domingo, 17 de junho de 2018

Serviço de Urgência - Precária



Laranja por alterações neurológicas agudas.

Chamo-o pelo intercomunicador. Duas vezes. Face à demora, vou ao corredor, disposta a procura-lo nalguma das macas, quando uma jovem a apoiar a marcha cambaleante de um homem de meia idade, me responde:
- É o meu tio!
- Fazem o favor de se sentarem. Então que se passa?

- O meu tio saiu ontem da prisão de Bragança. Veio de precária, como já acontece de há uns meses para cá. Fomos buscá-lo a Braga, como combinado com o táxi que o trouxe junto com mais três. Mas quando começámos a falar com ele, vimos logo que não estava bem. Dizia que lhe doía a cabeça e que queria ir ao Hospital. Levámo-lo às Urgências a Braga. Esteve lá umas horas e deram-lhe alta, com uma receita para a dor de cabeça.
- Então, após a alta, o que se passou para voltar hoje aqui?, pergunto, a pensar nas doenças que se manifestam insidiosamente e que numa primeira observação podem passar despercebidas.
- Sra. Dra.! Quando o metemos no carro para o trazer para casa, ele continuou a dizer que não estava bem e, na passagem por Vila Verde, levámo-lo ao Hospital Particular. Aí esteve a soro mais de três horas e, ao fim do dia, disseram que já estava bem e deram-lhe alta.
Levámo-lo para casa e foi uma noite de S. João. Levantava-se, saía do quarto e não dizia coisa com coisa! Ninguém dormiu! Foi por isso que o trouxemos aqui.

Alterações neurológicas agudas em doente de um estabelecimento prisional, pôs-me logo a pensar em SIDA e em infecção do sistema nervoso central. Fui ao computador ver no “PDS” (Plataforma de Dados da Saúde) se havia registos. No Hospital de Bragança, tinha uma entrada no Serviço de Urgência por dores anais, que foram interpretadas como dependentes de uma fissura e no Hospital de Braga tinha a entrada do dia anterior. Fora observado por Neurologia e Psiquiatria. Referia-se tentativa de contacto com o Estabelecimento Prisional de Bragança, sem sucesso e, ao fim de umas horas, teve alta, sem que fosse anotada qualquer alteração orgânica. O PDS não me dá acesso aos meios auxiliares de diagnóstico.

A sobrinha é uma rapariga de pouco mais de vinte anos. Está bem vestida e tem um discurso que denota alguma formação. Ele, embora ande nos quarenta, tem fortes rugas a marcarem-lhe o rosto magro, e uns os olhos mortiços que vagueiam ora pela sala, ora pelo chão, raramente em mim. Não responde ao que se lhe pergunta. É a sobrinha que dá todas as explicações:  Que está preso por furto, que não lhe conhece consumo de drogas, nem de qualquer doença e que sempre o considerou “um homem normal”. Entretanto ele tira, inapropriadamente, as coisas mais variadas dos bolsos das calças. Papel higiénico enrolado, uma esferográfica, um fio que parece um atacador de sapatos, um plástico transparente com uns papéis lá dentro, que deixa escorregar para o chão. A sobrinha tenta ajudá-lo a recuperar os pertences, mas ele, lesto, adianta-se.
Espanto-me com a certeza do gesto, para quem há minutos vacilava, mas nesta coisa de saúde há alertas que se não devem ignorar e apesar de um exame físico sem alterações, decido excluir SIDA e algumas das suas complicações neurológicas, e peço TAC crânio-encefálico, análises e faço-lhe uma punção lombar. Tudo normal. Face à negatividade do estudo, decido pedir drogas de abuso na urina: Positivas para cocaína!!

Naquele táxi vieram três reclusos em “precária” para serem recolhidos pelas famílias a mais de 200Km de distância. As drogas foram, certamente, consumidas durante a viagem.
Como é que me não ocorreu logo isso, antes de ter considerado todas as doenças?
As Leis de Murphy são uma realidade - “as coisas perdidas estão sempre no último lugar onde as procuramos!”

História de A. S.

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