem perder a postura de quem fora desafogado. Conhecedor do “caso Marta” e da sua insistência, tomada por insensata, não resistiu à graça na resposta, e como um tiro seco, respondeu-lhe, enquanto se distanciava, para se mostrar na totalidade:
- Olha bem para mim, Marta! Eu sou maqueiro! Vês? Eu não tenho solução para ti! … E … se vais morrer, … tu é que me podias dar uma ajuda, e ias a pé até à morgue!

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