domingo, 13 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (1)


Era verão. Talvez Agosto. A cidade mantinha-se activa, indiferente à ausência dos que rumaram para Algarves e outras paragens, deixando para trás os problemas e as pessoas que deles esperam solução.
Então, exige-se a quem fica, não só um maior esforço, mas também que seja rápido a ler e a decidir as coisas que o acaso lhe põe à frente, se não quer ser surpreendido com o que já não têm solução. Para uns é uma oportunidade. Para outros um sufoco. São estas as regras do jogo nos tempos que vão correndo a que os médicos também não conseguem escapar.

Nesse dia, o Dr. Hipólito, internista de renome, recebera um telefonema de um grande amigo, a pedir-lhe para assumir a assistência a um Lar de Terceira Idade, com o sugestivo nome de Lembranças do Olimpo.
Apontara a morada e a hora 18:30h e, depois de uma jornada em que mal tivera tempo para almoçar, levara-se àquele extremo da cidade. Parou o automóvel onde o GPS dissera “chegou ao seu destino” e olhou em redor. O amplo parque dava acesso a uma alameda de grandes ciprestes, onde estacionava um SUV preto de vidros fumados, que lhe fez lembrar os do filme Matrix. Riu-se para dentro, enquanto pensava: - Devem ser idosos "muito p'rá frentex, os que por aqui param!". Confirmou a morada no mapa do Smartphone e apressou o passo em direcção ao edifício, que mais parecia lhe um Palácio da Justiça que um Lar de Terceira Idade.

As cidades actuais, minoram as grandes construções de outros séculos levantadas à força de suor e músculo, e o corre-corre a que nos obrigamos, só nos lembra que vivemos em cidades milenares, quando alguém nos chama a atenção para um muro em vias de sofrer as "delícias" do camartelo.

Ao Dr. Hipólito, as rápidas passadas dificultavam o entendimento da majestade daquelas paredes, rodeadas por um peristilo de mármore creme. Viera em modo automático, rebobinando os sucessos do dia e só levantara os olhos ao esbarrar com as imponentes portas de bronze, glorificando os triunfos dos deuses do Olimpo.

Identificava, num dos seus retábulos, Deméter semeando uma ceara de trigo, quando uma jovem o abordou, solícita, indicando-lhe o interior. Vinha descalça, envolta numa túnica branca esvoaçante e exalava em ténue perfume a relva recém-cortada. Os cabelos compridos balouçavam-lhe no amplo vão de um decote. Seguiu-a.

Passaram uma segunda porta de sólido castanho, também ela ricamente ornada com o que entendeu serem referências aos quatro elementos – água, terra, fogo e ar, e entraram numa nave imensa, ladeada de seis grandes dosséis, e dominada ao fundo por um trono de ouro e marfim, com múltiplas incrustações de pedras cintilantes, onde um velho o aguardava.
Estava envolto numa manto vermelho, que lhe deixava a nu mais de metade do tórax, tinha a mão esquerda apoiada num ceptro encimado por uma águia e na direita um raio azul, onde assomava o escuro rugoso da ferrugem. Fez um gesto de cabeça sugerindo que se aproximasse.

O Dr. Hipólito subiu um degrau e estendeu-lhe a mão, como a querer cumprimentá-lo, mas conteve-se e dobrou-se numa vénia. Aquele corpo, não escondia a força. A testa enrugada de muitas contrariedades, terminava numa coroa de ramos de oliveira e prolongava-se por um manto de cabelos e barba brancos até ao cavername do peito. O ancião levantou-se e desceu os três degraus, sorrindo, até ao médico e, como se uma familiaridade os unisse há séculos, com voz suave, onde transparecia determinação, informou-o:

