sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Mitos



Sou, por educação e formação, secularista. Defendo uma rigorosa separação entre as instituições religiosas e as governamentais. Um Estado onde as religiões pertençam ao espaço privado.

Tal não me impede de validar muitos dos conceitos que elas trazem para o quotidiano, sem me prender àqueles que perderam utilidade por não acompanharem o conhecimento que se foi adquirindo ao longo dos séculos.

As religiões florescem quando incentivam comportamentos que melhoraram a vida comunitária e definham quando deixam de dar boas respostas aos problemas com que as sociedades se debatem.

Das diferentes mitologias pelas quais a humanidade passou e passa, eu gosto particularmente da grega. As suas histórias, hoje narradas para juventude em banda desenhada e ficção histórica, continuam a dar os valores de dignidade, solidariedade e coragem que defendo, para além de reconhecerem a importância do “Acaso”, personificado nos deuses com humores e a cometer erros, o que nos leva a aceitar as contrariedades da vida.

Há cerca de 1 mês que é minha companhia de cabeceira - “Mythos” de Stephen Fry. Estou a lê-lo em inglês por ignorar que, desde Agosto/2020, havia já uma tradução portuguesa. Demora-se mais, mas aprendem-se novas palavras… É a vida!.

A páginas 77, Zeus, casa com Hera e para a boda, é pedido aos convidados para confeccionarem as melhores iguarias, com a promessa de que o autor da mais perfeita, poder fazer-lhe um pedido. 

Desta competição culinária saiu vendedora a Abelha que ofereceu uma pequena ânfora cheia de mel que deliciou o divino casal.

A abelha voou para o pódio e discursou em frente a Zeus: - “Senhor! Fico muito feliz por teres eleito o meu mel como a melhor das iguarias, mas devo-te dizer o quão difícil ele é de preparar. Tenho de andar de flor em flor a colher o néctar e só consigo levar para casa, um pouquinho de cada vez, num trabalho de sol a sol. Às vezes tendo de percorrer grandes distâncias em cada viagem, para ao fim do dia recolher umas poucas gotas. Essa pequena ânfora que te ofereci, são quatro semanas e meia de árduo trabalho. O seu aroma é tão intenso que se torna irresistível para quem passa junto ao meu ninho e há muitos que, com grande impunidade, mo roubam, sem que eu o possa defender. Por isso, o meu desejo é que me dês uma arma, como deste ao escorpião e à cobra, para com uma picada eu possa matar quem ouse roubar o meu precioso stock.

Zeus franziu o sobrolho. – “Como te atreves a fazer um pedido tão monstruoso? Um talento como o teu é para ser partilhado e não para ser guardado de modo tão avarento, por isso recuso a tua súplica!

A abelha retorquiu: “Mas tu deste a tua palavra!”

Zeus replicou, zangado: “Eu disse que o vencedor podia fazer um pedido qualquer. Não prometi que o iria conceder! Contudo, uma vez que o teu trabalho é penoso, vou tornar-to mais fácil. Tu serás a rainha de uma colónia de indivíduos produtivos. Além disso, também te darei uma picada dolorosa e fatal, mas tu e os da tua espécie quando picarem, morrerão também.

A abelha sentiu de imediato uma sensação estranha ao fundo do abdómen quando viu nascer um ferrão com farpas que uma vez usado arrastaria parte das suas vísceras quando fugisse.

As vespas, muito menos úteis e diligentes, não têm essas farpas e podem picar várias vezes sem risco da própria vida. Mas as vespas nunca se mostraram egoístas nem arrogantes perante os deuses.

Esta é uma das muitas histórias que este livro contém, escritas com muito mais elegância e humor que este pequeno texto.


1 comentário: