quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (3)


Os dias depois de um evento extraordinário são difíceis para qualquer mortal. Mas quando um deus, mesmo que aposentado, nos dá a honra do seu convívio, os mistérios da vida mudam de significância e o futuro ganha outra dimensão.

Ainda atordoado pelos eventos desse dia, Hipólito, regressara a casa, decidido a só voltar àquele Lar no fim-de-semana seguinte, para se dar tempo para ler umas coisas sobre Organização Política e Administrativa do Estado, Mitologia Grega, parafilias e ciúme patológico. Zeus manifestara-lhe vontade de voltar ao activo e Hera mostrara-lhe temer o regresso das suas infidelidades. A perspectiva era ter de viver no meio de um litígio conjugal de dimensões cósmicas.

A semana não lhe rendera como habitual. Dormira mal e um estranho sentimento de comiseração por aqueles deuses derrotados assomava-lhe frequentemente ao estômago. Evitara as tertúlias com medo de se descair com os colegas e mesmo em casa nunca aflorara o assunto.
Dois dias antes da planeada visita, depois de um árduo dia de trabalho, sentara-se no escritório a ler, quando um trovão seguido por um estranho vento lhe abriu a janela. Levantou-se perplexo, e reparou que no sofá da frente Zeus se sentara, de perna traçada e raio na mão.
- Que é feito de si, meu amigo? Eu sei que em época de férias há muito que fazer, mas podia-nos ter avisado que alterara o esquema das visitas. O Dr. Euclides ia ao Lar duas vezes por semana.
Apanhado de surpresa, Hipólito, quase deixava cair o livro que tinha na mão, mas ao reconhecer a bonomia do visitante, levantou-se, cumprimentou-o com uma larga vénia e foi fechar a porta do escritório. Então justificou-se:
- Peço perdão, mas não me lembro de me ter sido dita essa regularidade. Fiquei com a ideia de só lá ir quando chamado. De qualquer modo, estava a planear uma visita no próximo sábado, com tempo para conhecer os utentes e as vossas especificidades. Há-de convir que não é fácil a um mortal prestar assistência aos sofrimentos divinos, para além de, ao que parece, querer falar comigo sobre assuntos fora da minha arte.
- Esteja descansado, Dr. Hipólito, que não quero fazer de si o Oráculo de Delfos. Quero unicamente a sua opinião. Estou a fazer uma sondagem de mercado, e o Dr. foi um dos seleccionados por ser "opinion leader" na área das ciências da saúde!. E, mudando de assunto, como se quisesse amenizar o ambiente, continuou: - Quando entrei, vi-o a ler um livro de contos do Mia Couto. Eu também gosto muito de contos. São uma arte. Um conto é tão difícil de escrever como um poema. É preciso dar-lhe ritmo da primeira à última linha. São muito eficazes para passar mensagens. Todas as religiões os usam. A Bíblia está cheia deles e a nossa Ilíada também.

A conversa informal reposicionara-os. Hipólito olhou Zeus ali sentado, quase humano, e retorquiu-lhe: - Não é todos os dias que um deus nos aparece. Confesso que, apesar da sua benevolência, temo que a minha ignorância vos possa causar incómodos. Houve algum inconveniente em não ter lá ido mais cedo?
- De modo nenhum!. Estão todos na mesma!, respondeu Zeus. – Eu é que, como tinha tempo, decidi dar um salto até aqui para ouvir a sua opinião sobre umas coisas que ando a congeminar!
Hipólito, pousou o livro, virou-lhe as palmas das mãos e respondeu:
- Faça favor. Sou todo ouvidos!

