Desde a infância que elegi como meus animais “mágicos” o burro e o corvo.
Um burro puxava a carroça que levava o pão lá a casa. Parava obrigatoriamente em todos os clientes, numa rotina que só o dono sabia alterar. Nem com festas, nem agarrando-lhe o arreio me obedecia, e assim que sentia um cliente aviado, iniciava a marcha, sério e honesto, em direcção ao próximo, com uma rectidão de procedimentos difícil de superar.
O corvo habitava o jardim público. Tinha nome de Vicente e fama de ladrão de tudo o que brilhasse, verdadeiro ou pechisbeque. Ninguém se atrevia a deitar-lhe a mão, e todos o respeitavam por saberem que ele valorizava aquele espaço. Associei-o à astúcia e à sabedoria. Só mais tarde é que soube haver quem o considerava símbolo de morte, solidão, mau presságio, do profano e da bruxaria.
A vida tornou-me citadino e atirou-os para os espaços desabitados onde agora raramente vou.
Dos burros vou sabendo notícias de quem lhes tenta dar utilidade. Dos corvos estranho a ausência do seu voo na paisagem portuguesa, principalmente quando facilmente os encontro depois de atravessar a fronteira.
Os burros ainda têm a sorte de um Centro para Acolhimento, subsidiado por uma organização britânica e dos raros programas de "Ecoevasão", em Trás-os-Montes, que os fazem companheiros de viagem. Dos corvos ninguém fala. Só sei deles quando alguém me diz que tem "lá um em casa, numa gaiola" promovido a papagaio de "low cost", emitindo sons e soletrando palavras num espaço de metro cúbico.
Mas enquanto os burros são animais domésticos, criados para o ambiente humano, que as novas tecnologias tiraram utilidade, os corvídeos, são arrancados à natureza.
A sua capacidade em interagir com os humanos, torna-os rapidamente incapazes de sobreviver no seu habitat, quando libertados.
Embora protegidos pelo Dec-Lei n.º 140/99 de 24 de Abril, modificado pelo Dec-Lei n.º 49/2005 de 24 de Fevereiro, que obriga a uma autorização da Direcção-Geral dos Recursos Florestais, válida por cinco anos, para a sua detenção e a faz depender de condições de espaço que implicam enormes custos, o facto é que tal não desincentiva a população de os meter em gaiolas, pela quase certeza de não ser "apanhado" ou denunciado, como o provam os comentários à notícia de uma multa a um casal que deteve um milhafre real ferido, em vez de o ter transportado, em tempo certo, ao SEPNA (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente) para lhe proporcionar tratamento adequado.
Portugal custa a integrar os valores que a Europa civilizada há muito assumiu, e onde estes problemas deixaram de ser polémicos. Enquanto tal, ficaremos privados de ver a graça do seu voo circular e de lhes ouvir o seu áspero crocitar. Mais fácil será ouvi-los a papaguear o nome de um qualquer paisano e a esvoaçar de poleiro em poleiro feitos garnizés em luto rigoroso.
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