sábado, 11 de dezembro de 2021

Formalidades

Esta semana, deu-me para visitar Platão e, de link em link, cheguei a esta palestra sobre Jane Austen, no YouTube, onde a dra. Lúcia Helena Galvão aproveita dois dos seus livros: Orgulho e Preconceito e Sensibilidade e Bom Senso, para nos falar de civilização.

Não li os livros, só vi os filmes, que entendi como mais umas histórias de "amor", sem qualquer relação com o pensamento que a filósofa Lúcia lhes dá. Segundo ela, Jane Austen apresenta neles as normas civilizacionais que permitiram à Inglaterra tornar-se uma potência mundial, pois a formalidade nas relações humanas é fundamental para que as sociedades progridam.

Na tropa, os símbolos e os códigos de conduta continuaram sempre bem definidos e aceites e o seu incumprimento tem consequências, mas na vida civil, no Ocidente das últimas décadas, a informalidade tem ganho espaço. A queda dos antigos protocolos éticos não foi acompanhada pela criação de novos códigos igualmente eficazes, onde não se questione e desrespeite o que se não conhece profundamente.

A "informalidade" não é um valor civilizacional e o descuido com as “formalidades sociais” pode-nos levar à catástrofe. 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

How To Speak by Patrick Winston


Patrick Henry Winston (1943 – 2019) was an american computer scientist and professor at the Massachusetts Institute of Technology. Winston was director of the MIT Artificial Intelligence Laboratory from 1972 to 1997.

A palestra é de 2018. Tem legendas em inglês (não são boas, mas ajudam).

We are lucky that we live in an age where we can watch/listen to something like this for free

sábado, 4 de dezembro de 2021

Cabeleireiros

 

 

Arnaldo, Alcino, António, Alfredo…são os nomes dos cabeleireiros que me puseram as mãos na cabeça nos últimos anos…todos começados por A por coincidência…

O resultado é o que se sabe e não os culpo. Não se podem fazer milagres! mas o que me suscita reflexão é o padrão de comportamento.

A delicadeza de trato deixa revelar uma vontade de corte…ou não sejam eles instruídos na tesoura que seguram com mestria entre o polegar e o 2ª dedo com ajuda do 4ª dedo, trinando o seu ruído metálico afiado bem junto dos meus ouvidos.

O “como vai ser hoje?” de cortesia, é comunicado sempre através do espelho, e fica estranho falarmos de frente com alguém que está sempre nas nossas costas…

Não sou de conversas intimistas nem de falatórios sobre as vidas alheias, sejam públicas ou privadas, o que, reconheço, torna a minha visita ao cabeleireiro um enfado para os ditos.

Colocam-me uma revista nas mãos, sempre a última “acabadinha de chegar” que finjo ler pois, sem óculos, apenas vejo as figuras - como quando tinha 5 anos e lia as “Selecções do Reader´s Digest” que existiam lá em casa. Vou percebendo que os que se divorciam este mês são os mesmos que há dois meses tinham o casamento de espavento noticiado nas páginas centrais e que de namoro em namoro, as pessoas que alimentam este negócio, vão sendo fotografadas em casas de luxo que os iludem de riqueza.

E eu, de tinta na cabeça a limitar a testa de modo irregular e de plásticos pretos à volta do pescoço presos por molas de cabelo, olho o espelho e penso, invariavelmente, na eventualidade de ocorrer, naquele preciso momento, um incêndio naquele salão e de me ver a fugir para a rua naquele preparo.

“A água está boa assim? se quiser posso por mais fria…ou mais quente!” - Mas para mim está sempre bem - ou acertam sempre ou a minha sensibilidade capilar é nula; e mesmo este momento de comunicação é breve para logo se voltar ao silêncio comunicacional.

Também o “está prontinha” quer laca? é tão previsível…

O que é novo para mim é que o salão, que frequento agora, tem 3 degraus. E não é que o Sr. Alfredo se apressa a dar-me o braço para que eu não caia….!!!!!!

Só quero pagar e sair para respirar.

Sempre foi assim. Não gosto de ir ao cabeleireiro.

Lembro-me de ter uns 6 anos e de o cabeleireiro ter ido a casa fazer-me caracóis com bigoudis de ferro, pesadíssimos, aquecidos e colocados na minha pobre cabecinha que cabeceava com o peso, enquanto eu gemia com a dor e sensação de carne queimada no meu couro cabeludo. Não foi uma boa experiência e o resultado foi uma carapinha que me conferia o ar angelical necessário para a função que me estava atribuída. Eu seria o anjo, com asas e tudo, que seguraria a tolha da comunhão nas cerimónias de Comunhão Solene do meu colégio. Isto numa família de não crentes!!!

Mais tarde, no cabeleireiro “Mateus” em Costa Cabral, ao ver que todas as senhoras ao saírem metiam dinheiro nos bolsos das empregadas, achei que tinha aí a minha oportunidade de brilhar. Pedi uma moeda à minha mãe que ma deu sem que eu lhe dissesse para que a queria. À saída, garbosa, e de cabeça erguida coloquei a moeda no bolso da casaca do Sr. Mateus – o dono! Senti-me adulta e se não fora o sorriso complacente e a troca de olhares entre ele e a minha mãe não me teria apercebido do caricato da situação.