-Desculpe não o termos avisado do que iria aqui encontrar. Foi uma situação imprevista. O Dr. Euclides, que nos prestava assistência, faleceu há dois dias, e a minha mulher Hera, anda com uma tosse de não deixar ninguém descansar e, embora ela seja imortal, sofre e faz-nos sofrer.
E continuou: -Já vi que está a estranhar o lugar e, antes que dê azo a cogitações, quero que saiba que este templo é o refúgio que escolhemos depois de termos sido selvaticamente derrotados pelos cristãos, vai para uns mil e quinhentos anos. Temos aqui todas as comodidades, mas falta-nos a adoração dos homens. É esse o nosso maior problema. Estarmos inactivos. Só somos lembrados por meia dúzia de eruditos, nas suas palestras e, de vez em quando, damos orientações em filmes de guerra ou aos desenhos animados, mas já ninguém nos leva a sério e muitos até fazem chacota das nossas aventuras.

O Dr. Hipólito conhecia bem a vida dos deuses eternos. Quando vencidos pelos novos deuses, afastam-se e ficam à espera que o mundo complete um dos seus ciclos e possa reclamar de novo os seus serviços.
Reconhecera Zeus. Conhecia dos livros os seus defeitos e virtudes e tinha-o como um bom deus grego, que tentara jogar com o acaso para estimular o Homem na procura de soluções que lhe permitissem viver em comunidade mas que, como muitos outros, não se apercebera da evolução social e descurara a actualização.

Sentiu o seu braço encaminhando-o para as traseiras da nave, onde verdejava um imenso olival, e entraram num caminho de terra batida que se estendia até ao topo do monte, onde uma pérgula esperava os peripatéticos.

Um deus, nem sempre tem interlocutores humanos à sua medida. Zeus tivera o cuidado de recolher informações sobre ele e, concluindo que seria um bom conversador, aguardara-o, mais para saber a sua percepção da actualidade, que pela doença de Hera.
Enquanto esticavam as pernas pelo trilho e apanhavam os últimos raios daquele sol poente, Zeus reiniciou a conversa. Explicou-lhe as lutas e as cedências que os tinham arrastado para aquela situação. Falou da conquista da Grécia pelos Romanos e de eles lhes terem proposto a alteração dos seus nomes, coisa que a princípio até os lisonjeou, por verem crescer a sua cota no mercado da humanidade, mas que, quando se viram nas mãos dos maus senadores e generais romanos e quiseram lutar, já ninguém os conhecia pelos seus nomes antigos. Atena bem o avisou e nunca aceitou que lhe chamassem Minerva, mas os outros foram-se habituando e só se arrependeram quando se viram cair às mãos da cristandade.

-Sabe Dr. Hipólito, esta relação dos deuses com os homens nunca foi estável. Nós, deuses, temos de estar muito atentos, pois uma pequena ocorrência pode ter consequências dramáticas. Eu devia ter fortalecido a equipe e pôr no banco alguns dos meus deuses mais dados a extremismos. O Dionísio já não era bem visto na Grécia e quando virou Baco, em Roma, e o deixei organizar os bacanais, ele fez aquilo da pior maneira. Era “tudo ao monte e fé em deus” e a malta do poder começou a olhar para nós “al revés”, como se fossemos todos farinha do mesmo saco, e a coisa foi de mal a pior, até o Imperador Constantino em 321, começar a proteger os cristãos. Aí tivemos de fugir, porque logo que sentiram as costas quentes, desataram a inventar mentiras sobre nós e a profanar os nossos templos. Foram tempos terríveis. Nas aldeias e nos locais mais remotos ainda nos conseguimos aguentar uns séculos, a planear um regresso, mas quando chegou a Inquisição, ficaram todos aterrorizados e deixaram de querer saber de nós. Nem o deus dos Cátaros, que era feito da mesma massa, resistiu. Sabe! Pode-lhe parecer conversa de velho, mas só quando, em 1624, o Papa Urbano VII mandou fundir as placas de bronze que forravam o Pantéon em Roma, que era a casa de todos nós, para construir o baldaquino na Basílica de S. Pedro, é que perdemos a esperança de um dia voltar a ter quem se nos dirigisse nas aflições.

