Qualquer modo de ver a realidade é necessariamente limitado. Estas são algumas das histórias que definem o meu olhar.
quarta-feira, 30 de maio de 2012
terça-feira, 29 de maio de 2012
Remédios caseiros
- Espere um pouco, Dr.!, dizia de olhos postos na televisão, enquanto sustinha a conversa, à mesa do café.
- Aquele que está ali a ser entrevistado, foi meu colega de quarto quando andávamos na faculdade. Era completamente descabelado. Tinha a mania das partidas e elas surgiam quando menos se esperava.
Um dia de verão, íamos pela Avenida da Boavista, no Porto, quando ele decidiu que havíamos de apanhar o eléctrico. Àquela hora eles iam cheios de gente que vinha das praias e, antes de entrar, avisou logo que ía arranjar lugar sentado.
Quando conseguimos chegar à zona das cadeiras, ele começa a revirar os olhos, dá um grito rouco e põe-se a estrebuchar com uma perna e um braço e a espumar pela boca, atirando-se de modo a cair-me nos braços.
Aquela malta que estava ao lado abriu logo espaço e um fulano que ia sentado levantou-se para lhe dar o lugar, enquanto eu, tão espantado como os outros, dizia “Isto passa-lhe! Já é costume! Não se preocupem!”. Foi do que me lembrei, quando vi toda aquela gente a olhar para nós. Mas o tipo, feito macaco, já sentado, continuava com aquilo como se estivesse com um ataque epiléptico. A certa altura um outro que ia connosco, e que era tão fresco como ele, aproxima-se e diz: “Ponham-lhe uma chave na mão que isso passa!”. Não sei onde é que ele foi buscar aquele “remédio caseiro”, mas o certo é que de imediato apareceu alguém que lhe pôs um molho de chaves na mão. Aí ele começou a abrandar os movimentos, numa cadência mais lenta, e num dos últimos abanos, atira as chaves pela janela fora, com o eléctrico em andamento.
Havia de ver o dono das chaves a correr pelo eléctrico fora, a tentar localizar onde é que elas tinham caído. E ele sempre imperturbável a dar sinais de voltar à realidade, a dizer “Já estou melhor, obrigado! Acho que me esqueci de tomar os comprimidos!”, e depois para mim: “É aqui que saímos?”. E fomos por ali fora, perante a estupefacção geral.
Acho que se formou em engenharia. Mas não sei se alguma vez exerceu. Ele era de família abastada. Isto deve-se ter passado por volta de 1960.
domingo, 27 de maio de 2012
Bernardo
Quando se conhecem as doenças ou a causa de morte de alguém, é inevitável que se atribuam “culpas”, procurando um antecedente que lhes dê sentido. Os excessos alimentares e físicos, os hábitos e até os acidentes têm justificação nos comportamentos que os facilitam. Tentamos tudo para não aceitar a enorme importância do acaso.
Ontem morreu um homem de quem se inveja a bonomia e a disponibilidade, daqueles que riem com a facilidade das crianças e que raramente elevam a voz. Foi esta a imagem que dele mantive nestes quarenta anos desde que o conheci.
O acaso tolheu-lhe os movimentos, deixando-lhe a mente fresca. Combateu como pôde a paralisia que progressivamente o tornou totalmente dependente, até azedar de mais não poder.
Dez anos a sentir que amanhã estará pior, é muito tempo, principalmente quando não há culpa que sirva de razão para tão fraco destino.
Não teve sorte! Morreu no meio de empregados, com a família dispersa pelo mundo.
Não há justiça na morte!
quarta-feira, 23 de maio de 2012
Curso de Medicina na Bélgica
Eu fiz o curso em Bruxelas até ao 5º ano, na Universidade Católica de Lovaina.
Quando era aluna do 2º ano, depois das apresentações e das primeiras aulas, disseram-nos que íamos fazer um estágio para o Hospital durante todo o mês de Outubro.
A nossa turma, éramos mais de sessenta, ficou toda contente, a antever trabalho médico, e num dia frio e cinzento, lá entrámos Hospital adentro, com as batas vestidas, com alguns já de estetoscópio ao pescoço.
Fomos recebidos por pessoal administrativo e auxiliar. Estávamos tão entusiasmados que nem ligámos ao facto de não haver médicos nesse grupo. Levaram-nos para uma sala, identificaram-nos, e depois de umas informações gerais e de sugerirem que guardássemos os estetoscópios, encaminharam-nos “ lá para baixo” para nos darem uns cacifos e umas fardas.