Ainda hoje, 60 anos depois, me sinto corar quando recordo este episódio.

História de MHSG

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A 3ª Dose



A terceira dose de vacina não teve história. Lamento.

A fila de 200 pessoas que ordeiramente esperavam pela sua vez, era pontuada muito raramente por um comentário de desagrado, que não interferia com o colectivo e depressa se retomava o silêncio.
Num dia frio de sol, até sabia bem alternar o sol quente do meio dia com as sombras dos robustos plátanos que fazem o contorno do campo de treinos.

Para nos tornar a espera mais agradável, alguns soldados, em perfeito alinhamento, faziam marcha cadenciada de esquerdo, direito, que passava a passo de corrida e a um súbito direita volver. O suficiente para que todas as cabeças se virassem para acompanhar o espectáculo e, ao mesmo tempo, verificar com alívio o comprimento da fila que, entretanto, se formara atrás. Há quem esteja pior! 
Outros soldados faziam exercício junto a uma parede, para nosso deleite. Parecia que estavam a jogar ao "jogo da estátua" ou à “minha mãe dá licença?".
Até música houve, com um solo de corneta bem timbrado.

Pudemos assistir à chegada de uma carrinha frigorífica da "Petit Forrester", carregadinha de vacinas, que arrancou de todos um sorriso de alívio por detrás das máscaras..., que os olhos não mentem.! Tanto mais que à entrada do enorme quartel, o segurança tinha informado que a casa aberta já tinha fechado, aquela hora, por se terem acabado as vacinas.
Nada de especial.

Quando, ao fim de uma hora, foi atravessado o primeiro patamar de espera, esperava-nos uma enorme tenda, daquelas que se usam em casamentos com cadeiras coloridas que emprestavam ar de festa a esta solenidade. Aqui a aproximação física entre os candidatos à vacina foi maior, pois o sistema de encaminhar pessoas em corredor serpenteante, obriga a que nos vejamos pelas costas e pela frente. E isso não é bom! Ao ver as caras enrugadas e o ar de sofrimento tenho sempre a tentação de deixar passar à frente aqueles que parecem mais velhos do que eu... Mas são todos!.... E todos somos da mesma idade!

Não houve lugar a qualquer episódio caricato.
Mesmo a “senhora de idade” que precisou de se sentar no chão para descansar as pernas, vinha prevenida e começou a ler o Público. Ainda assim, houve quem quisesse perturbar esta paz... Quem saía da vacinação, já com esta feita, ia entre risinhos dizendo para a fila que esperara três horas e meia. Outros lançaram um "tenha paciência...." e até alguém aventou que na quarta dose ia ser pior.

Pouca coisa. Não dá história.

A proximidade física não é boa em tempo de Covid, mas a nossa população não desperdiça a oportunidade de entabular uma conversa.
Como não sou capaz de me integrar em grupos de conversação com desconhecidos (embora os meus vizinhos de fila se tivessem esforçado), vi-me entalada entre dois grupos. O grupo de homens à minha frente, falava sobre a sua experiência com vacinas prévias, do mesmo jeito que as mulheres partilham as experiências da gravidez e parto, metendo obviamente bicadas à organização e de como era bom antigamente, em que nem televisão havia, "porque a televisão em Portugal começou em 58!" Atrás de mim, em cima dos meus ouvidos, um grupo de três mulheres contava a sua vida com voz estridente, desde as meias que usam para não ter frieiras até à técnica para ludibriar a filha, para comer as sandes de leitão às escondidas. Esta última, camuflava num par de jeans muito justo a pele sobrante das gorduras de outros tempos. Ainda antes de a ouvir dizer que estava a tremer de fome e que desde que tinha sido operada ao estômago tinha que comer muitas vezes, já eu tinha feito o diagnóstico. Depois, foi só ouvir a conversa que girava a volta do que tinha comido e do que ia comer e de como dissimuladamente o fazia. Ainda ontem tinha comido leitão até lhe chegar com o dedo. Também fiquei a saber que "-Eu sou franca! Moro sozinha! Às sete horas como a sopinha e vou para a cama, ligo a televisão e tento matar os bichinhos no telemóvel. A minha médica proibiu-me de fazer renda e bordar, por causa das artroses. Eu sei que o telemóvel também não faz bem, mas tenho que apanhar estas duas aranhas..."

Pobres médicos de família!

Assim, ao fim de quatro horas, saí do centro de vacinação como de um filme de Manuel de Oliveira. Cansada, sem ter percebido nada, sem história para contar mas com dores nos braços.

Na quarta dose deve ser melhor!

