domingo, 24 de março de 2013

Novidades ao almoço

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-Então? Novidades!?, digo enquanto me sento à sua frente para almoçar.
Conheço-o há mais de vinte anos e temos muitas horas de trabalho conjunto. Sempre foi “prudente”, porque as paredes têm ouvidos e nesta terra “tudo se sabe”. Olha-me de soslaio e comenta entre dentes.
-Isto aqui é para andar agachado, para não fazer sombra a ninguém! O melhor é estar calado!
E assim vivendo, falando do tempo ou de coisas consensuais, ataco a sopa lembrando a "Cena do Ódio" de José de Almada Negreiros: “Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim, e se por desgraça vem um dia sem jornais, tens de ficar em casa nos chinelos, porque nesse dia, felizmente, não tens opinião p'ra levares à rua".
Vivemos à espera que uma oportunidade nos caia de bandeja, depois de um negócio, uma morte ou de uma demissão, temerosos em apoiar ou em confrontar, não vá uma palavra fazer perigar o nosso pequeno benefício. Assistimos em vez de intervirmos. Como é notícia de jornal, arrisco.
- Você leu a notícia no JN de 10/Março, em que se fala que Cardiologia de Viana colocou um cardiodesfibrilador de 17.000 Euros, numa imigrante ucraniana de 56 anos?
O enfermeiro Ferreira, levanta os olhos do prato e resmunga:
- É porque precisava!
- E você acha bem, que essa massa toda seja gasta num hospital, onde Cardiologia não tem diferenciação em Arritmologia, em vez de a referenciar a Vila Nova de Gaia ou ao Hospital de S. João?
- Ela precisava, não precisava? Então qual é a diferença?, responde, pragmático.
- É que 17.000 Euros é muito dinheiro! Dá para comprar um Renault Clio cheio de extras!
Entretanto o Dr. Policarpo, senta-se a meu lado e não resiste a entrar na conversa.
-Se me permitem, eu também sou de opinião de que este tipo de intervenções deve ser efectuado num Centro de Referência.
O enfermeiro Ferreira, interrompe o ataque ao rojão. De repente sente-se como num interrogatório. Habituado a concordar com as decisões que vêm de cima, manda a experiência que se contenha. Não é por acaso que chegou a enfermeiro-chefe.
- O que é isso?
O Dr. Policarpo, velho médico conhecedor das vaidades humanas e do que pode resultar delas, enquanto se serve da caneca da água, explica:
- Um Centro de Referência é um serviço hospitalar que se diferenciou numa determinada área, e que recebe as situações clínicas mais raras dessa área, de modo a que essa concentração lhe permita uma experiência acumulada. Não tarda que a Europa obrigue os países a que todo o tipo de actividade que exija muita diferenciação, tenha acreditação. Ora quanto mais infrequentes são as doenças, mais apertado será o filtro, e este CDI vai ao arrepio desta tendência. Estes doentes já eram tratados eficazmente em Vila Nova de Gaia e no Hospital de S. João, considerados Centros de Referência em Arritmologia.
Só um país sem rumo se dá a estes luxos. E falar em que há mais 100 para colocar anualmente, só neste distrito, sem ninguém questionar nada, ... é um problema.!.... Estamos a falar de 2,7 milhões de Euros!!
-Calma, Dr. Policarpo! Interrompo. – Você sabe que sempre houve gente a tentar “aparecer”. Aqui até já se fez cirurgia torácica!
Mas o Dr. Policarpo não desarma.
- Assim não temos futuro. Em vez de apostarmos na eficiência que resulta da diferenciação, deixamos que impere a vaidade. Irão colocar um ou dois CDI por ano, certamente a um preço superior e com maior dificuldade de fiscalização pelo Estado, que somos todos nós, os contribuintes.

O bacalhau à espanhola, esfria no prato do Dr. Policarpo e a conversa está-lhe a fazer mal. A bem da sua saúde dirijo-me de novo ao enfermeiro Ferreira:
- Oh enfermeiro, já viu o que tem chovido este ano?
E o enfermeiro Ferreira, como que rejuvenesce, para nos contar que as maiores barragens portuguesas se aproximam da capacidade máxima de armazenamento e que só Alqueva, o maior lago artificial da Europa, é suficiente para suprir todas as necessidades durante, pelo menos, três anos consecutivos de seca.
- É bem verdade! Houve dias em que até os cães beberam de pé!
...

2 comentários:

  1. Esta doente fez estudo eletrofisiológico?
    Foi tentado controle da arritmia com bloqueados beta + Amiodarona antes de se decidir pelo desfibrilador?
    Qual a etiologia da doença?

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  2. Caro anónimo:
    Ignoro os pormenores do caso, e mesmo que os soubesse não os comentaria aqui.
    A noticia sugere uma fracção de ejecção de 28% numa miocardiopatia dilatada e, nesse contexto, o CDI é a melhor opção, o que não invalida a preocupação do Dr. Policarpo

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