Qualquer modo de ver a realidade é necessariamente limitado. Estas são algumas das histórias que definem o meu olhar.
terça-feira, 3 de março de 2015
O Sr. Meireles
O Sr. Meireles era o chauffeur da minha avó. Pelo menos era assim que lhe chamávamos. Tinha andado ao serviço de uma família amiga e, como já estava velho e não tinha para onde ir, a minha avó deu-lhe guarida num anexo da sua casa. De vez em quando, conduzia o carro do meu falecido avô.
Não tinha reforma e vivia do fabrico de uns pudins Abade de Priscos, com que fornecia alguns restaurantes da zona de Braga. Usava a cozinha exterior, que forrara de formas, bacias, caixas de ovos e baldes de todo o tipo.
A sua suposta actividade de chauffeur, era escassa. Lembro-me de o ver ao volante uma ou duas vezes e até a minha avó tinha de marcar com grande antecedência, porque as horas de entrega dos pudins estavam primeiro.
Tinha um corpo de touro encimado por uma pequena cabeça de abutre careca e luzidia, debruada de longos cabelos, que pintava, com desvelo, de preto azeviche cintilante.
Era um solitário de poucas falas. Às vezes, depois do jantar, aparecia na sala de estar da casa, para ver televisão. Cumprimentava, sentava-se no sofá mais afastado e ali ficava, mudo e quedo, até que sono o fizesse cambalear.
Depois era uma questão de tempo, para se ouvir o Nsstt! Nsstt! da minha avó, para que ele desencostasse a cabeça dos naperons que decoravam o cimo dos sofás. E de Nsstt! em Nsstt! o Sr. Meireles vacilava, até às horas de se ir, sem deixar cor nas alvas rendas.
No seu funeral éramos cinco, incluindo o meu irmão mais novo, de sete anos, e um fulano que por lá apareceu, para a missa, e que acabou numa asa do caixão.
Sabíamos que ele não era de amizades, mas sempre pensámos que teria alguma família.
Parece que deixou saudades nos gulosos da região.
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