História de MHSG

terça-feira, 23 de novembro de 2021

O meu sapateiro

 


É sabido que não sou uma pessoa muito corajosa. Tenho medos como qualquer um. Medo de perder os meus, medo de morrer,  medo de baratas e osgas, … enfim, o normal.
Mas, o medo mais recente, com que eu não estava a contar, é o ter medo do meu sapateiro! 
Sei que não sou cuidadosa com os sapatos. Raramente os escovo ou engraxo e, quando são confortáveis, uso-os até irem para o lixo e tento comprar outros iguais. Como tenho mais tempo desde que mudei de casa e me ando a tentar disciplinar, decidi rentabilizar o calçado. Foi  por isso que levei as botas cambadas ao sapateiro da esquina.

O homem é careca, grande e musculado como um comando, e com mais ouro nos dentes do que os meus dedos alguma vez podem comportar. UUhhh!! Intimidante do outro lado do balcão.
Pega nas botas, olha para a sola e, em menos de um segundo, precisa:
-Oh menina! Deixa chegar isto a este estado!?!?… Isto vai ficar caro!!!… Tem que ter mais cuidado!!!… Tem que vir antes de chegar aqui!!! … Está a ver??!… Assim, tenho que tirar isto!, e aponta com as unhas negras o ponto crítico. Abana a cabeça e parece crescer quando eu tento um esboço de desculpa. Só me ocorre dizer que são da minha filha, … da minha mãe … ou que mas deram já assim. Mas não me sai nada! Pego no talão e saio rápido, ruborizada e de olhos baixos.

Dias depois, vou buscá-las. Antes de entrar, espreito pela montra. O animal não está lá. Em seu lugar está um homem, também grande, mas jovem. Uff!! Que alívio!! Entro confiante. 
- Oh menina! (outra vez!!). Isto deu muito trabalho!... Era o filho!… Só podia! … e foi perorando enquanto tardava em me dar as botas.
De saca na mão prometo-me nunca mais lá voltar…

...

Passa um ano, e o meu marido pede-me que leve dois pares de sapatos para capas. Acedi. Afinal o que pode um sapateiro fazer-me?…Humilhar-me? Ora! Já nem se lembra de mim e para mais, os sapatos nem são meus!

-Oh menina! ... Como isto está!!! … A pessoa consegue andar??!... Falta aqui quase um centímetro!!!... e só deste lado!. Ui, ui!!, e a sola também está fina!! Já viu a palmilha??… Ressequida, como a palha!. Saca do giz e começa a fazer a adição na sola 26 +20 ….
De repente, pára a conta, volta a pôr os sapatos alinhados sobre o balcão e pergunta, enquanto me olha ameaçador do alto do seu metro e noventa (felizmente atrás do vidro que nos separa): E cordões?? Não acha que é preciso mudar?! Só então me dou conta que cada sapato tem um atacador diferente, de cores distintas e meio desfiados.
Com voz sumida, consigo dizer: Faça o que for preciso!, e saio novamente de olhos baixos como se tivesse reprovado num exame...

Juro-vos… É de vez! Nem que a vaca tussa! Na 6ª feira não vou lá buscá-los!

História de MHSG

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O que a vida lhe ensinou

Poema homérico de lírica peculiar, oralidade tradicional e estilo próprio, não estranho à linhagem da família. 

Na sua amplitude, o autor revela, não a aurora que almejava ser, mas o crepúsculo de uma civilização que se extinguia.


O QUE A VIDA ME ENSINOU


O que a vida me ensinou,
Ou, que foi a minha vida?
Será que me agradou?
Será que foi bem vivida?

O que a vida me ensinou,
Ou o que dela aprendi;
Se feliz ainda estou,
E o que foi que consegui!

Se muita coisa aprendi,
Mais ficou por aprender
Mas se melhor não vivi
Não me estou a arrepender

Se na vida tive sorte,
(eu acho que alguma tive), 
Se bem que a um ânimo forte,
Deva muito do que obtive.

Há quem tenha tido mais,
E não esteja satisfeito
Ambição quando é demais,
Tem um muito mau efeito

Fui vivendo o dia-a-dia,
De maneira natural.
Tive horas de alegria,
Também soube o que era o mal

Desde muito tenra idade,
Fiz trabalho com prazer,
Vencendo adversidade,
Que tive que combater.

Infância não conheci,
Muito cedo fui adulto.
Depressa compreendi,
Não dever ficar inculto

Lealdade e honestidade,
Nas relações sociais,
E respeito pela verdade,
Sempre achei fundamentais!

Várias vezes isolado,
Tentei, com grande vigor,
Que fosse bem aplicado,
Com justiça e com rigor,

Bom senso nas decisões,
P’ra benefício geral.
Mas encontrei figurões
A fazerem muito mal

Em país onde é corrente,
Em cargos de direcção,
Haver gente incompetente,
Há conflitos, com razão.

A eles não me furtei,
E suportei invejosos.
Em querelas em que andei,
Gastei tempos preciosos

Mas nunca desanimei,
De lutar com dignidade.
Muitas vezes enfrentei,
A mais cruel falsidade.

Gente que muito ajudei,
Quis-me fazer vida dura.
A esses não perdoei,
Por me trazer tanta agrura.

Nos velhos tempos de outrora,
Em que até uma PIDE havia,
Eu nunca vi como agora,
Tamanha rebaldaria.

