Quando era adolescente, chegava regularmente a casa dos meus pais, a edição portuguesa das Selecções do Reader’s Digest. Detinha-me sobretudo nas pequenas histórias que encerravam cada artigo: episódios breves, muitas vezes anedóticos, que nada exigiam da mente mas que, unidos, ajudaram a formar o meu olhar sobre o mundo. Uma dessas histórias ficou-me para sempre.
Narrava-se que um homem morrera e a sua alma fora acolhida no céu por um pajem de libré que, depois de se apresentar como “um seu criado”, lhe garantiu satisfazer qualquer seu capricho. O recém-chegado, surpreendido com tamanha disponibilidade, deu azo aos seus desejos mais íntimos e pediu, lascivo, uma jovem mulher num quarto sumptuoso, para os seus devaneios sensoriais.
O criado estalou os dedos e, imediatamente, surgiu a loura perfeita, submissa às suas extravagâncias. Seguiram-se horas de cupidez, longas refeições, bebidas abundantes, despertares tardios. Nos dias seguintes repetiu o programa; mais tarde, extenuado da luxúria, exigiu viagens — Roma, Paris, Hong Kong, Nova Iorque ... — e tudo lhe foi concedido. Até que, vários meses depois, cansado de tantas "facilidades", chamou o criado e pediu-lhe "qualquer coisa onde pudesse sentir o gosto de superar uma dificuldade". O pajem, num gesto cortês, respondeu que isso era impossível: Podia conceder-lhe tudo, menos uma tarefa. O homem indignou-se — “Que Céu é este, onde não se pode fazer nada?” — ao que o criado devolveu, imperturbável: “O senhor não está no Céu! Está no Inferno!.”
Compreendi muito cedo que o não ter que fazer me corrói a alma e sempre me surpreendeu a serenidade com que alguns se declaram felizes vivendo dias sobrepostos, feitos de televisão, rotinas mecânicas, numa repetição litúrgica do nada. A reforma, imaginada como um território de liberdade, transformada num espaço onde o tempo se alarga além do suportável. A vida ativa com ritmos, responsabilidades e encontros, subitamente transmutada em horários irrelevantes, convivências escassas e a sensação de utilidade a extinguir-se.
Quarenta anos de trabalho não deixam apenas experiência: deixam hábito, estrutura mental, uma forma de se estar no mundo. Quando essa estrutura cai e se instala essa vertigem silenciosa, o cérebro, privado de desafios, perde agilidade; a memória embacia-se; o humor achata-se; a motivação desfaz-se como um músculo não exercitado.
Nada disto é inevitável. Com imaginação, disciplina e uma certa coragem é possível encontrar atividades com propósito, aprendizagem contínua, exercício adaptado e relações sociais vivas. Não é fácil nesta sociedade que não desenvolveu uma cultura de "lifelong learning". Mas essas portas existem e, para quem as atravessa, a reforma deixa de ser esse deserto monótono que vejo plasmado em tantos lugares por onde passo.

Olá dr. Fernando Gomes!
ResponderEliminarQuero passar umas férias no inferno mas não quero morrer já! Hehehe!!!
O Inferno é para sempre - "per secula seculorum". Amen!
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