- “Fardas? Se calhar é alguma coisa do Hospital!” Nós já íamos com as nossas batas!”
Fomos com umas auxiliares até um piso inferior e deram-nas as ditas fardas. Às raparigas uns vestidos brancos abaixo do joelho e aos rapazes uma T-shirt e calças brancas. Depois mandaram-nos ir para os pisos ter com as auxiliares “tal, tal e tal”.
Eu não gosto de fardas e não estava minimamente preparada para aquilo. Ainda telefonei ao meu pai a esboçar um lamento, mas ele tirou-me logo as veleidades. Demos então início àquele estágio de um mês em que tivemos de dar de comer aos doentes, fazer-lhes as camas, dar-lhes banho, ajudá-los na higiene, vigiar dietas, ficar com eles, ver o que é queles precisavam, sem sequer falar com os médicos que os tratavam.
Lá só somos doutores muito tarde. Não é como aqui que logo no início do curso já toda a gente põe um Dr. atrás. Lá há numerus clausus. Dos 1200 que entram para o 1º ano, só 200 passam para o 2º, e para entrada na Especialidade é igual. Tem de se fazer um exame de admissão e, se não entrar, tem de ir para Clínica Geral. É um modo de eles garantirem médicos de família para toda a população.
…
terça-feira, 22 de maio de 2012
Na Farmácia
-Dra. Paula! Eu vinha cá buscar uns comprimidos para a minha mulher, que são amarelados e têm uma ranhura a meio.
-E trouxe a caixa ou sabe o nome?
-Não!
-Sr. Fragoso! Só com essa indicação não consigo saber o que lhe dar. O melhor é ir a casa e trazer a caixa ou o nome deles!
-É que ela já está há três dias sem o remédio e eu, entretanto, tenho-lhe dado dos meus!
- E para que são esses que toma?
- São para a próstata, mas também são amarelos e quase iguais aos dela!
segunda-feira, 21 de maio de 2012
“Ave, Caesar! Morituri te salutant!”
- "Avé, César! Nós que vamos morrer saudamos-te!", diziam os gladiadores, na antiga Roma, antes dos combates, aceitando a morte que lhes coubera em sorte.
Às vezes sinto esta frase ressoar nos tempos actuais, embora com formas mais sofisticadas:
-Avé, Políticos! Nós que vamos para a guerra, saudamos-vos!
-Avé, Políticos! Nós que vamos para o desemprego, saudamos-vos!-Avé, Políticos! Nós que temos de emigrar, saudamos-vos!
...
Então como agora, nem todos os que vão a combate, estarão votados a morrer, e aos vencedores estão guardadas honrarias.
Desde Virgílio (70 a.C. - 19 a.C.) que se apregoa que a sorte protege os audazes -"Audaces Fortuna Juvat!"!
sábado, 19 de maio de 2012
Perito
Sempre foi um convencido! Daquele grupo que estuda e papagueia, mas que tem dificuldade em decidir e assinar por baixo, pelo que cedo optou por uma postura de “treinador de bancada“, para poder atribuir os maus resultados a más interpretações ou a outros.
Diziam que, três problemas eram o suficiente para o atarantar e que fora aconselhado a evitar o “trabalho”, pelo que se especializara em “reuniões sem actas”, para que nunca pudesse ser ligado a um parecer.
quarta-feira, 16 de maio de 2012
Os basbaques, os oportunistas e os vaidosos
As modas atingem todas as áreas da actividade humana. Umas são fruto dos avanços tecnológicos e dão-nos bem-estar, outras são “novidades” sem benefício, que poderão até prejudicar os seus utilizadores e a Saúde não está imune a elas.
A toda a hora surgem pseudo-soluções para problemas insolúveis ou quase, e logo aparece uma corte de basbaques, oportunistas e vaidosos, que se lhe associa. Aos basbaques, perdoa-se. São “homens que não cresceram, que ouviram, viram, ouviram, viram, e não perceberam”, e todos nós temos áreas em que, por uma razão ou outra, nos comportamos assim.
Os oportunistas são semi-selvagens que reagem a uma vantagem, sem analisar as disfunções que irão criar.