- Ora ainda bem que nos entendemos!, disse Zeus, e, abrindo a túnica, retirou de lá um cartapácio que colocou em cima da secretária. Hipólito leu na capa - “MULTIDÃO SOLITÁRIA – Projecto a implementar na Terra durante o Ano 2016”. Ao fundo tinha o seu nome romano - JÚPITER.
E Zeus continuou: - O meu público-alvo são as pessoas que vivem solitárias nas grandes cidades industrializadas, vítimas da desagregação social causada pela sociedade de consumo.
- Como assim?, perguntou o clínico.
- Dr. Hipólito, pense comigo. A actual família restrita – pai, mãe e 1 filho, cujo ícone é o presépio, só responde às necessidades dos adultos jovens, com saúde, emprego e dinheiro. Já nada tem a ver com aquelas famílias de outras épocas, onde debaixo do mesmo tecto era possível encontrar avós, parentes próximos solteiros e com frequência os filhos casados, netos e outras pessoas agregadas como os criados.
Perdeu-se a natural convivência das aldeias, provocada pela exigência de trabalho gratuito recíproco e quando se chega à idade de procurar emprego, o mais certo é ele estar longe da família e dos amigos. Como resultado o cuidado das crianças, dos anciãos e dos enfermos, tem passado para a responsabilidade do Estado ou para instituições autónomas, como creches, hospitais, Lares ou residências.
Ora é para a multidão que vive fora da tal família restrita, que eu me quero dirigir, organizando-as em grupos comunais onde o lema seja: ajuda, hospitalidade e amizade, integrando pessoas de diferente condição e sexo, debaixo de uma regra, à semelhança do que acontece ainda nos conventos, mas que, em vez de se dedicarem só a actividades pouco rentáveis, se possam dedicar a qualquer profissão.

O Dr. Hipólito, já lera algumas coisas sobre as comunas utópicas da Alemanha e Estados Unidos nos idos anos 60. Nunca as levara a sério e até admirava que se tivessem aguentado alguns anos, sem estarem sustentadas numa forte base material.
Considerava impossível que houvesse gente disponível a abdicar permanentemente de bens pessoais, pois, mais tarde ou mais cedo, os naturais conflitos entre os indivíduos iriam despertar reacções de poder que interfeririam com esses princípios. Para ele eram utopias de intelectuais entusiastas que viam no primitivo comunismo aldeão a possibilidade de alterar as bases das novas sociedades. O que Zeus tinha em mente parecia-lhe coisa semelhante e por isso respondeu que isso já fora testado e que dera sempre mau resultado.

- Sabe Zeus! O que agora se fizer tem de dar lucro em pouco tempo, e esse projecto não me parece rentável por se centrar nos desafortunados. Em minha opinião, deveria envolver em primeiro lugar os ricos, oferecendo-lhes vantagens que despertassem a curiosidade dos pobres. Se começar ao contrário, vão ser necessários uns milhares de mártires para quebrar a natural resistência à mudança. Não se esqueça que o Deus cristão enveredou por esse caminho e que, as circunstâncias acabaram por o levar a fazer vista grossa ao liberalismo selvagem.

- Caro Hipólito. O meu plano de negócio tem um braço na construção civil e um outro na ecologia. Se os acordos de Paris forem para a frente, pode facilmente candidatar-se a fundos da CEE. Ele cumpre os objectivos de redução de emissões de CO2 e prevê a recuperação dos centros históricos das cidades. Não vejo porque é que os financiadores não o hão-de apoiar. E engana-se ao pensar que a multidão solitária só é constituída por pobres. Há muitos ricos disponíveis, se houver garantias de qualidade.
Basicamente o conceito é criar múltiplos “conventos abertos” ao exterior, em que os seus membros possam circular, de acordo com os seus desejos, desde que cumpram a tal “regra”, que mais não é que um padrão civilizacional.
Não se pretende interferir com as famílias actuais, proponho só implementar uma filosofia de convivência naqueles que o acaso e as políticas que estimulam o individualismo, a massificação e a concorrência despiedada atiraram para a solidão.

Nesta altura Zeus entusiasmado, deambulava entre a estante e a janela. Depois parou, abriu o projecto num centro histórico de uma grande cidade de Portugal e chamou o médico para junto de si.
- Está a ver aqui. Nesta zona há imensas casas senhoriais degradadas que urge recuperar. São casas que não têm utilidade para as famílias nucleares e que cumprem plenamente as nossas exigências. Até dão para ter uma horta comunitária.
- Que diz?

Hipólito queria dissuadi-lo. Pareceu-lhe que Zeus parara no tempo e que não tinha conhecimento do que se passara na revolução bolchevique e, para o não ofender, disse:
- Eu só poderia investir nesse projecto se perdesse toda a minha família. Mas ia-me ser muito difícil viver em comunidade com gente adulta que ganhou hábitos muito diferentes dos meus.

Zeus olhou para o tecto, como se pensasse, e respondeu: -É para isso que eu cá estou!. Há que desenvolver a tolerância desde o berço para superar as diferenças culturais. Numa primeira fase terei de disponibilizar uma maior quantidade de milagres. Obrigado!
De seguida, pegou no projecto, despediu-se e desfez-se numa ondulante luz azul que atravessou o tecto ao som do ribombar longínquo de um trovão.

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