Diplomados ignorantes,
Que eu tive que preparar,
Para úteis os tornar,
Importantes se mostraram.

Foi grande a desilusão,
Que eles me provocaram.
Em vez de ter gratidão,
Sem pudor, me atraiçoaram.

De êxitos que conquistei
Alguns se vangloriaram;
Tudo quanto eu lhes dei,
Muito mal utilizaram.

Gastaram muito dinheiro,
Do que ao País pertencia.
Por seu ego estar primeiro,
Só o seu interesse havia.

Que falsos amigos há,
Minha vida revelou.
Mas essa escola foi má,
Pois anjinho ainda sou.

Os mesmos erros cometo,
Confiante nas pessoas.
Mudar-me já não prometo,
Pois ainda há algumas boas.

Isso me apraz registar.
Bons amigos encontrei,
Capazes de acarinhar
Estudos que realizei.

Fizeram-me homenagem,
Quando fui aposentado,
Por ter mantido a coragem
De não me ter desviado.

Da rectidão que tracei,
Como sistema de vida.
Justiça sempre foi lei,
Que procurei ver cumprida.

Na vida familiar
Tive algumas decepções
Que não esperava encontrar
Em difíceis situações.

Mas isso já é passado
Que não gosto de lembrar,
Pois sempre tive a meu lado,
Alguém p’ra me estimular.

Hoje sou um homem feliz,
Sou muito mais tolerante.
Não me importo haver quem diz,
Que até me julgo importante.

Modéstia a mais é defeito.
Eu útil fui ao País.
Mais podia ter eu feito,
Se não houvesse imbecis.

Investidos no poder,
Mas com fraca competência,
Armando tudo saber,
Com enorme inconsciência.

Dispostos a atrapalhar,
Quem quer que se lhes oponha
Tentando pelo bem lutar,
Sem na cara ter vergonha.

Em 3-7-2007


sábado, 16 de outubro de 2021

John Field - Nocturnos

">John Field (1782 – 1837), nasceu em Dublin. Diz-se ter sido o inventor dos Nocturnos.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Os nossos Talibans


O meu avô paterno, que era um sábio, disse-me, quando eu acreditava na bondade “natural” do ser humano: Foge do homem de um só livro! Mais tarde, em 1974, ouvi Marcelo Caetano dizer que se rendia: “Para que o poder não caísse na rua!” e também não entendi o alcance da frase. Nessa altura, eu tinha por garantido que uma sociedade organizada não se esboroava em meia dúzia de meses.

O PREC (Processo Revolucionário Em Curso) foi a lição, com as milícias populares a fazer barreiras nas estradas, as Reuniões Gerais de Alunos a sanear bons professores, as reuniões de soldados para decidir se cumpriam as ordens dos generais, quando vi chamar fascista a tudo e mais alguma coisa e polícias, magistrados e professores desvalorizados pela turba acossada por uma meia dúzia de patetas que transportavam para a política as paixões clubistas. 
Quando o porta-aviões nuclear norte-americano "Nimitz" ancorou no Tejo  em Maio de 1978, para “descanso da tripulação”, eu entendi que fora Frank Carlucci (embaixador dos EUA em Portugal, entre Dezembro de 1974 e Fevereiro de 1978), que movera os cordelinhos para reorganizar o país fora da esfera da URSS.

Desde então para cá, olho para as manifestações de rua e para o que se escreve, nas redes sociais e na comunicação social, com reservas redobradas, por saber que o poder é hoje mais secreto e subterrâneo que nunca e que incentivar os “talibans” cronicamente descontentes, é coisa fácil. Basta que lhe deem um bode expiatório para despejar o seu ódio.

Quem já viveu mais de três décadas e esteve atento ao mundo, tem obrigação de saber que as más práticas e a corrupção grassam por todo o lado, quer no aparelho do Estado quer na vida civil, e que tudo é uma questão de “grau”, pelo que não se deve ter a vã esperança de algum dia ter estes problemas resolvidos. Há que estar atento e ir solucionando o que se identifica, com cuidado para não enfraquecer as Instituições e com a crença de que a maior parte das pessoas que trabalham (no Estado e na vida civil) não fazem o que querem, mas o que as condicionantes permitem.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Projecto para a nova Casa do Cabo

Tínhamos conhecido o arquitecto Noé Dinis, aquando da compra do nosso primeiro apartamento na Quinta Seca, em Matosinhos. Era um espaço muito agradável, principalmente para quem vem de um T1 com duas crianças pequenas. Simples e amplo, tinha traço de mestre e luz por todo o lado.

