terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Carta aberta aos Reis Magos

Caríssimos: 

Não sou dado a postais de Boas Festas, mas como ainda escrevo cartas e, há uns anos, escrevi uma ao S. José, não queria que pensassem que não vos tenho na devida consideração.
Neste mundo onde o individualismo impera, o vosso exemplo é de louvar. Andar 160km em busca de José e de Maria foi obra, principalmente vendo-vos como vos vejo e não como a tradição da religião cristã vos relata.

Tenho-vos como amigos de longa data de José que suspeitaram que só um grande perigo os faria ausentarem-se assim de casa. Consigo imaginar-vos a conversar fraternalmente na sinagoga num sábado de manhã, unidos por aqueles laços que nascem na juventude e, vai-se lá saber porquê, nos acompanham até à morte, mais fortes que todas as outras que vão aparecendo na vida. Um Baltazar ex-aprendiz da carpintaria de José, já estabelecido do outro lado da aldeia, um Belchior negociante de tecidos e um Gaspar dono de um grande rebanho de carneiros e camelos, embora nada que o comparasse a um Job.

Vejo-vos a aconselhar José, quando ele decidiu dar um rumo decente ao drama de Maria, grávida sem pai conhecido. Primeiro a tentar demovê-lo para evitar as críticas dos essénios e fariseus que obrigavam a que a "adúltera fosse lapidada e o filho do pecado morresse com ela", depois a aceitar a sua decisão e a empenharem-se em minorar os riscos de ele ser considerado apóstata e ter o mesmo destino. Mas a vida é como é, e cada um sabe de si e Deus de nós todos e, para vosso espanto, José deixou a casa a meio da noite e meteu-se ao caminho com Maria em cima do burro, pouco mais levando que a roupa do corpo e um taleigo de pão, sem dar satisfações aos filhos e às mulheres da casa num “é agora ou nunca!” para os não comprometer como cúmplices.

Imagino-vos, nos primeiros dias, à espera de um regresso, depois a discutir o que fazer face à ausência prolongada, sem poder contar com as autoridades para uma busca mais eficiente e, por fim, a decidir meter pernas ao caminho, sabendo unicamente que ele era para sul. Depois, a carregar os camelos com roupa limpa, alimentos para a viagem e para o casal, uns apetrechos para cozinhar e as fundamentais “essências” para uma eventual maleita, que nas provações de um parto, há que purificar o ar para afastar miasmas e demónios. Depois os dias pelos caminhos da Galileia e da Samaria a perguntar a este e àquele se viram ou ouviram falar de um velho, de uma rapariga e de um burro, até ao chão da Judeia, onde, no caravançarai de Belém, alguém vos fala desse casal estranho que por ali tinha passado e seguido para a montanha.

Vendo o sol pintar de vermelho o azul do céu, apressastes o passo, quando ao longe a chama de uma pequena fogueira foi a estrela que vos fez chegar um pouco antes de José se recostar naquele buraco na rocha de não mais de dez côvados.
-José! José!, chamastes, à uma, repetidas vezes e fostes recebidos com o sorriso de uma frágil Maria segurando um pequeno embrulho onde faiscavam uns olhitos assustados com os gritos eufóricos de José.
-Abençoados sejam! Disse, com as lágrimas nos olhos. - Como é que deram connosco? E porque é que se incomodaram? Obrigado, mil vezes, que isto aqui tem sido duro! Primeiro o trabalho de parto, que foi longo. Valeu-me a experiência dos meus outros filhos, senão não conseguia levar o barco a bom porto. A Maria é uma valente! Maria, junto à fogueira, tentando aquecer Jesus de todos os lados, levantou os olhos em agradecimento, também eles marejados de lágrimas. – Depois esta gruta sem nada, a obrigar-me a andar acima e abaixo a trazer água, paus para a fogueira e alguma comida, que isto são terras onde nem os cardos crescem!

Abraçaram-se longamente e José, temeroso, perguntou: - Os fariseus comentaram a nossa saída da aldeia? Foi alguém lá a casa fazer perguntas?, e foi Belchior que o descansou antes de dar os panos a Maria, que Jesus não via roupa limpa fazia mais de uma semana. - Está descansado José! Não foi lá ninguém, nem se falou mais mal de vós que o costume. Mas ainda bem que o parto não aconteceu lá, senão ao constatarem que a criança nasceu perfeita demais para as menos luas, punham-se de novo a especular. Amanhã levamos-te para Belém, para a Maria recuperar e, na próxima lua cheia voltas a casa que ninguém te vai perguntar a idade da criança.
Gaspar descarregou os camelos e, apesar da noite já ir alta, Baltazar cozinhou lentilhas e disponibilizou figos, pinhões e leite de camela enquanto Belchior embalava Jesus, dando àquela mãe um pouco de descanso.

Foi o ouro da amizade a grande prenda que levastes àquela família. Uma amizade sem porquês, daquela que se mete ao caminho sem ser preciso pedir nada e que aceita as nossas imprudências e infortúnios, sem atender aos radicalismos da época.
Por tudo isso, estou convosco, esperando que vivam no Céu bem por cima de Portugal, para quando chegar a minha vez de subir, vos dar um abraço de partir costela e ficar a cheirar a camelo, que vocês merecem.

Até lá!

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