Qualquer modo de ver a realidade é necessariamente limitado. Estas são algumas das histórias que definem o meu olhar.
segunda-feira, 29 de janeiro de 2018
Lembranças do Olimpo (31)
Passaram mais de duas semanas quando Hipólito se disponibilizou a responder ao convite para o Congresso em Massada. A vida desviava-o para outros afazeres e os dias curtos cansavam-no, a ponto de às dez da noite, já o corpo lhe pedir descanso. Até aquela hora vespertina que sempre guardara para passar os olhos pelas revistas que regularmente lhe chegavam a casa, estava a aguardar melhores dias.
Antes de sentar ao computador, foi à cozinha, passou a mão pela chaleira, para se assegurar que ainda tinha chá quente, quando sentiu um borbulhar de água e viu aparecer no ar um fumo branco que lentamente esboçou uma figura humana.
- Hei! Lá!, espantou-se Hipólito, olhando a nuvem que lentamente escurecia. - Por esta é que eu não esperava! O Génio da Lâmpada!? Vens mesmo a calhar!, disse enquanto um sorriso lhe rasgava o rosto.
Esperou uns segundos até que ela ganhasse a forma definitiva e analisou-a melhor. Tinha uma barba branca de seis meses, um turbante preto cuidadosamente enrolado na cabeça e umas sobrancelhas negras ameaçantes a cobrir o olhar penetrante. Vestia uma camisa com colarinho “mao” e por cima uma capa castanha impecavelmente lisa.
Ainda Hipólito não tinha assumido o seu erro, quando ele se lhe dirigiu, com voz autoritária:
-Eu não sou um Djinn! Sou a alma do aiatola Khomeini! Por isso atem-te, que o forno não está para rosquilhos!...
Há equívocos que se podem pagar caro. Chamar Génio a um aiatola é um insulto para o mais alto dignitário na hierarquia religiosa do Islão xiita, descendente direto de Maomé e expoente máximo do conhecimento e do discernimento. E ainda por cima ao Khomeini, que pôs ponto final a 2.500 anos de monarquia no Irão!
Era para estar no Paraíso, refastelado. Aparecer-lhe assim trinta anos após a morte, saído de uma chaleira, era de arrepiar os cabelos. Talvez a família se tivesse esquecido de lhe colocar, debaixo da língua, a moeda para pagar a Caronte e, por isso, a sua alma não atravessara o rio dos Infortúnios. O Alexandre, o Grande, andou por ali e deve ter deixado lá a tradição.
Aquela aparição apanhara-o desprevenido. Mediu a situação e, depois de um longo suspiro, e de um Cruz! Credo! Maria Santíssima!, dito para dentro, engoliu em seco e justificou-se:
- Calma! Não contava com visitas a estas horas da noite! E o tipo de encenação que escolheste, confunde qualquer um!
A figura manteve o ar austero. Sentou-se no tampo do armário da cozinha e explicou-se:
-Se estavas a pensar que eu era um génio, que te ia fazer as vontades, muito ao imaginário ocidental, tira o cavalinho da chuva, e muda o discurso! Pelo menos enquanto estiveres na minha presença! Deves saber o tratamento que damos aos infiéis! E não penses que por estares em Portugal te safas. Olha que uma "fatwa" abrange todo o planeta!
A coisa estava negra. Aquela alma penada, que não dera descanso ao Ocidente, durante os dez anos que estivera no poder no Irão, estava ali com alguma intenção, a que não devia ser alheia a sua última conversa com Moisés.
Hipólito convidou-o para dentro da sala e sentaram-se na mesa de jantar. Depois, procurou colocar tom na sua voz de rádio e, com a maior delicadeza, ousou perguntar-lhe ao que vinha. A alma do Khomeini, sintonizou-se e respondeu:
- Como deves saber, desde a Segunda Guerra Mundial que os Estados Unidos ditam os termos por que se rege o discurso global, embora nas últimas décadas tenham partilhado o poder, com os países do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e as Instituições por eles controladas, como o FMI, … no contexto de um verdadeiro governo mundial. São as elites económicas que têm verdadeiro impacto nas políticas governamentais, enquanto a vasta maioria da população é ignorada e excluída do sistema político. A era neoliberal com a sua economia cada vez mais monopolizada, e com as figuras políticas a representarem amplamente os interesses das predatórias instituições financeiras e das multinacionais protegidas, fez com que uns poucos adquirissem o estatuto de “donos disto tudo”. Ora é contra este estado de coisas que eu continuo a lutar, mesmo depois de morto! A revolução iraniana de 1979, foi o início da Revolução Islâmica, que se quer mais ampla.