Noé Dinis é um homem de histórias e com uma longa história na arquitectura. Um curioso do mundo, conhecedor de várias culturas e dos porquês das construções daqui e dali, com conceitos precisos de como viver uma casa moderna. Mais tarde soubemos que tinha raízes em Afife, onde um dos seus tios foi  estucador. 
Após uma longa visita ao lugar, acordámos em fazer reviver a Casa do Cabo, mantendo o essencial da sua estrutura primitiva: os socalcos, a implantação da casa e dos anexos. Era sua opinião que as memórias deveriam ser visíveis a quem as procurasse, como as linhas dos acrescentos que a primitiva casa tinha sofrido e fez questão em que, durante a construção, ficasse bem patente o que fora  edificado de novo, coisas a que não nos opusemos. 
Noé Dinis passou a ser um amigo. Nos fins de semana seguintes fizemos uma visita a algumas casas por si projectadas e recuperadas, na zona de Guimarães e Braga e, na passagem por Famalicão, percorremos o Parque da Devesa que ele estava a orientar (Filme). Vimos casas que nos pareceram excessivas e outras mais contidas, onde aproveitámos para lhe dar dicas para os materiais a usar, enquanto ele nos forçava na ideia que já tinha para a casa. 
Falámos de tudo. De arquitectura à medicina, passando pela política e pela culinária, tudo veio à baila, para nos conhecermos, de modo a que a casa estivesse em consonância com o nosso estar e, algum tempo depois, sentámo-nos para analisar a sua proposta. 
Aqui vai haver muito sol no verão! A dispensa parece pequena! Onde ponho as máquinas de lavar e de secar? Será que os armários na lavandaria não podem ir até acima. Onde é que se guarda a roupa para lavar? Onde vai ficar o estendal? E que materiais para o isolamento, para o chão, para os quartos de banho? E o jardim? E a garagem? E se vierem visitas, onde põem os carros? ... e mais um sem número de pormenores, até se acordar que se podia andar para a frente e entregar o projecto na Câmara Municipal.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Caça desportiva


Ontem foi o primeiro dia desta época de caça e, das sete às dezassete horas, o meu cão andou com o rabo entre as pernas à procura de local seguro, face à quantidade de tiros que se deram na veiga vizinha. Havia de tudo. Tiros isolados, salvas de dois e até uma arma que disparava cinco ou seis seguidos. Só faltou o som de uma metralhadora. O desequilíbrio de forças é tal que me leva a pensar que qualquer dia há armas a lançar balas com sensores infravermelhos. Depois, é atirar a torto e a direito, que alguma coisa há-de cair, pois o ICNF não tem gente para estar em todo o lado para ver o que cada um apanha ou se anda demasiado perto das habitações. A quantidade de tiros de ontem não me parece estar de acordo com as espécies cinegéticas existentes na veiga, ou então, são necessários quatro tiros para abater um pardal.

Caçar nos tempos de hoje é fácil. Sai-se da cidade num todo-o-terreno topo da gama, com frigorífico para guardar umas bebidas frescas (que o tempo anda quente), veste-se um camuflado e apronta-se uma espingarda de múltiplos tiros e, para compor o cenário, põe-se um atrelado com cães para levantar e apanhar a caça.

Depois, marca-se o almoço, para o tarde, num restaurante típico com a malta do grupo para, no meio dos copos, contar as façanhas da manhã e as das épocas anteriores e volta-se para casa ao fim do dia com o sentimento de ter cumprido “um destino” tão forte como uma ida a Jerusalém nos primórdios das Cruzadas!

Chamam a isto “desporto”. Eu chamo-lhe uma “matança” semelhante à que aconteceu na quinta na Azambuja, a 17 de dezembro do ano passado, e que motivou reacções de quase todos os quadrantes da sociedade.

Nada tenho contra o controle de pragas sejam eles coelhos, javalis ou ratazanas, nem contra a caça em terrenos onde se criam animais propositadamente para esse fim mas, fora destas circunstâncias, só ser proibido caçar os que estão em vias de extinção, parece-me pouco.

Há que controlar este gozo ancestral do bicho Homem em eliminar da face da Terra tudo o que mexe à sua volta! Qualquer dia há mais caçadores que caça. Ponto final!

NOTA: De acordo com as conclusões do projecto de investigação “Violência e Armas ligeiras, um retrato português”, divulgado pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em Maio de 2010, em Portugal, existiam 25 armas de fogo por cada cem habitantes, isto é: um em cada quatro portugueses tem uma arma de fogo, sendo que quase metade delas são ilegais, num total de 2,6 milhões de armas. A preferência vai para as armas de caça. As armas mais apreendidas pelas autoridades portuguesas foram espingardas (46%), pistolas (31%) e revólveres (5%).

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Limpeza da antiga Casa do Cabo

Tenho grande admiração por quem resolve problemas, sem medo de sujar as mãos. Quando os vejo trabalhar, estou atento aos seus gestos na espectativa de um dia precisar deles para solucionar os pequenos desafios que o dia a dia me põe. Tento respeitar a norma de que só abre um relógio quem tem a certeza de o saber fechar, mas as coisas que me parecem de solução simples, fogem a essa inibição e, não raro, meto-me por caminhos sombrios de roçadoura na mão, a fazer cimento ou a tentar resolver uma fuga de água. Também tenho um gosto especial em prolongar a vida às coisas, principalmente quando a nova alma fica adequada aos novos tempos, mantendo a memória do que já foram e, quando compro novo, o mais comum é deixá-lo à vista uns dias (às vezes semanas), para que me habitue à sua presença, antes de o começar a usar.

