domingo, 30 de abril de 2017

O amado


As paixões não têm idade. Embora gostemos de o pensar, as nossas vidas não são assim tão diferentes e aquilo que acontece a uma pessoa, acontece a muitas mais. Já o dizia a Dee Dee do Bukowski, que sabia uma ou outra coisa da vida. O Bukowski também, mas talvez menos, já que estava tão convencido da sua excepcionalidade.

A minha velhinha está apaixonada. Tem 91 anos, enviuvou há mais de 30 de um POW da Segunda Grande Guerra, e está perdidamente apaixonada. Para complicar a situação, está apaixonada por um holandês de 66 anos. Sim! Outro cliché! Não só as paixões atacam a qualquer idade, como a partir de determinada altura, os anos de vida já não contam para nada. Somos todos adultos, é ou não é?

Todos os dias, por volta das 8 da manhã, vou até ao quarto da Mrs. R. e abro as cortinas às flores, pesadas e rotas pelo sol e pelo pó. Ela abre os olhos remelosos pela querato-conjuntivite seca e pergunta-me se já tem de se levantar. É que não lhe apetece nada. Está tão bem ali. Pergunto-lhe se não quer tomar o pequeno-almoço e ela, com um ar entre o preguiçoso e o covarde (como na música do Chico), diz que tem muito sono de manhã e pede mais 10 minutos, com o rádio ligado na estação da música clássica. Todos os dias ela faz tudo sempre igual e não se sacode da cama de forma nenhuma. Lá lhe dou os 10 minutos, que na verdade são vários 10 minutos (cerca de 4) e ela lá se dispõe ao pequeno-almoço. E sussurra 'Está-se tão bem aqui!... Será que eu podia, hoje, tomar o pequeno-almoço na cama?'. Há dois anos que Mrs. R. toma o pequeno-almoço na cama, todos os dias, depois de ter tropeçado escadas abaixo - exactamente quando ia preparar o pequeno-almoço - e, na queda, partir o pescoço. Como conseguiu chegar ao telefone, de pescoço partido e do alto dos seus já 89 anos, para chamar a ambulância, é mistério que eu não sei explicar. Caríssimos, eu só falo do que sei e só estou aqui há 1 semana. Isto contaram-me! E quem sou eu para duvidar!

Depois do pequeno-almoço, partilhado com a pequena Lulu Bell, a caniche preta (Oh! angel child!, suspira a Mrs. R.), e de mais uns valentes 10-40 minutos de ronha, são horas de sair da cama. O sonho de Mrs. R. é não ter de sair da cama. Nunca. No outro dia, depois de 3 espirros, perguntou-me se se desse o caso de estar com uma constipação, podia ficar na cama o dia inteiro. Não! Não é opção! As manhãs, ou o que sobra delas, são passadas na drawing room (sala onde nunca vi um lápis de cor, um caderno de desenho ou um pincel), mas onde nos sentamos à frente da lareira e da televisão o resto do dia, entre o "Downtown Abbey" e os numerosos assassinatos que acontecem todos os dias na Inglaterra e respectivos super-detectives - minha nossa, tanta gente morre, todos os dias, nestas terras!!! Felizmente há o Frost, o Morse, o Sherlock, a Vera, o Poirot, a Miss Marple e mais uns tantos inspectores, policias e até a jardineiras do Rosemary and Thyme para prender essa escumalha!. Entre isso, rainhas, Reis e príncipes encantados, há uma presença obrigatória, e é logo o primeiro a abrir a sessão - André Rieu, o amado!
 Mal a encaminho para o sofá, Mrs. R. pergunta - Será que podemos ver o André Rieu? E lá abrimos o youtube e ficamos com as valsas do Mr. Rieu até à hora de almoço, às vezes a tarde toda, às vezes até à hora de ir dormir. André Rieu em Viena, André Rieu em Maastrich, André Rieu no cruzeiro do amor, na Escócia, na Ópera de Sydney. "Isn´t he wonderful, Helêna? don´t you think he´s wonderful?"

André Rieu, para os meus leitores ignorantes, é a super-estrela da música clássica. É a Beyonce do violino, o Bieber da Valsa, o Jagger das Orquestras! É uma estrela! Há-de ser o primeiro a tocar uma valsa na Lua, promete a cada entrevista a partir do seu Chateau em Maastritch, que em tempos pertenceu ao Charles de Batz-Castelmore D´Artagnan, aquele em que o Dumas se inspirou para os famosos mosqueteiros. E oh! She loves him! São horas a sorrir para a televisão, a sonhar com uma valsa nos braços do senhor. "Isn´t he beautiful? Gorgeous!" diz ela.

A minha avó, em tempos, também se apaixonou por uma estrela. Estávamos em 1945 e ela andava de beicinho pelo Francisco José. Reza a história que tinha posters e t-shirts assinadas e que ía a todos os concertos, mas nisto eu acredito pouco - a minha família é muito mentirosa e tem como lema porquê estragar uma boa história com a verdade... foi assim que me contaram e eu juro que prometo que até nem acrescentei um ponto ou outro... Diz que o meu avô, na altura jovem marido ciumento, teve de intervir, e, com uma sacudidela valente, arrancou "o chora" (assim lhe chamava e chama o meu avô, quando esta história vem à baila) lá de casa!

Ora, Mrs. R. já não tem o seu marido para se enciumar e quem me conhece sabe que, sendo membro número um e co-fundadora do Sindicato das Cartas, mesmo estando demissionária há algum tempo (não tendo ninguém se apresentado para o posto), não poderia deixar esta história de amor passar em branco. Vai daí, disse "Oh Mrs. R.! Olhe lá! Isto de ficarmos aqui a babar para o moço, não tem jeito nenhum! Acho que bem, bem, era mandar-lhe uma carta de amor!" Oh a cara dela! "Can we?" Claro que podemos Mrs. R.! Não só podemos, como temos! É proibido, pelos estatutos do Sindicato das Cartas, não enviar as cartas de amor! "E nós sabemos a morada dele?" Saber, não sabemos, Mrs. R.! Mas perguntamos ao google! E vai daí, sai carta de amor para a Holanda.

Reza a história que a Mrs. R. nem sempre foi um amor de mulher. Senhora e dona de uma Manor magnífica e dos 54 hectares em volta, sempre foi de arregaçar as mangas e conduzir o tractor terreno afora e ser ela a primeira a pegar na moto-serra para cortar as árvores abanadas pelos temporais. A Manor, por si só, já lhe daria direitos feudais (isto para não falar dos casacos de peles e dos colares de pérolas e o fino gosto de preferir comer a sopa de lata com colher de prata e não com a de estanho que, por acidente (qual acidente, ignorância! lhe levei no tabuleiro do almoço) mas agora, ali meio abandonada, sem família ou criados por perto, sem ninguém para lhe ouvir as ordens ou clamar as jóias, já não se preocupa com coisas maiores do que a selecção diária de programas de televisão. "Às vezes, esqueço-me de quão próxima sou da família real!", diz-me, quando aparece o príncipe Carlos, de bochechas vermelho reluzente, na televisão. "Está com um ar acabado, o príncipe, não está? Eu sou prima de um barão! Ele era boa pessoa e eu gostava muito dele, mas às vezes ficava louco e a minha avó trancava-o no quarto ao lado do nosso quarto de crianças. Mas ele era realeza e era meu primo!." Agora, raramente se lembra disso e ainda bem, porque às páginas tantas, a minha vida era muito mais complicada e não podíamos mandar cartas de amor ao Rieu, mesmo ele vivendo num castelo na Holanda.

História de  H. G.

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