O Mapa do Médio Oriente do século XX é uma criação falsa e anti-islâmica dos imperialistas e dos apetites de soberanos tirânicos, que apartaram os vários segmentos da “ummah” (comunidade) islâmica, para criar nações artificiais, sem qualquer base na lei divina.
O médico ouviu e arriscou interromper:
- Eu já conhecia o proselitismo islâmico, mas o que fizeste foi usar o Estado como arma instrumental de um conflito religioso. Se os aiatolas se intitulam Líderes Supremos da Revolução Islâmica, da ummah islâmica e do povo oprimido, não são apenas figuras nacionais, mas autoridades globais.
Hipólito mantinha a voz calma de um repórter da CNN a entrevistar um senhor da guerra no seu território. Sentia que aquela alma não estava em paz, que almejava uma ordem mundial fundamentada nas suas crenças, e avançou a pergunta:
- E foi por isso que reivindicaste autoridade jurídica mundial para emitir uma fatwa pronunciando uma sentença de morte contra Salman Rushdie, cidadão britânico de ascendência indiana muçulmana, pela publicação na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos dos “Versículos Satânicos”, livro que consideraste ofensivo?
A alma do aiatola, enfunou e desenfunou, como que um respirar fundo a englobasse na totalidade e respondeu:
- Esse facto foi um erro de principiante! Devíamo-lo ter feito sem o pronunciar, como fazem os Estados Unidos, com aquilo a que chamam guerra contra o Terrorismo. Só a título de exemplo e só para falar na América Latina, lembro que uma semana depois da queda do muro de Berlim, seis eminentes intelectuais latino-americanos, todos eles padres jesuítas, foram alvejados na cabeça por ordem directa do alto comando de El-Salvador. Os perpetradores pertenciam a um batalhão de elite armado e treinado por Washington. Mas foram inúmeras as execuções de dissidentes políticos, não violentos, nessa região, consistentemente apoiados ou iniciados pelos Estados Unidos entre 1960 e 1990, para travar a terrível heresia proclamada no Concílio Vaticano II, em 1962, que propunha a “opção preferencial pelos pobres!”, desde o golpe de Pinochet em 1973, no Chile, à mais cruel das ditaduras – a ditadura militar que se instaurou na Argentina – o regime predilecto de Ronald Reagan.
O médico lembrou os honrados dissidentes que motivavam muitas das suas preocupações, quer eles se situassem a Ocidente ou a Leste, a Norte ou a Sul, à mercê daquela mãozinha que, escondida, “define” quem está a favor da “civilização” e quem nos quer levar para o “obscurantismo”, esquecendo que o nome de Nelson Mandela só foi retirado da lista oficial de terroristas do Departamento de Estado dos EUA, em 2008, e que vinte anos antes era, segundo o Pentágono, o líder criminoso de um dos mais conhecidos grupo terroristas do mundo.
Mas o Irão (como foi baptizada a Pérsia, em 1935), era um caso mais actual, de uma governação que se considera divina, a fazer lembrar os tempos da velha Inquisição. E lembrou Heródoto, historiador grego do século V a.C., que descrevia a autoconfiança dos persas, que se consideravam o centro das realizações humanas, do seguinte modo: “Acima de tudo, honram-se a si mesmos, mais do que os que com eles convivem, ou os que convivem com estes, e assim sucessivamente, com uma progressão honorífica em função da distância. Têm em menor apreço aqueles que têm a habitação mais afastada da sua. É assim porque consideram que são, em tudo, o melhor que a humanidade tem e que os outros têm um grau de virtude proporcional à sua proximidade: os que vivem mais longe são os mais destituídos”.
