domingo, 6 de março de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (15)



Hipólito dormira mal. Aquele programa para o dia seguinte, pesava-lhe como chumbo. Tinha que achar uma solução para que Sísifo não voltasse para o Tártaro e lá ficar a eternidade às voltas com a pedra, só porque numa altura da vida decidiu tentar enganar um deus.
Tentar ludibriar é prática de todo o humano. Só que não o dizemos assim. Chamamos-lhe “racionalizações” e são fundamentais para a auto-estima. Senão como é que conseguíamos viver com as asneiras, sempre que não resistimos às tentações e a coisa dá para o torto?

O problema estava no mau hábito destes deuses antigos com os castigos corporais, para além de não contarem com o aumento da esperança de vida do homem.
Nesse tempo, aos trinta e cinco anos era-se quase um sénior sem perdão para erros desse teor. Agora, nessa idade, aprende-se o que o excesso de juventude dificulta e muitos ainda andam em mestrados ou em doutoramentos com a ajuda dos pais, sem casa ou família constituída.
Desconhecia a idade com que Sísifo cometera os delitos mas, a julgar pela sua impetuosidade, devia se um adulto jovem.
O castigo deveria ter relação com a necessidade de impor obediência ao mesmo código, para evitar um enfraquecimento face às incursões de invasores que estariam a alterar a relação de forças naquela zona do planeta.
Sísifo arriscara um combate com os deuses sem calcular a pena que o esperava. Contaria que, como todos os mortais, em caso de morte, ir para o Hades esperar uma nova vida. Não deve ter considerado o Tártaro e nunca um trabalho daqueles.
Quem acreditaria que os mesmos deuses que fizeram as paixões curtas, iriam fazer o ódio eterno?
Definitivamente, tinha que o ajudar.

Acordou cedo, arrumou numa mochila umas botas, umas calças grossas, um casaco de couro e um boné e saiu. O dia amanhecera claro e durante a manhã o sol alegrou as janelas mas, pelas onze, surgiram as primeiras nuvens, prenunciando uma tarde chuvosa a dar razão ao dito “Março, marçagão, manhã cara de gente, à tarde focinho de cão!”. Hipólito sorriu pensando na sorte de se não estar a cumprir o seu oposto “Março, marçagão, manhã de inverno, tarde de verão”, pois assim não teria a ideia que agora lhe assomava à cabeça e, sem esperar a hora de saída do hospital, dirigiu-se ao Lar do Olimpo.

Bateu à porta e perguntou à vestal que lha veio abrir.
- Zeus está?, e nem teve tempo de lhe ouvir a resposta, pois Zeus apareceu nas suas costas.
- Entre, entre, meu amigo! Fuja desta chuva! Não contava consigo antes da uma!, estranhou, enquanto o encaminhava para dentro do templo.
- Vim mais cedo. O tempo está muito desagradável. Há previsão de chuva para toda a tarde. O terreno vai ficar difícil e com riscos para a minha integridade física. Não seria melhor adiarmos a procura do Sísifo? Como está a acabar a época da lampreia e eu cumpro todos os anos uma refeição da dita, lembrei-me de almoçarmos fora. Você já a provou de escabeche? Sei de um sítio onde a fazem muito bem!

Zeus coçou os longos cabelos, pesando os prós e os contras:
- Ok! Dr. Hipólito! Nós aqui, habitualmente comemos carne. O meu irmão Posídon é que é dado ao peixe, com medo do colesterol, mas o que o anda a afligir é o reumático. É sempre assim. A gente faz um seguro contra incêndios e calha-nos em sorte uma inundação. Mas concordo! Vamos lá fazer as honras ao bicho! Mas com contas à moda do Porto. Está bem?
- Como queira! Eu tenho o carro lá fora. Vem comigo, ou vai lá ter?
- Se não se importa, vou lá ter. Queria pedir ao Polifemo, que deve estar aí a chegar, para tirar a ferrugem de uns raios que tenho no armazém e encomendar-lhe uns cabritos para a Páscoa . Nós celebramos nessa data a nossa Eos, deusa do amanhecer,  responsável pelo brilho do sol e pelas tonalidades do Céu. Se não se importa, vá indo, que eu chego lá um pouco antes das duas.

Despediram-se. Hipólito, meteu-se pela A28 em direcção a Loivo. Accionou o Bluetooth e chamou “Lau”. Esperou que os toques cessassem e surgisse a voz do lado de lá.
- Sr. Júlio! Daqui é Hipólito. Como está? Você ainda tem lampreia?
- Boa tarde, Dr.!, respondeu ao reconhecer-lhe a voz. – Claro, que tenho Dr.! E fresquinha, de hoje. Vem cá? Quantos são?
- Somos dois! Devemos chegar aí pelas duas menos um quarto. Por favor, guarde-me uma mesa, junto à janela e prima no escabeche!

