segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Domicílio



Assertivo: Pacífico sem ser passivo, ao defender as suas razões.
À época a palavra não era usada, não existia ou não fazia falta, porque a bem ou a mal as coisas tinham de encaixar. Médico, chegasse cedo ou tarde, era bem recebido e agradecia-se-lhe, principalmente se chamado a horas impróprias. 
Outros tempos em que, uma vez por semana, pegava às 20:00h e largava às 08:00h, sem GPS ou telemóvel, para percorrer as ruas do Porto, que nalguns dias se prolongavam para Gaia e Matosinhos, de mapa na mão à procura dos números das portas. Estivesse frio, chuva ou daqueles nevoeiros de não se ver palmo, quanto mais as letras dos blocos dos Bairros Sociais, lá ia eu de Renault 5, em segunda mão, atento aos quelhos, escadinhas, ilhas, casas velhas ou traseiras insuspeitas (que a doença tem as suas preferências), num percurso sem outra prioridade que a sequência de um trajecto.
Trabalhei todo o dia no Hospital, em casa ajudei a arrumar os filhos e agora, à noite, estou no Permanente. Mal parei para as refeições. Ando de domicílio em domicílio desde as 21:00h. São 02:30h e este é o último que tenho marcado. É num pequeno bairro de dois pisos. Habitação recente, mal iluminada, gravuras de santos nas paredes e vasos desirmanados a dificultar a passagem, pelas escadas. Um homem de meia-idade a abrir caminho até à cabeceira de uma mulher no centro de uma cama de casal, com os longos cabelos cuidadosamente estendidos em leque na almofada.

- Boa noite!, disse, enquanto tentava entender aquela ausência de sofrimento a justificar uma a chamada a desoras. Antevendo facilidades, sorri, enquanto me aproximava:
-Então que grande mal é esse? O que se passa contigo?

A realidade atraiçoa-nos sempre e põe o perigo nos locais onde sentimos o chão seguro. Aqueles quadros nas paredes eram premonições que só mais tarde se iriam associar aos sons azedos que corroeram o ar daquela noite:
- Não me trate por tu, que não andámos na mesma escola!

Assim. Sem mais nem menos, a fechar um longo dia de trabalho. Medi-a melhor. Tinha a pele da face lisa quando deitada, mas o erguer-se tornou visíveis as rugas que a desfeavam. Teria uma boa década em cima das minhas.
Levantei as defesas. Pedi desculpa. Referi a pouca luz e ousei um falso lisonjeio à sua aparente juventude.

Esforço inútil. Um fel antigo contra a vida que lhe caíra em sorte, onde os médicos e tudo o que lhes estivesse ligado pontuava, jorrou qual lava ácida. Tudo era mau. Este por isto, aquele por aquilo, até ter sido necessário enviar sangue para os Estados Unidos e lhe fazerem o diagnóstico.

- E que doença é essa?
- Escorbuto! E agora sou obrigada a tomar todos os dias uma ampola de Parentrovite Alta Potência, que acabou ontem. E foi por isso que o chamei!
Não há segundas oportunidades para as primeiras impressões e o que torto nasce, torto há-de morrer.  Às três da manhã ninguém pensa escorreito. Passar o Parentrovite era a atitude sensata e dar sequência à consulta um castigo divino, mas a vida é assim e quem tem de morrer de um tiro, não morre de uma facada, e o caminho resvalou.
- Minha Senhora! Eu não vim aqui às três da manhã passar medicação para situações crónicas. Se há qualquer queixa nova, faz favor! Senão, ficamos por aqui, e amanhã procura o seu médico assistente.
Atitudes destas pagam-se. São desplantes temerários em frente a animais ferozes, que raramente correm bem. Aquele domicílio estava marcado por um destino e a sequência fatal surgiu, provocadora:
- Também me dói a cabeça!

Aquela frase foi um murro a obrigar mais perguntas e observações a que me podia ter escusado, para depois, revoltado comigo próprio, lhe passar a receita mais rasteira de que me lembrei:
- Aspirina 500mg – 1 embalagem. Tome 2 de 8/8h.

De seguida, despedi-me, enquanto a ouvia dizer que não lhe doía nada e que só queria a receita para saber o nome para se queixar no Jornal de Notícias. 
Virei costas e desci as escadas, enquanto me encolhia no meio dos impropérios e dos objectos que me voavam por cima. 

- Dr.! Saia depressa!, ouvi o companheiro dela, atrás de mim. Corri e senti o fechar da porta nas costas. Só depois perguntei:
- Olhe lá! Ela é uma doente psiquiátrica! Porque não me avisou?
- Eu pensei que o Dr. tinha a ficha dela!
- Oh! Deus do Céu! Neste Serviço não temos esses luxos. Você pensa que eu ando com o historial dos doentes do Porto às costas?” Aqui não há tempo para diferençar má educação de doença mental. Boa Noite! e veja se a leva ao Psiquiatra!”
Vou para o carro, ainda com o coração aos saltos de indignação, a pensar se me devo queixar de uma maluca e do marido da maluca que abusa desta disponibilidade do sistema.
Tenho mais que fazer! Tomo nota da casa, aviso o telefonista para não mandar lá mais ninguém, preencho a ficha clínica e eles que se arrumem.
Depois digo para mim:

-“Devias ter feito o diagnóstico mais cedo! Estava tudo lá! A culpa foi tua!”

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