O seu sentido de identidade manteve-se ao longo dos séculos, bem como a sua confiança na superioridade cultural. A Pérsia – núcleo demográfico e cultural do Xiismo, optara por esta forma de diferenciação do Islão, como forma de contestação ao Império Otomano que era sunita, e colocou a tónica nas facetas místicas e inefáveis da verdade da fé. Mas quanto à questão da necessidade de derrubar a ordem mundial vigente, islamitas de ambos os lados da trincheira – sunistas e xiitas – estão geralmente de acordo.
Enquanto todo este emaranhado se lhe passava pela cabeça, o médico retomou o diálogo, indo directamente ao assunto:
- Mas o que te traz aqui a Portugal, a esta cidade onde não há vestígio da cultura islâmica?
- Tu!, disse, enquanto se levantava e deambulava pelo tapete. – Sei que foste convocado para uma Reunião em Israel, para falares das tuas experiências com os vários deuses, que dizem terem regido o mundo, e vim aqui para te dizer que “Não há outro deus além de Allah e que Muhammad é o seu profeta!”. Que haverá paz apenas para aqueles que seguem o caminho verdadeiro. Que só o Islão é capaz de libertar os povos oprimidos e que é fundamental que se lute contra a América, o saqueador mundial e as sociedades comunistas materialistas da Rússia e da Ásia, bem como contra o sionismo de Israel. Que o conflito com o Ocidente não é uma questão de concessões técnicas específicas ou de negociação de fórmulas, mas um confronto sobre a natureza da ordem mundial.
-Eu?!!! Estás muito enganado! Levantou-se também Hipólito, apontando-lhe o dedo. - Eu não estou na política!!!. Ouço o que me dizem! E, se queres saber, acho que as comunidades humanas podem ser felizes com muitas matrizes, mais ou menos religiosas, desde que haja capacidade em as fazer crer que há justiça, que os poderosos não utilizam o poder em beneficio próprio e cuidam minimamente dos desprotegidos da sorte. Ora essas matrizes governamentais, mais tecnológicas ou mais abstratas, podem ser lideradas por reis, presidentes, triunviratos ou qualquer outro esquema onde se entendam os equilíbrios como dinâmicos, pois o que hoje responde às necessidades de um povo, não se mantém imutável e, mesmo uma religião, se não evolui, morre!.
Eu entendo a tua animosidade contra os Estados Unidos! Não entendo é como tens a vaidade de dizer que tens o conhecimento e o discernimento para os substituíres! Eu, prefiro o “Iberian way of life”, com tudo o que tem de mau, ao “Afghan way of life”, só porque respondo melhor a esta matriz cultural. Percebes??? Eu, em minha casa, sinto-me em casa! Ter de aprender a viver como tu achas que eu devia viver, não me agrada nada! Prefiro lutar para corrigir as imperfeições do meu sistema, que andar aos tombos dentro do teu!
Vai para dentro do púcaro, que não tens nada com a minha vida! És uma alma penada que não trazes nada de novo! Queres substituir aquilo a que chamas tirania, por outra de igual sentido ou pior! Quando a governação é considerada divina, toda a dissidência é tratada não como oposição, mas como blasfémia e eu já paguei para esse peditório!
E dito isto, abriu a tampa da chaleira e a alma do Khomeini, qual cãozito assustado de rabo entre as pernas, enfiou-se por ali abaixo sem qualquer ruído que revelasse a sua importância histórica.
Hipólito respirou fundo! Esta coisa dos deuses e dos seus mandatários na Terra, tem muito que se lhe diga. Um tipo não está seguro de nada. Já não são só os esquizofrénicos que ouvem vozes vindas dos Céus. Há muita gente na política que se diz com orelhas capazes de interpretar os sons que vêm do espaço e transformá-los em linguagem religiosa, e esse é um problema que tem milénios.
O médico subiu para o quarto. Lavou os dentes, tirou a roupa, vestiu o pijama e enfiou-se na cama. Fora um fim de dia atribulado. Felizmente que a alma perdera a convicção. Caso lhe mandasse uma fatwa, faria como o Salmon Rushdie. Pediria protecção à Scotland Yard.
A resposta ao convite ficava para outro dia!
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