sábado, 27 de fevereiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (13)



Eram duas da tarde quando Hipólito acabou o trabalho de enfermaria.
O registo da sua actividade no computador, depois de ter observado os doentes, ocupava metade do seu horário. Era trabalho de secretária pago a preço de hora médica que tinha de ser feito.
Os políticos do país centravam-se noutros números que os gestores locais se esforçavam por torturar para darem certo com o que lhes era pedido, ou distraíam-se com controles biométricos, que os incumpridores sabotavam impunemente.
A capital mandava e os médicos, aos poucos, iam-se tornando peças de uma máquina onde o doente passara a utente, e toda a população a cliente, onde qualquer defeito podia ser entendido como enfermidade.

O edifício crescera dando primazia aos meios auxiliares de diagnóstico. Surgiram psicólogos, gestores, assistentes sociais e “boys” do partido vencedor. Criaram-se doenças, para justificar os empregos, e divulgou-se nos meios de comunicação um extenso cardápio, para que quem sentisse dificuldades na vida se pudesse encaixar. Surgiu a “hiperactividade” das crianças, as fibromialgias, as depressões por dá cá aquela palha, os “burnouts” crónicos, as lombalgias laborais, os rastreios descontrolados e o desgoverno no número de consultas necessárias para resolver um único problema, fosse ele qual fosse. Tudo bem justificado por relatórios sociais, psicológicos, educacionais, porque as “contratualizações” exigiam números que não podiam ser esquecidos pelos gestores que tendiam a subvalorizar a qualidade, mesmo quando ela altera o curso de uma ou de muitas histórias.
Indiferente a este estar, um núcleo duro mantinha o sistema eficiente e capaz para a população realmente doente.

No refeitório, comeu umas potas com batatas a murro e subiu para pegar em Eurídice.
- Estava a ficar preocupada, a pensar que não vinha!, disse à sua chegada à sala de espera do serviço. - Tenho tudo preparado. Até já me despedi das enfermeiras!
- Como podia esquecê-la!. retrucou o médico, de sorriso aberto. - Só se caísse o Carmo e a Trindade!, e ofereceu-lhe o braço, convidando-a.
Desceram pelas escadas para evitar a multidão que aguardava os elevadores e saíram por uma porta lateral, para que o diz-que-diz fosse menor, mesmo sabendo que, naquela casa, um supor era automaticamente tomado por verdade. Pareciam um casal em núpcias. Ela feliz com a solução e ele vaidoso por ter aquela linda mulher, a sorrir, ao lado.

Hipólito abriu-lhe a porta do automóvel. Eurídice sentou-se a olhar para todas aquelas luzes, que se acenderam quando ele meteu a chave na ignição e, temerosa, confessou:
- Que coisa é esta? O que é que vai acontecer agora?
O médico acalmou-a. - Esteja descansada! Está dentro de um automóvel. É como uma quadriga, só que as pessoas vão comodamente sentadas e não há cavalos a puxá-la. Tente abstrair e vai ver que a viagem vai ser rápida e confortável.
Eurídice deixou que ele lhe pusesse o cinto de segurança e agarrou-se ao assento com as duas mãos quando sentiu os primeiros movimentos.

Saíram. Os olhos dela, como faróis, tentavam seguir todos os objectos com que se cruzavam. Quando se cruzavam com uma camioneta ou passavam um edifício maior, levantava-se para os manter durante mais tempo no campo de visão. Ao atravessar a ponte, assustou-se com o comboio e, do outro lado do rio, mais calma, pediu para ir pela margem para ter uma imagem completa da cidade.
- É uma cidade bonita!, disse. – Pena é aquele prédio alto, ali no meio!
- É o prédio Coutinho! Há uma grande vontade de o implodir! Talvez daqui por vinte anos já lá não esteja! Em Portugal, quando um problema destes cai na esfera da Justiça, demora décadas. A ineficiência dá dinheiro a muita gente!
Vamos um bocadinho mais à frente, que vai ver o porto e um navio que hoje lá atracou. Pertencente à Enercon, um dos maiores fabricantes mundiais de turbinas eólicas, com várias fábricas em Viana. Está a ver aquelas quatro torres cilíndricas no convés? Têm vinte e sete metros de altura e captam a energia do vento para auxiliar a propulsão a diesel. Vem cá carregar torres de aerogeradores.
- Já vi que chegue, Dr., e não percebo essas palavras. Vocês são de outra galáxia. Se eu tivesse que ficar aqui, ia ficar velha em pouco tempo com o que tinha de aprender. É melhor levar-me aos tais deuses que me falou. Se me mostra mais coisas, ainda me dá um treco.