Ora foi com este espírito que, no ano de 1998, iniciei a limpeza do terreno da Casa do Cabo. Podia ter chamado uma empresa para o fazer. Podia, mas não era a mesma coisa! É como com os automóveis, quem lhes dá o primeiro banho sou eu.

Enquanto aguardava as licenças e se planeava a arquitectura do lugar, aproveitava os poucos tempos livres para limpar a propriedade.
O destino deu-me por ajuda o sr. Catarino. Um alentejano bondoso, calmo, ex-carpinteiro de carroças e ex-mineiro, com solução para todos os problemas que iam aparecendo, chovesse ou fizesse sol.

Comprei corta-arames, alicates, roçadoura, enxadas, sacho, alvião, picareta, foices, gadanhas, forquilha, ancinho, motosserra, machado, fósforos, acendalhas e, metro a metro, fomos roçando o mato, abatendo os eucaliptos e pinheiros para deixar espaço aos carvalhos e castanheiros que lá haviam crescido. Retiraram-se os arames e puseram-se as pedras sobre os muros, enquanto se limpavam os caminhos confrontantes e, quando, a nascente, as botas se enfiaram num lamaçal escondido num monte de silvas e heras, e se descobriu a Fonte Nova, limpou-se o caminho, a mina e o largo, para se entender que havia uma taça onde se dividiam as águas, para consumo da Casa do Cabo e para os tanques que se lhe seguem. O primeiro para o gado beber, o segundo para lavagem de roupa, indo as sobrantes para um tanque dentro dos muros da propriedade.

Perguntei a história da Fonte Nova e concluí que ela também fora fonte de conflitos, noutros tempos. As lavadeiras nem sempre usavam só o tanque de baixo e os animais não bebiam se a água estivesse conspurcada. Um outro atrito teria sido despertado por um dos donos da Casa do Cabo, ao construir uma campânula sobre a taça inicial onde as águas se dividem, com a intenção de evitar que os animais lá pusessem as patas. A “coisa” não terá caído bem a um “freguês” que, a coberto de uma noite de trovoada, a desmoronou à marretada.


Com este historial, e dias depois de alguém ter escrito em cima da bica com letras vermelhas – FONTE NOVA - PUBLICA - J.F., decidi escrever uma carta ao Presidente da Junta da época, pedindo autorização para encanar as águas sobrantes para dentro da propriedade, de modo a se poder andar por ali com os pés secos e, 
futuramente, usar essa água (que se infiltrava no caminho) para regar o jardim que planeava construir. Para minha surpresa a Fonte Nova que estivera ao abandono mais de 14 anos, foi levada à Assembleia da Junta de Freguesia, alegando-se que eu tinha intenção de me apoderar da fonte.
Avisado, fui assistir à reunião, onde, para meu espanto, no meio de uma linguagem povoada de excelentíssimos e excelências, o presidente não lera a carta que lhe enviara e alimentou uma discussão sem pés nem cabeça, com uns paisanos que se encontravam na assistência. Saí a meio. Falei com o meu advogado, que me disse: “Os direitos não se pedem. Exercem-se!” e reconstruí o antigo caminho da água, desactivando a divisão que ia para o alambique e para consumo da casa, por desnecessária.

Ao fim de alguns meses de trabalho nos fins de semana disponíveis, consegui ver o que se tinha comprado e havia condição para o levantamento topográfico.

Topografia era com o meu pai, engenheiro de minas reformado, na altura com 80 anos, cheios de genica e capacidades, que durante a actividade profissional, levantara quilómetros de Alentejo e Serra de Arga, na prospecção mineira. Podia ter recorrido a uma empresa. Podia, mas não era a mesma coisa! Levantou-se o terreno e a casa e entregou-se o projecto ao arquitecto Noé Dinis.





domingo, 25 de julho de 2021

Casamento


Leio no Expresso desta semana (23/07/2021), a crónica de Henrique Raposo (licenciado em História e mestre em Ciência Política)

Filhos de Casamento

As crianças que crescem num casamento sólido são cada vez mais uma minoria - a minoria privilegiada. Seja ela negra, hispânica, asiática ou branca, uma criança faz parte da minoria privilegiada se viver numa casa sem divórcio. Não é o género, não é a raça, não é a orientação sexual, nem sequer é a classe social. É o casamento. Quando se analisam as possibilidades de sucesso de uma criança, é claro que o factor fundamental é a classe social, e não o género ou a raça. No entanto, se crescer numa família sólida, a criança pobre tem mais hipóteses de ascender pelo estudo.

Tudo se torna mais difícil no contexto do divórcio e sobretudo no contexto de uma marca social do Ocidente do século XXI: a fuga do pai. Os homens, sobretudo negros, brancos e hispânicos, tendem a fugir das suas responsabilidades – o exacto oposto do homem asiático (indiano, coreano, chinês), que permanece ancorado à família e à paternidade. Não é por acaso que as crianças asiáticas estão a superar em todos os níveis as crianças negras e também as brancas pobres.

