terça-feira, 8 de julho de 2014

Carreiras Médicas


Carreiras Médicas: Morte Confirmada
Por Daniel Sampaio, Professor de Psiquiatria, publicado no Público P2 em Junho de 2012

Sou do tempo em que ter uma boa carreira médica era motivo de orgulho e satisfação. Sou da época em que triunfar nos concursos públicos era razão para festa. A saudável competição contribuía para um estudo aprofundado e permitia premiar o mérito. Dizia-se que o médico tinha de estudar sempre para não falhar. Trabalhar num serviço prestigiado valorizava o curriculum.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) estruturava-se em carreiras que asseguravam um excelente conjunto de profissionais, disponíveis para os doentes e em permanente atualização técnica. Os Chefes de Serviço não eram muitos, mas quase sempre eram os melhores, pois tinham um percurso profissional exigente, avaliado pelos seus pares e legitimado por uma longa prática profissional. Existiam equipas e unidades funcionais nos serviços, chefiadas pelos mais experientes, verdadeiros locais de formação para os mais novos. As hierarquias estavam bem definidas e, quando existiam problemas, as responsabilidades eram sempre dos mais credenciados.

Há anos tudo acabou. Foi a morte anunciada das carreiras médicas. Quando se passou aos «contratos individuais de trabalho», as influências e compadrios aumentaram. Nem sempre se recrutaram os melhores. Em certos hospitais, sobretudo privados, desapareceram as reuniões de equipa e a responsabilidade foi diluída. Noutros, dezenas de médicos trabalham individualmente e são elogiados pelo número de consultas, sem qualquer verificação de qualidade. Interessam números, pouco importam as pessoas.

Esta morte anunciada das carreiras médicas foi agora confirmada. O governo mandou publicar no DR de 14/5/2012 um chamado procedimento de concurso público para contratação de médicos para instituições do SNS, através de empresas privadas prestadoras de serviços. Não existe qualquer exigência de qualidade, os médicos contratados têm de fazer 4 consultas/hora e cumprir «atendimento pediátrico», sem que seja pedida, à partida, qualquer formação específica em Medicina Familiar e Pediatria. Acabam assim os concursos (sucessivamente adiados) e a lógica parece ser a de contratar a baixo custo, com diminuição da qualidade e ausência da valorização de carreira. A exigência do trabalho em equipa, características dos bons serviços de saúde de todo o mundo, está agora comprometida. A privatização desordenada dos serviços de saúde, numa lógica do quanto mais barato melhor, está em marcha.

Compreendem-se bem os protestos dos sindicatos e da Ordem dos Médicos, numa unidade que há muito não existia. Não é possível fazer de conta que nada se passa. E há mais: prepara-se o fim do «ano comum» do Internato Médico, um ano de formação que precede a especialidade e que assegura uma formação diversificada aos jovens licenciados em medicina. Em breve existirá um vasto grupo de médicos sem acesso à especialidade e teremos médicos de primeira e de segunda.

É caso para dizer que a saúde dos portugueses é um assunto demasiado importante para ficar só por conta do governo. Compete aos profissionais denunciar estas medidas, sem que deixem de assegurar a qualidade na prestação dos cuidados de saúde. Dos cidadãos espera-se vigilância permanente, porque a hora é de atenção e de protesto.

2 comentários:

  1. Sejamos sinceros, caro Capitão:

    Na minha opinião e na opinião de muitas conversas de café, o abuso de poder, a falta de humildade, de assiduidade e de pontalidade era uma constante em muitos médicos.

    Recordo-me de ainda há nove anos atrás, quando acompanhei o meu pai a uma consulta de oncologia, ter-me saltado a tampa quando, marcaram essa consulta no antigo S. Marcos às 8h30 e só fomos atendidos cerca de quatro horas mais tarde, sem qualquer explicação, em que o médico estava com um humor pior que o meu. Essas quatro horas que passei numa salita sem ventilação com o meu pai e outros utentes imunodeprimidos foram mais que suficientes para ter chamado muitos nomes na minha cabeça ao médico em questão e ter-me deixado amedrontada com o medo de o meu pai "apanhasse" alguma infecção.

    Já me chateei com um médico porque eu abri uma carta com uns resultados dos exames da minha mãe (que faz sempre questão que a acompanhe às consultas), ele alegando que essa carta nunca deveria ter sido aberta, eu alegando que essa carta estava endereçada à minha mãe, logo eu teria toda a legitimidade de a ler. Ele pomposo, eu com a resposta na ponta da língua.

    Uma familiar minha foi mordida por uma cobra e reencaminhada para o hospital de Arouca. A médica, brasileira, mandou-a para casa, dizendo que em Portugal não existem cobras venenosas. Essa minha familiar acabou por morrer.

    Sinceramente não concordo com este subsidio de assiduidade que tanto tem sido falado nas notícias. A minha mãe é professora, eu conheço muitos enfermeiros e outros profissionais que estão na função pública e nunca tinha ouvido falar em tal regalia, nem nunca usufruiram dela.

    E sim, sou também contra a contratação de profissionais de saúde apartir de empresas de recrutamento e tenho noção que será o início do fim da qualidade ainda razoavel dos nossos serviços de saúde.

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  2. Cara Alina:

    Portugal não evoluiu nos últimos anos. Nem economicamente nem em valores. Esta crónica necessidade de resolver o dia a dia na tentativa de “conquistar um lugar ao sol”, associada à certeza de um grande condescendência e consequente impunidade, fez com que os piores de nós se alcandorassem a lugares onde numa Europa evoluída, rapidamente seriam apeados.
    Há-os em todas as profissões, mas como a exigência de um mínimo de humanismo é maior nos lugares onde se lida com a fragilidade humana, como são as profissões ligadas à saúde e à segurança social, comportamentos agressivos para com quem vai pedir ajuda são sempre mais mal vistos.
    A pontualidade médica é igual à das outras profissões. Eu conheço muitos que sempre foram pontuais e outros que passaram a ser quando as regras apertaram. É uma questão de chefias.
    Quanto ao subsídio de assiduidade ignoro-o na função pública, nomeadamente para os médicos. Trabalho há várias décadas, nunca faltei e nunca o recebi.
    Os médicos mal-educados (http://abeiralethes.blogspot.pt/2009/07/teatro-do-absurdo-peca-em-2-actos-o.html) são também um problema para a classe.
    De qualquer modo, e sem querer desculpar ninguém, há situações de “burnout” em que se causam vítimas colaterais.

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