segunda-feira, 3 de junho de 2024

Testemunho


Abril é bom! Por tudo!. Celebra-se o bom tempo, as cerejas, as flores - cravos e outras, a explosão da glicínia, os dias cada vez maiores, a liberdade, a chuva, o sol, os pássaros, a Páscoa, a neve onde ainda a há.
A liberdade associa-se a Abril porque foi bom nesse Abril estar com medo do que iria acontecer, mas era bom poder dizer que não se sabia, que se tinha medo e que se tinha tido medo.
O medo estava instalado (como diria Rui Zink) e foi preciso sacudi-lo. Éramos jovens e tínhamos tudo a ganhar.
Era assimilar tanta informação de olhos arregalados. Era não ter a polícia à porta da faculdade. Era o fim da guerra que levava os rapazes e deixava as noivas viúvas. Era o fim das mensagens de Natal dos soldados. Era poder falar sem olhar para o lado. Era poder ler sem tapar as capas dos livros. Era exagerar tudo a ver no que dava. Era usar calças - vermelhas ou brancas. Era cantar músicas revolucionárias e ouvir Zeca Afonso.
Era ganhar o futuro e fazê-lo nosso.

E os mais velhos, que eram velhos com 40 anos, pesados de uma tristeza também instalada, não tinham nada a perder e não podiam perder tempo. A televisão mostrava muitas coisas novas, mas o cinema mostrava coisas nunca vistas, sonhadas ou imaginadas.

A avó tivera uma educação esmerada para a época. Sabia costurar, bordar, tricotar e ocupava-se sobretudo a fazer renda. Tinha em casa um piano e, penso que, terá tido educação musical. No entanto, nunca aquele piano se abriu. Parecia uma mágoa. A única canção que a ouvi cantar foi a “Maria da Fonte”, uma ou duas vezes. 
Enviuvou com 70 anos, depois de um matrimónio sem graça de 45 anos e manteve-se a viver com a empregada de longa data. Nos cinco anos que com eles vivi, nunca os vi conversar, discutir, rir ou fazer o que que quer que fosse em conjunto.
No entanto, era meiga e afável com os netos e tinha sentido de humor. Adorava rir, o que só fazia junto das amigas com quem partilhava anedotas, que eu não percebia, mas que soavam a coisas proibidas. E ria-se, particularmente, das que seriam bem maliciosas. Pedia ao meu irmão para as contar repetidamente e, de cada vez, ria-se como se fosse a primeira.
Uma dessas amigas, a dona Maria José, com uma limitação física que a obrigava a usar duas muletas, morava num 2º andar, sem elevador, na rua Formosa, numa casa minúscula, atafulhada de móveis escuros e pesados, que subiam por todas as paredes. Tinha a voz distónica e era flagrante o contraste entre aquele ambiente soturno e as gargalhadas que as conversas sussurradas, entre as duas, desencadeavam. Cochichavam coscuvilhices com a preocupação de eu não ouvir. Depois do chá e das bolachas Maria com marmelada, despediam-se com beijos e abraços e promessas de novas visitas em breve.
O avô era um homem fraco e sem graça, a quem não se arrancava uma palavra, quanto mais um sorriso. Soube-se depois que terá tido uma outra vida fora de casa, de sócios, negócios e não só, onde gastava o que não podia. Em casa, estendia, em silêncio, sobre a mesa da sala de jantar, tiras de papel quadriculado, onde números desenhados a caneta de tinta permanente azul, perfilavam o testemunho das suas dívidas.

Sem eu entender os porquês, depois de 1974, percebi na minha avó, uma certa excitação na forma como abordava os netos, com frequentes insinuações de cariz sexual, que me deixavam num grande desconforto. Há assuntos que não se discutem com uma avó, ponto. E, quando a certa altura me disse qualquer coisa como “eu também tenho um senhor!”, eu só quis fugir. Apesar de tudo e de todas as aberturas de espírito que a liberdade e a educação “superior” nos pode proporcionar, a vida sexual dos nossos antepassados é a última coisa da qual queremos ouvir falar.

Mas também aprendi que há coisas das quais não podemos fugir, porque elas vêm ter connosco de um modo ou de outro. Saber por terceiros que a avó começou a frequentar as sessões de filmes pornográficos do Sá da Bandeira, à tarde, e que lá conheceu um “senhor” que passou a frequentar a casa e o quarto, não seria a melhor forma.
Incomodada e entre dentes, a empregada insinuava e descrevia os sons que vinham do quarto e de como testemunhava o contacto físico durante a hora do chá que era obrigada a servir.
O assunto foi sério a ponto do meu irmão mais velho ter ido conhecer o tal “senhor”, que lhe assegurou o genuíno amor pela avó e esta lhe terá feito sentir que, pela primeira vez na vida, se sentiu amada, sem ter encontrado na família um ombro para chorar, um conselho amigo ou um ouvido para escutar a sua felicidade, por efémera que fosse, quando tinha direito a ela, sem julgamentos e sem crítica.

Foi livre e amou enquanto durou. Como começou, não sei. Como acabou, também não. Terá acabado quando acabaram os bens? O relógio de ouro do avô e outras minudências sumiram então. Se foi a paga e se foi feliz, só isso interessa.
Nessa época, eu estava empenhada em construir o meu futuro e os meus preconceitos ainda não se tinham dissipado. A formatação é impressionante e é preciso força e tempo para arrancar conceitos que são instilados de modo constante e subtil. Mas mais do que isso, sinto que fugi para a frente, incapaz de a ouvir, por estar ocupada comigo e incapaz de derrubar o mito da avó idosa submissa e sem direito a amar e ser amada, para além do “amor” familiar e de circunstância. Mea culpa.

M.H.

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