Para mais informação comparativa, leiam, por favor, na “Spectator”, uma peça de Edward Davies, “Forget race or class, marriage is the big social divide”. Aqui quero apenas salientar que este assunto, apesar de ser vital, é um tabu. Não se pode falar de casamento, porque é visto como um assunto “reaccionário”. Não se pode falar de casamento, porque a agenda “cool” exige que se fale apenas de questões identitárias e de racismo e de machismo. Esses pontos são legítimos, sim, mas não são o nó górdio. Antes de ter a tez escura e de ser do sexo feminino, uma rapariga negra é, antes de tudo, pobre. E a sua pobreza é reforçada porque vive apenas com a mãe. Cerca de 70% das crianças negras nos EUA crescem sem o pai. É o inverso da miúda asiática que tem de lidar com o mesmo contexto social: também é de uma minoria étnica, também é pobre. Só que esta rapariga tem algo que a rapariga negra não tem: uma cultura familiar e, sim, conservadora, que mantém o pai preso ao casamento e à estabilidade que permite a ascensão dos filhos.

O colapso da família é pior que o desemprego. O emprego vai e vem. A família é a estrutura que suporta uma pessoa nos momentos de desemprego, dando-lhe uma sensação de segurança e, por arrasto, uma mente mais racional e calma. Portanto, tenhamos coragem para ver a evidência: antes de qualquer outro factor, o que atrasa a vida de uma rapariga negra não é o racismo ou o machismo, é o colapso do casamento, o divórcio, a fuga do pai às suas responsabilidades. E – repito – encontramos o mesmo fenómeno nos brancos pobres.

….

A eterna adolescência dos homens é o grande problema da sociedade ocidental. É a causa da nossa decadência. “É só meninos”, como dizia o meu velho.

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Depois, vou ao Spectator ler o artigo de Edward Davis que é "director of policy at the Centre for Social Justice. The CSJ is an independent, award-winning organisation that puts social justice at the heart of British politics.

Forget race or class, marriage is the big social divide

The latest spark to ignite the culture wars is a report from the parliamentary education committee on the underachievement of working-class white boys. But this isn’t about race. The boys don’t underachieve because they are white. Their skin colour is merely a marker by which we can see that a certain cohort is doing worse than another.

And despite received wisdom, it’s not just about poverty, school funding or investment. Children of other ethnicities who are equally poor, and even potentially at the same school, will likely do considerably better.

It’s not even about class, which seems to be the latest factor on which the fickle finger of blame is falling. I couldn’t even tell you what working-class means anymore but by most definitions the link becomes pretty tenuous and not a little pejorative.

But there is a 40-year trend that perfectly maps onto almost every aspect of this problem. It’s not much admired in modern society, but then data doesn’t really care for middle-class sensibilities. Children tell us it’s important while adults seem ever more squeamish about it. It’s marriage rates.

If we care about kids, we should care about marriage. Alarm bells should be ringing, and ringing hard.

They’ve been steadily collapsing since the 1970s. Not just declining but falling off a cliff. Even at the height of the second world war, one of its previous lowest points, the male marriage rate was almost triple what it is today. We claim to value our families but imagine the response if something we truly cared about, like employment rates, were doing the same.

People tell me that talk of marriage is moralising and uncomfortable and revert to the importance of ‘stability’ to children instead. But let’s call a spade a spade. There is no other form of relationship that offers anywhere near the same level of stability in any thriving culture in the whole of human history. If we care about kids, we should care about marriage. Alarmed wedding bells should be ringing and ringing hard.

This decline is not universal and points to the very problem discussed by the education committee this week.

New analysis of the Family Resources Survey, carried out this week by the Centre for Social Justice, has found that the disparity in marriage between rich and poor white families in the UK is very, very stark.

In the wealthiest fifth of white families by income, 84 per cent are married and reaping the benefits of that stability, with a further 12 per cent co-habiting. In the poorest fifth just 19 per cent are married with a further 9 per cent co-habiting — there is a pretty straight line through the income groups in between. It means if you are born into a wealthier family, you have a 96 per cent chance of having two parents. In our poorest communities, your chances are just 28 per cent and falling.

In real and stark terms it means this: if you’re white and rich you get a dad, and if you’re white and poor you probably don’t. Teachers, mentors, youth clubs, and investment are all great, but the ultimate privilege in life is now a present father.

It tells you everything you need to know about how seriously we take this problem that we have to harvest the statistics from around the edges of obscure national resource surveys. We don’t even collect enough information for there to be meaningful data on smaller ethnic groups than white British.

But we do collect overall family structure rates once a decade in the Census, and it is little surprise that the marriage rates of each ethnic group map almost perfectly onto the school achievements of their children.

Poor Indian and Chinese children, two communities with very high marriage rates, don’t just do better than other poor children in their GCSEs — they do better than most middle-income children too. While black Caribbean children join poor white children at the bottom of the class for both marriage rates and school attainment.

Critics will rightly say that these data are mere correlations and that poverty itself causes family instability. And they’re right to a degree. But the reverse is also true, that family instability causes poverty and the varying outcomes in the different ethnic groups simply underline this fact — social capital matters as much as financial capital to children’s futures.

