terça-feira, 26 de dezembro de 2023

O Pescada

 


A razão primeira porque lhe chamavam “Pescada”, nunca a soube. Talvez os seus detratores inventassem a alcunha por ser alto, branco e sempre bem arrumado. Fosse ele pequeno e gorducho e iriam apelidá-lo de “Garrafão”, mesmo que ele não consumisse bebidas alcoólicas. Mas na equipe, alguns achavam-lhe mais defeitos que virtudes e, quando a ele se referiam, era assim que o nomeavam, para que se soubesse que eram seus críticos.

Eu gostava dele. Como profissional, tudo somado, era melhor que outros cirurgiões. Sabia das suas limitações e não se metia em aventuras onde previa grandes dificuldades. Os outros diziam que era lento, por ser demasiado meticuloso a operar, e faziam chacota quando tinham que o ajudar nas grandes cirurgias, dizendo; “Vais operar com o Pescada!? O melhor é algaliares-te!”, e riam. E riam também quando ele contava as peripécias do seu hobby, a fotografia, onde dava cartas. E aí, ele não brincava. Era tudo muito “a sério”. Equipamentos dos melhores e estudo minucioso das instruções das máquinas que adquiria. Disso sou testemunha, pois vi-o várias vezes sentado à secretária, em frente à Canon topo de gama de manual aberto, a medir-se com ela, e quando lhe perguntei se já a tinha usado, respondeu-me que só a tinha comprado há uma semana e que antes, tinha de a estudar. Mas o resultado era “Muito Bom”, a ponto de pretender vender à National Geographic Magazine as fotos que fazia aos bichinhos e plantinhas do monte, que o tiravam da cama a desoras ou no meio de inclemências do tempo para apanhar a melhor luz. Vi algumas e alguns dos pequenos filmes e confirmo a qualidade e a paciência.

Mas era o seu humor o que mais me surpreendia. Aquela capacidade para ler no inesperado um ponto alto do dia e dele retirar uma história, que depois contava despretenciosamente, ridiculizando-se se necessário, para que a situação atingisse um clímax e se extinguisse nos segundos seguintes. E se lhe pedisse para repetir, ele contava-a exatamente como da primeira vez e ria comigo, não só da história, mas por nos rirmos de coisas que outros não achariam qualquer graça. Havia muitas trapalhadas em que ele se achara envolvido e, quando o encontrava, fosse num tempo morto do trabalho ou num corredor de um Supermercado, não resistia a relembrar uma, para ficarmos a rir, os dois, até ao embaraço.

Lembro aquela que mais me levou às lágrimas: Ele tinha uma casa no Porto, onde ia regularmente, principalmente quando ele e a mulher só tinham horário de manhã. Saíam do trabalho, almoçavam num restaurante em Esposende e depois seguiam viajem. Ora num desses dias, a comida não lhe caiu bem e, minutos depois, sentiu-se nauseado. Ainda pensou em parar, mas como tinha um encontro na Praça D. João I a que não queria chegar atrasado, continuou a conduzir o seu Mercedes Classe E, até mais não poder. Em frente ao Palácio de Cristal, parou no espaço então dedicado à paragem do eléctrico e, meio cambaleante e pálido como a cal, saiu do bólide e encostou-se ao tronco da primeira árvore que encontrou. E foi nesta posição que uma alma caridosa que por ali passava, lhe foi perguntar se precisava de ajuda. Agora o relato dele: “Eu estava em ponto de vómito eminente. Estás a ver! Tinha o antebraço apoiado na árvore e a cabeça apoiada nele. Quando o ouvi falar, virei-me na sua direcção e,  aquilo que estava por um fio, rebentou, e o vómito saiu-me explosivo. Havias de ver o gajo a saltar para trás com as calças a escorrer uma papa de arroz de sarrabulho misturada com tinto do Douro! Aos pulos, a sacudir os sapatos e a dizer Oh Homem! Oh homem! Então como é! E eu sem saber o que fazer. Se acabar de vomitar ou de cuidar dele! Ainda por cima o tipo estava todo apinocado, como quem vai para uma festa. Uma desgraça! A minha mulher a sair do carro com um pacote de lenços de papel, mas o vómito tinha-o atingido em cheio. Cá pra mim tinha-lhe passado já para a cueca! E o tipo a dizer C’um caraças! C’um caraças! Sem me ligar mais! E eu lá acabei de vomitar o resto para o tronco da árvore, mas o grosso já tinha ido para cima dele.“

E ria, enquanto imitava o fulano a saltar com ar enojado. E eu ria com ele e a malta que passava sorria de nos ver rir e dos gestos dele, e a certa altura caíamos na real com medo de alguém conhecido nos tomar por insanos.

Era assim o “Pescada”, há-de haver uns bons vinte anos. Depois disso, vi-o duas vezes e numa delas pedi-lhe para recontar esta história e ele contou como se o tempo não tivesse passado e rimo-nos, talvez não tanto como dantes, mas o suficiente para sairmos dali satisfeitos de tanto rir, lembrando também os alarmes que tinha em casa e que assustavam mais os convidados que o ladrões e os esquilos que mantinha numa imensa gaiola com todas as comodidades possíveis e imagináveis para um esquilo da alta sociedade.

Espero encontrá-lo ainda mais vezes nesta vida mas, caso tal não aconteça, por certo que nos iremos  encontrar no Além para nos rirmos outra vez das mesmas histórias ou doutras peripécias que lhe tenham acontecido, que ele era um bom contador de histórias. 

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