Chegaram à pérgula onde crescia um jasmim de cheiro tão aveludado, que Eros o teria usado nas suas setas para enfeitiçar os amantes, e sentaram-se, recebendo a aragem fresca do fim da tarde.
E Zeus continuou: -Naqueles dosséis, que viu no templo, dormem os meus familiares: a minha mulher Hera, os meus irmãos Poseidon, Deméter, Atena e Apolo, e os meus filhos Ares, Artemísia, Hefesto, Afrodite, Hermes e Dioniso.

A minha mulher, passa o dia sozinha. Já nem tem ciúmes de mim. Está chata e ressona. Então agora que constipou, incomoda toda a gente com a gosma. O meu filho Dionísio, que gerei na minha própria coxa, está com cirrose e mais amarelo que um canário. O que lhe vale é ser eterno. Não lê nada para se actualizar com as novas tecnologias da produção e comercialização do vinho. Se um dia nos chamarem de novo, vou ter de arranjar alguém fora da família para lidar com o assunto. O meu irmão Poseidon está cheio de reumatismo. Eu bem o avisei para se afastar da humidade dos oceanos, mas ele gostava das tempestades, o que é que eu ia fazer. Agora é aguentar e cara alegre. Cortou o dente do meio do tridente e usa-o como muleta. Assim, mantém alguma memória do passado, mas quando está chateado ainda sai e faz uma asneira, como aquela do tsunami no Japão.

-Mas voltemos antes que o sol se ponha, que eu quero que observe a minha mulher. Se a convencer a ir à Ítaca umas semanas era óptimo. Ela gostou da ilha quando lá fomos dar uma mãozinha ao Ulisses. Há lá cinco hotéis. Se for convincente, ela vai aceder.

O Dr. Hipólito ouvia e tentava enquadrar o discurso de Zeus naquilo que conhecia dos livros, sabendo ele que os livros são um reflexo da realidade filtrada pelos olhos do narrador, semelhante a uma árvore espelhada na superfície de um lago, que não é exactamente igual à própria árvore, e quando surgiu a oportunidade, questionou-o:
- É curioso que ainda tenha vontade de voltar ao activo. Deve ter observado que o mundo nos últimos cinquenta anos sofreu modificações difíceis de integrar em qualquer das antigas religiões e que se exigem deuses com outras atitudes. O vosso historial belicista é um problema e a tipologia do vosso bucólico não se enquadra bem no turismo rural. Falta-vos know how em smarphones, na política de inclusão de minorias, em globalização, e isto para não falar de problemas mais específicos como política de emprego nas sociedades competitivas, onde a robótica tende a substituir o trabalho manual.

Zeus ouvia interessado, anuindo com a cabeça, enquanto segurava na mão a fralda da túnica para a não pisar ao subir os três degraus que davam acesso ao vestíbulo do templo.

-Concordo consigo, mas não se esqueça que somos deuses e que aquilo que fazemos pode ser interpretado pelo Homem de modos muito diversos. É uma questão de falarmos com os exegetas de serviço e tomarmos conta dos meios de comunicação social. Isso para nós é mais fácil que para um partido político, e o Dr. Hipólito há-de convir que a população actual pouco exige aos poderosos. O nosso grande problema está nos outros deuses.
- Mas a quais se refere especificamente?
- Aos dois que actualmente mandam em meio mundo. Ao Deus cristão e a Alá. O cristão tem a maior multinacional do planeta e o muçulmano tem uma franchising sem padrão de qualidade, que alicia quem precisa de um livro único para resolver todos os problemas.
- E não tem medo dos deuses que andam pela China e pela India? Olhe que eles influenciam muita gente.
- Não! Esses deuses são inclusivos, não exclusivos como estes. Temos tido vários contactos com eles, não oficiais, e até já tivemos um plano para uma parceria. Eu dava uns mitos e eles, outros. Coisas a chamar a atenção para a pobreza e para o cuidado com o planeta, mas não andámos para a frente, porque eles queriam que eu afastasse definitivamente os meus deuses mais controversos, como o Ares, a que os romanos chamavam Marte, e o Dionísio. Mas também o Poseidon, por causa das moções. Dizem que ele tem tendência para o exagero e não confiam. Aquela malta do oriente é mais dada às contemplações e querem deuses mais zen.

Sentaram-se nas escadas que dava acesso ao trono. O Dr. Hipólito percorria com o olhar os dosséis de grosso veludo grená, quando Zeus lhe perguntou: -Acha que a crise de valores que actualmente assola a humanidade poderá constituir uma oportunidade para nós, ou será que vamos ter de esperar mais?
-Não sei! Respondeu o médico. – A vossa imagem não é das melhores. Há histórias que lutam contra vós. Eu, por exemplo, sou discípulo de Esculápio, e mantenho vivo, como símbolo da minha profissão, o seu bastão, e nunca irei esquecer que fostes vós que o mataste por ele ter ressuscitado um paisano com o meu nome, só porque achaste que ele tinha pensamentos demasiado grandiosos para um homem. Mas há outros que se queixam de outras coisas. Se vocês aparecerem de novo, ou vêm apoiados num marketing agressivo, ou estais feitos. Para além disso, pelo que disseste e vejo, muitos de vós perderam a Esperança e a força para arrastar multidões.

Zeus, coçou os cabelos enquanto pensava na resposta seguinte. De facto Atena ficara muito perturbada com as derrotas. Perdera o escudo e passava o dia a fazer crochet. Ares, a quem os romanos chamavam de Marte, se já não era bom da cabeça quando estava activo, não melhorara com aquele repouso. De vez em quando, punha-se a gritar para as paredes a dizer que elas não sabiam quem ele era, e era ele que o tinha de acalmar com o raio. Hefesto, ainda dominava o ferro, mas nada sabia das novas ligas e de plásticos. Nem com Afrodite podia contar. Ela que fora a deusa do amor, vestia-se unissexo e raramente usava saias. Só poderia contar com o Hermes que, por ser patrono dos ladrões e guia dos mortos, se mantivera sempre ocupado. Para mais aquelas asas nos pés tornavam-no extremamente ecológico.

Levantou-se das escadas, atirou a túnica para cima do ombro esquerdo, e enquanto dava a mão ao Dr. Hipólito para o ajudar a levantar, olhou-o nos olhos e disse: - Acho que tem razão. Vou ter de dar uma volta no staff. Com este não me safo. A solução está nas Parcerias!.
E dito isto avançou até ao bar onde Dionísio experimentava cocktails. Zeus pediu um daikiri e o médico, depois das apresentações e de um longo aperto de mão, pediu um guaraná.
De seguida, encaminharam-se para o exterior para apreciar o ocaso. Zeus ia contar a história de Faetonte, mas o Dr. Hipólito, pôs-lhe a mão no braço como a dizer-lhe que já a conhecia e que o momento deveria ser aproveitado para uma reflexão sobre o que tinham acabado de falar, e assim ficaram até o sol desaparecer no horizonte. Então o médico levantou-se e disse: -É tarde! Eu tenho a minha família à espera e fiquei sem carga no telemóvel. Hei-de vir cá mais vezes e com mais tempo. Agora vamos lá auscultar a sua esposa a ver se consigo dar com o remédio sem ter de recorrer a meios auxiliares de diagnóstico.
E dirigiram-se ao dossel nº2.

1 comentário:

  1. Parabens Capitão por tão olímpico delírio! Gostei de tão panteocrática estória, que tenha seguimento, pois os tristes mortais cada vez valorizam menos a imaginação dos deuses e dos santos, estão submetidos aos diabos da economia, do fisco e da saúde, não tendo tempo para se deleitarem com histórias olímpicas.

    ResponderEliminar