Hipólito entrou na nacional 13, andou dez quilómetros e, desviou para direita. Minutos depois, chegou ao parque de estacionamento do Lar.
- Venha comigo! Zeus, às vezes, sai por longos períodos. Mas a mulher dele é muito caseira, costuma ficar.

Subiram as escadas, Hipólito ia bater à porta, quando esta se abriu e apareceu Zeus com ar sorridente. Cumprimentaram-se.
- Estava ali à janela a apanhar um pouco de sol, quando o vi na curva da estrada! e, enquanto se dirigia a Eurídice, exclamou: - Ora bem! Hoje, vem muito bem acompanhado!
O médico apresentou-a.
- É Eurídice. Conhece-a, de certeza! Deve-se ter saído do Hades por uma porta errada, e perdeu-se. Pensou que ela dava acesso ao Lethes e saiu para o rio Lima.
- Claro que a conheço!, respondeu o deus. -É das almas mais bonitas que passaram por aqui. Ainda bem que a trouxe! Saíram várias por essa porta nesse dia. Umas, como ela, estavam programadas para voltar à terra, mas outras estavam a cumprir penas eternas. Houve um engraçadinho que desenhou uma porta ao pé do Tártaro e pôs lá a placa Lethes. Suspeitamos que tenha sido o Almada Negreiros, que ele tem a mania dos exotismos, mas não temos provas incriminatórias suficientes. O certo é que por essa porta também desapareceu o Sísifo. Você não o viu?
Há uma semana que o procuramos. Criou uma confusão junto à porta e aproveitou o cerbero estar velho para fugir. Aquela coisa da pedra, pô-lo zangado. Se encontra alguém que o contrarie, desfá-lo em menos de um fósforo.
- Se ele esteve sempre às voltas com a pedra, o mais provável é que esteja escondido a descansar!, disse Hipólito. -Vamos resolver primeiro o problema de Eurídice, que ela já me mostrou vontade de sair pela porta certa e começar um processo de aprendizagem que lhe permita uma integração social de qualidade.

Zeus virou-se para Eurídice.
- Minha querida. Fico muito feliz com o seu regresso. Deve estar cansada desta semana de novidades. Vamos entrando, que a minha mulher prepara-lhe um revigorante hidromel!
- Estive doente, com febre e fui tratada no hospital do Dr. Hipólito. Ainda bem que saí junto à cidade. Se tivesse saído no meio de um monte não sei o que seria de mim!

Entretanto Hera encaminhara Eurídice para os seus aposentos enquanto lhe perguntava das experiências na sua recente aventura terrena, deixando-os a sós.
Hipólito aproveitou e questionou Zeus:
- Posso-lhe fazer um pedido para ela?
- Eu, se fosse a si, não me metia nisso e deixava que fosse o Acaso a determinar-lhe a sorte, mas, como a trouxe até aqui, vou dar-lhe esse privilégio. Peço-lhe, no entanto, que tenha cuidado com a sua formulação! Estou farto de ver gente vítima dos desejos dos outros!, advertiu o deus. 
Hipólito, não hesitou:
- Queria pedir-lhe que a fizesse nascer saudável e numa família com cultura!
Zeus, riu. - Você não é parco no pedir! Só faltava pedir para nascer rica! Agora que o PS vai acabar com a austeridade, talvez seja possível fazê-la nascer em Portugal. Para já volta ao submundo, que esta experiência foi um choque a exigir uns anos de repouso.
E quanto ao Sísifo. Onde é que o homem pode estar escondido? Já passámos a pente fino as casas da cidade e aldeias próximas e nada.
O médico, sem que estivesse sintonizado com Zeus, deixou que a fala lhe saísse da boca, sem medir as consequências.
- Já foram às ruinas do Convento de S. Francisco?, sugeriu. –  Aquilo está envolto em mato e fechado a cadeado. Eu começava por aí!

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