Mas aos vaidosos, não lhes dou desculpa. É a burrice que os atira para frente, na procura de um palco a qualquer preço, que a “novidade” permite. Então é ver médicos a dar cobertura a regimes dietéticos que não lembram ao diabo, a soluções terapêuticas sem evidência que as suporte e a pedir exames auxiliares de diagnóstico sem qualquer racionalidade, perante um público atordoado pelo “barulho das luzes”, que só irá dar conta de que é vítima tarde demais.
Na década de 1950 tiravam-se amígdalas por “dá cá aquela palha”, na de 60, apêndices, que nos anos 80 se questionaram, a ponto de um cirurgião amigo, classificar as apendicites “crónicas” em: “remuneradas” e “não remuneradas”. As primeiras eram para operar. As segundas tratavam-se com analgésicos. Eu não tenho amígdalas. O meu irmão não tem apêndice.
Agora, já não é fundamental tirar umas peças ao pessoal para ganhar uns cobres. Fazem-se análises, TACs, Ecocardiogramas para “ver se está melhor ou se está pior” do que aquele que fez na consulta anterior, um Quantiferon para ver se ficou contagiado por aquele senhor que tossiu ao pé de si e que não tinha boa cara.
Mas os vaidosos ganharam palco e há muitos a ocupar despudoradamente os locais de decisão, onde estas e outras coisas, que deveriam ser cedo cerceadas, ganham raiz e florescem, aumentando custos e atirando-nos para as dívidas e para as ineficiências do sistema.
Assim é na Saúde e no país.
domingo, 13 de maio de 2012
Extravagante
- Dr. Fernando! O doente da cama 1 é um malcriado que só visto! Até estou arrependida de o ter posto numa das nossas camas! Fala alto e com palavrões a toda a hora, misturados com palavras francesas, como se estivesse no Café lá da terra. Até parece que temos culpa da sua doença.
- Ainda agora quando fui passar visita, no meio da conversa, sem mais nem para quê, virou costas e, sem pedir licença, pegou no urinol e pôs-se a urinar à minha frente, como se eu não fosse ninguém! É a segunda vez que o faz! Já quando eu o internei e lhe disse que ia ficar na enfermaria comigo, perguntou-me se era na cama! Ele é louco!
- Olhe que eu penso que você acertou! Ele deve mesmo ter uma psicose maníaca! Peça colaboração de Psiquiatria, que aquilo não é só má educação! Infelizmente há muito subdiagóstico de doença psiquiátrica, até em gente com responsabilidades. Então hipomaníacos é o que mais há! Até na política!
sábado, 12 de maio de 2012
Kapo
Há personagens da ficção que vamos integrando no nosso imaginário e que nos servem de referência. Os heróis de infância geralmente persistem na idade adulta, e alguns protótipos de “maus” também.
Quase sempre se acorre ao cinema para procurar aqueles com que mais nos identificamos: os Robin dos Bosques, o Super-Homem, o Lonely Ranger, ou mais recentemente o BatMan.
São eles que nos trazem a felicidade de ver o Mal vencido pelo Bem.
Mas quando pergunto por personagens “execráveis”, sinto haver maior dificuldade na sua identificação, como se a ficção os não tivesse criado. Depois de algum pensar lá saem a custo o Judas, o Hitler, o Saddam Houssein, o Kadaffi, e só depois o Darth Vader, da Guerra das Estrelas e o Joker do Batman, mas sem grande convicção.
Na minha família os execráveis têm outros nomes.
O meu avô odiava Joseph Fouchet, que Stephan Zweig tão bem descreveu no livro com o seu nome. O traidor perfeito, o protótipo do individuo desprovido de qualquer ideologia, cujo único bem-estar que lhe importa é o seu. Figura real da Revolução Francesa, que trabalhou na segurança da sombra, adaptando-se rapidamente às mudanças da História, que apoiou todas as facções vitoriosas, e cortou as cabeças dos seus anteriores amigos.
O meu pai odeia o Iago, do Otelo, de Shakespeare. Também ele um traidor, que lutou ao lado de Otelo, que o tornou seu conselheiro de confiança, e que o trai, enquanto aparenta dedicação.
E eu, que também abomino aqueles dois, depois de algum pensar, elejo o Kapo dos Campos de concentração Nazi.