Choveu toda a viagem. O eucaliptal, marcado pelos incêndios, envolvera-se numa nuvem de grossas gotas que caíam em bátegas sobre o seu automóvel.
Antes assim. Se o tempo mudasse, era quase certo Zeus voltar à carga e lá teria de se meter com ele mato adentro.

Entrou no restaurante a correr, que há muito desistira dos guarda-chuvas, depois de ter desfeito ou perdido uma boa dúzia e meia deles. Sacudiu as calças e foi directo ao balcão principal onde o Sr. Ladislau o esperava.
Saudaram-se, falaram de saúde, que é obrigatório a um médico em qualquer lado dar um conselho, e sentou-se na mesa indicada.
Pegou no cardápio, leu as primeiras linhas e, quando levantou os olhos para ver as horas, deparou-se com Zeus sentado na cadeira em frente.

- Rápido e sem se molhar!, gracejou Hipólito. – Eu, só do carro até aqui, fiquei com as calças todas molhadas! Ainda bem que a chuva não nos apanhou no meio da mata!
Zeus, sorriu. – Como os elementos não me afectam, esqueço-me que vós, mortais, passam a vida em cuidados com o tempo, não vá uma roupa molhada ter de secar no corpo ou um ar mais encanado desandar em pneumonia!

Iniciaram os aperitivos. Zeus, de início torceu o nariz, enquanto lembrava carapaus alimados e umas cavalas à João Sem Medo que comera no Algarve, depois, à medida que o petisco desaparecia e se começou a ver o fundo à garrafa de Alvarinho, foi-se centrando na lampreia, dando pequenos estalos com a língua.
- É diferente! Mas o azeite, aqui, também manda!
- Para prato principal vamos num cabritinho da serra de Arga, para comparar com aqueles que o Polifemo lhe vai trazer.

Zeus estava feliz e Hipólito aproveitou o momento para a pergunta que lhe roera a noite e, com ar descontraído, limpou a boca, e atacou:
- Quanto ao Sísifo! Vocês já pensaram que talvez tenha sido essa vossa incapacidade em pôr um fim a essas penas eternas, que fez a humanidade preferir outros deuses? Repare que no catolicismo, o arrependimento à hora da morte e as missas dos seus familiares, levam muitas almas para o Céu!
- Não diga isso! Só agora é que não falam no Inferno nas homilias, mas eles sempre condenaram "eternamente" como nós!, respondeu o deus. - O Inferno deles é à base de caldeirões e braseiros. Nós somos criativos e contra a normalização das penas. O nosso Ixion está preso à roda em chamas a girar e o Tântalo metido em água, cheio de sede, a que não pode chegar. Mas a variedade é infinita.

- Desculpe insistir, mas como mostrou vontade de lutar por uma maior cota no mercado das almas, não seria melhor rever essas punições eternas, e fazer do vosso Tártaro um lugar de aprendizagem de bons princípios. No fundo, a vida, é uma curta passagem pela Terra, que pouco significa na eternidade de uma alma. Porquê fazer esse tempo tão determinante?
Desculpe-me a ousadia, mas na minha modesta opinião, com alguma formação dos carcereiros, não seria difícil recuperar as almas do Tártaro e coloca-las fiéis aos vossos princípios.
Até os miúdos se habituam a dragões e dinossauros e, com um pouco de marketing, era possível dar graça à Hidra, ao Cerebero, às Fúrias e às Górgonas.
- Talvez tenha razão. Temos um Concílio próximo para definir se ficamos ou se partimos e, no caso de ser o Sim a ganhar, vou pôr esse tema à discussão. Então talvez ponhamos o Sísifo a fazer qualquer coisa de útil.
- Isso seria o mínimo para quem tanto penou!, atreveu-se o médico. - Já merecia que o mandassem para o Hades esperar uma outra vida!
- Não diz mal. Talvez tenha chegado a altura de redefinir o mundo dos mortos. Os Indus usam um esquema que me agrada. Aquela coisa de a vida seguinte ser consequência da anterior, tem lógica. Uma alma que se portasse mal, teria uma próxima encarnação num pária, e a que se portasse bem subiria uns degraus na direcção do Nirvana. Era também um modo do nosso Olimpo se renovar!
Entretanto parara de chover e um pedacito de sol batia nas águas do rio. Dividiram a despesa e, à porta, Zeus olhou o céu e disse:
-Fiquei pesado! Vou necessitar de uma boa sesta! Por agora, deixemos o Sísifo que, com este tempo, sem abrigo, vacinas, dinheiro e amigos, o mais certo é ter morrido. Quando chegar a casa, pergunto se ele deu entrada no Hades! Até à semana!

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