quinta-feira, 25 de julho de 2019

O porteiro


Desta vez foi a Cristina. A Ferreira. A que grita. Era ela que ocupava o ecrã, sintonizado na SIC. Apesar do som baixo, sobressaía a estridência da voz que, no entanto, se mantinha indiscernível, enquanto em rodapé se salientavam as desditas das entrevistadas que tinham tido cancro do colo do útero e expunham a sua vida à curiosidade dos espectadores ociosos da manhã ou, como eu, presos nas malhas das idas ao hospital, por acidentais quedas alheias.
Tirando isto, o ambiente era o mesmo. As mesmas cadeiras incrivelmente desconfortáveis, o ronronar da máquina da comida, o passo cadenciado dos profissionais, as suas conversas fragmentadas.
Para conseguir a minha pulseira roxa, já tinha estado 20 minutos na fila admissão ao Serviço de Urgência, juntamente com aqueles que aí iam por um motivo de saúde. Dava para ver que a sala de espera estava repleta, com grande parte lugares ocupados por membros de uma mesma família. Eram seis mulheres que vestiam calças justas, coloridas, até meio da canela e que deixavam bem patente a distribuição do excesso de gordura corporal.  À volta delas gravitavam quatro crianças entre 1 e 10 anos manobrando um triciclo de plástico entre pernas de cadeiras e pernas de pessoas, algumas de chupeta na boca, uma de chaves ao pescoço. Mas tudo em boa ordem e em silêncio.
O tempo de espera é …tempo de espera… e quando sabemos que as situações estão controladas. é mais fácil.

O que achei interessante de verificar foi a competência e simpatia do pessoal médico, de enfermagem e auxiliar com que me cruzei, em contraste com a postura de distância e sobranceria dos agentes da empresa de segurança, contratada pelo hospital, que delimitam os espaços com as suas pernas abertas, braços cruzados de bíceps bem delineados, três bolas vermelhas bordadas na camisa cinzenta e olhar sobranceiro de olhos semicerrados, que se salienta quando lhes peço uma informação. Não são informadores…e remetem-me para uma fila qualquer. Quando lhes digo, em jeito de pedido, que vou precisar de ajuda para tirar o meu pai da cadeira de rodas, respondem-me com um subtil, quase imperceptível, levantar de uma comissura labial, que talvez se encontrar um auxiliar por aí, ele me possa ajudar.
A figura do porteiro que conhecia o pessoal, que sabia dar informações, que dizia bom dia, boa tarde e até amanhã, que tomava conta de um recado se alguém precisasse, que guardava uma encomenda para levantar à saída, que dava uma mãozinha para subir o degrau,… desapareceu.
É sabido que tinham imensos defeitos e, como todos os porteiros, partilhavam informações da forma que entendiam e talvez alguns com isso lucrassem. Envelheciam nos lugares e, enquanto perdiam capacidades físicas, tornavam-se mais manhosos e alguns mais sábios.
Mas não são os nossos defeitos que nos humanizam?
Esta imagem musculada de “segurança”, treinada para ser fria, anónima, indiferente, impessoal, rotativa para não criar laços, será necessária?

Quando comecei a trabalhar havia um hospital com médicos, enfermeiros, auxiliares e administrativos… agora é uma empresa com colaboradores;
Tratávamos doentes e passámos a trabalhar com utentes;
Tínhamos uma agenda e passámos a ter um “sistema” que, quando fica “em baixo”, deixa todos de braços cruzados a aguardar que o informático resolva.
Assinávamos o ponto na sala do Enfermeiro Chefe, a quem dávamos um bom dia e uma frase de circunstância antes de tomar o pulso à jornada e passámos a “pôr o dedo”;
O horário passou a contar-se em horas de trabalho efectivo e em horas de bolsa, que podem ser generosamente geridas pelos directores, atribuindo-lhes valor temporal ou material;
Escrevíamos os diários, fazíamos resumos e revisões terapêuticas e passámos a fazer “copy paste”, quantas vezes de modo despudorado, repetindo erros não verificados;
Líamos as notas de enfermagem que traduziam o sentir de quem cuidou e vigiou na nossa ausência, e passámos a ter check lists ilegíveis;
Tínhamos gráficos de temperatura e passámos a ter listas de temperaturas sem o impacto visual de uma imagem;
Telefonávamos ao colega para expor um caso ou colocar uma dúvida, e passámos a enviar um mail;
As horas a que os registos foram efectuados passaram a ser mais importantes que os próprios registos e ganharam a dimensão de provas de defesa em tribunal, na certeza de que mais tarde ou mais cedo a todos vai acontecer;
Muitas coisas melhoraram: a eficiência, a gestão de recursos, o controlo do desperdício, supostamente a transparência dos actos… Mas pagamos um preço elevado que tanto afecta profissionais como doentes e seus familiares. Quando entramos num hospital, seja em trabalho ou na doença, não deixamos de ser nós próprios com os nossos medos, inseguranças, alegrias e frustrações. O sentir que são pessoas a trabalhar com pessoas, que a compaixão pelo sofrimento não se deve perder, apesar da frieza dos écrans de computadores que se interpõe na comunicação e dos braços cruzados de seguranças altivos.

Disse.

Texto de M.H.S.G.

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