O kapo era também um prisioneiro. Alguém sem escrúpulos, que surge para ocupar um lugar “a mando”, a troco de uns pequenos favores e de fidelidade. Alguém que assume uma liderança sem projecto, que para melhorar a sua condição, aceita agredir os seus antigos companheiros.
segunda-feira, 7 de maio de 2012
Do lado de lá.
As coisas são como são, mas o modo como nos afectam, depende do lado em que estamos. Diariamente ouvimos frases do tipo “Se fosse comigo …!”, ditas em tom de superioridade, sem preocupação em entender as fragilidades dos outros e frequentemente sem lhes conhecer todas as implicações.
Hoje um médico amigo, contou-me que um director de um serviço hospitalar, estimulava os seus colaborantes a experimentar algumas das técnicas que iriam executar ou mandar executar, antes de submeterem os seus doentes a elas, para assim valorizarem os desconfortos.
Claro que estariam excluídas técnicas invasivas, como biópsias prostáticas, hepáticas, algaliações … mas, pela sua relativa inocuidade deveriam ter experiência de um toque rectal com intuito de diagnóstico, uma sonda naso-gástrica, de exames endoscópicos digestivos, de punções venosas efectuadas por enfermeiros em fase de aprendizagem, tomar banho numa cama hospitalar no período do inverno, colocar um aparelho de ventilação não invasiva durante uma noite, aguentar colados no peito os fios de uma monitorização durante o sono, urinar e defecar numa aparadeira, aguentar um dia uma tracção esquelética, simular uma tomografia axilar computorizada ou uma daquelas ressonâncias magnéticas que “nunca mais acabam” num aparelho que nos causa claustrofobia, entre outras.
É que, por certo, haveria melhor critério para a sua prescrição e mais cuidados na sua execução, e muito se iria poupar ao erário público.
É que agora como sempre: Pimenta no rabo dos outros, para nós é … refresco”.
sexta-feira, 4 de maio de 2012
A visita
Sr. Dr! Eu não posso vir todos os dias ao Hospital. Os senhores dos carros são "uma papadoura" e nós somos só os dois!.
Sr. Dr.! Por favor, quando o meu marido estiver bem, o sr. Dr. escreve-me uma carta e eu venho buscá-lo! Basta escrever o nome dele, Rio Bom, Portela, Monção. Lá toda a gente o conhece! Está bem???
quarta-feira, 2 de maio de 2012
Eu sou do tempo …
Quando se passa por realidades bem diferentes das actuais, é provável que nos venha à mente este “cliché”, principalmente se nos deparamos com gente mais nova.
Eu nasci no tempo em que havia esperança. Num tempo em que todos sabíamos que não era possível continuar fora de uma Europa que todos os dias nos deslumbrava com novidades e soluções. Esperança que redobrou no dia em que ninguém se levantou para defender a gerontocracia que obrigava à ignorância e ao servilismo. E eu acreditava que depois de ter assente a poeira revolucionária, nos iríamos organizar de modo diferente.
É que eu sou do tempo em que em muitas camas dos Hospitais Distritais, pouco mais se oferecia que hotelaria e iatrogenia, em que havia Internistas de urgência “à chamada”, e quando eram chamados … não vinham e davam umas “ordens” pelo telefone. Eu sou do tempo em que muitos médicos se ausentavam por longas horas com o conhecimento das direcções, do tempo das negociatas dos funcionários, do tempo do erro grosseiro injustificável.
Nesse tempo, eu tinha trinta e poucos anos e uma enorme esperança. Acreditava que se fizéssemos a maior parte das coisas certas, os resultados iriam aparecer … naturalmente, e até cheguei a acreditar que o tempo dos sacripantas estava contado.
Enganei-me. Ao mesmo tempo que um grupo se esforçava, havia gente a elaborar o conto do vigário para os iludir. E acreditámos em quem nos pagou para não trabalhar e nos deixou viver à rica e à francesa, para nos prender pelas dívidas.
Quem tem agora vinte anos, não vai viver como eu, feliz por ter esperança, mesmo cercado pela disfunção. Vai viver num mundo mais organizado, obrigado a sujeições que já estavam esquecidas, a aguardar a toda a hora que o céu lhe caia em cima.
Talvez em 2018 vá conseguir o ordenado de 2010, ratado da inflação! Fraca esperança!
Talvez em 2018 vá conseguir o ordenado de 2010, ratado da inflação! Fraca esperança!