But lastly, and perhaps most perniciously, is not just how little data we collect on this but our unwillingness to talk about it at all. If a drug showed the sort of effects as marriage, correlation or not, it would be in our children’s systems faster than you can say Oxford-AstraZeneca. Let’s not pretend then that we have abandoned marriage for the benefit of children. We have done it solely for the freedom of adults. 


 


terça-feira, 20 de julho de 2021

A antiga Casa do Cabo




A julgar por umas pedras lascadas no sopé do Monte da Gandra, onde actualmente impera o Farol de Montedor, já anda gente por Carreço desde o Paleolítico e há uma Anta, uma Mamoa e gravuras em pedras que sugerem que cedo o sapiens se fixou nestas paragens. A citânia de Santa Luzia dista menos de sete quilómetros da aldeia e data dos inícios da nossa Era.

Nos primórdios da nacionalidade, a paróquia de Carreço não era reguenga, isto é, não pertencia ao rei. Era domínio dos Mosteiros de Cabanas, de Tibães, de S. Romão do Neiva, de Freixieiro e de S. Romão da Torre, a quem os “casais” pagavam tributo. Aos poucos os casais foram-se apropriando das terras e os reis metendo a mão no que aqui se produzia, sem que a Igreja deixasse a sua influência e de cobrar o seu quinhão.

Paçô deve o nome a ter sido a zona onde um dos senhores teria o seu pequeno palácio e sua reserva.

A Casa do Cabo aparece nos livros de rol dos irmãos das Confrarias, nos princípios do século XVII. Então, era pertença de João do Cabo. Nas suas redondezas, a Casa do Cigano, a Casa de Agostinho, a Casa do Vale e a Casa do Neiva, que também aí se referem, ainda cá estão. Na época era-se mais sábio que na actualidade e construía-se na meia encosta, deixando a veiga para a agricultura, talvez por saberem (o que agora se tende a ignorar) que o terreno fértil não anda por aí aos pontapés.

Era uma “casa de lavoura”. Numa das pedras centrais da eira está gravada a data de 1818. Tinha espigueiro de madeira, de que persistem as pedras de apoio, cabana da eira, um alambique, um lagar, galinheiro, pocilga e currais para vacas. Recebia num tanque os sobrantes da Fonte Nova e tinha canalização da mesma fonte para água de consumo doméstico. Pelo que ainda se percebe no desenho das pedras, a casa sofreu acrescentos sucessivos, o que sugere épocas de prosperidade.

Embora não fosse sempre pertença da mesma família, manteve terrenos na veiga e bouças no monte. “Consta” que a avó da última habitante da casa, de nome Rosa Ennes da Silva, teria ido grávida de pai incógnito, para a Casa do Cabo, vinda da Casa do Cigano, tomar conta de três irmãos já velhotes (2 mulheres e 1 homem) que, por não terem descendência, a fizeram herdeira, não só da Casa, como de terrenos da veiga e bouças no monte. A sua filha Miquelina Enes da Silva, nasce a 22/07/1876, casará com José Alves de Sá, estucador e, aos 38 anos, terá uma filha - Ema Enes de Sá.

A dona Ema, que foi a última habitante desta casa, irá falecer subitamente em 15/07/1985, aos 70 anos, uns dois anos depois de ter sido assaltada e barbaramente agredida em sua casa, numa noite de julho. Apesar da idade e de viver sozinha, após um mês de internamento hospitalar e de um período de recuperação na residência de familiares, voltou à casa para produzir vinho, batatas e galinhas, com a ajuda dos parentes próximos, até aos seus últimos dias. 
Manuel Alves Barreiros, Ema Enes Sá e seu filho Manuel


1960

O seu marido, Manuel Enes Barreiros, falecera em 25/05/1968, aos 62 anos e os seus três filhos, embora mantivessem raízes na terra, tinham emigrado para bem longe, desiludidos com a agricultura e descrentes na prosperidade da aldeia.






No início do século XXI, a casa era uma ruína, envolta em heras e silvas e o lugar um amontoado de pinheiros e eucaliptos, onde uma dúzia de carvalhos procurava espaço no que antes fora terra de vinha e batatas, elevando aos céus as videiras e os arames das ramadas, arrancados dos esteios. Os quinze anos de abandono, à mercê dos elementos e da vida daninha, tinham posto à prova as estruturas da casa e do lugar, causando derrocadas de muros e abatimento de telhados, por onde as silvas trepavam em direcção ao sol, dando abrigo a cobras, licranços, lesmas e caracóis. Uma espessa manta morta cobria totalmente a grande eira e, no pomar entre as casas, as heras atapetavam o topo das fruteiras que resistiam, formando um tecto contínuo impenetrável.

O tanque, ao norte, atulhado de folhas e galhos, abrira fissuras entre as lajes e a mina que na sua vizinhança atravessa transversalmente toda a propriedade, aluíra, expondo o perigo de uma cova de dois metros de profundidade. Os caminhos com que propriedade confronta em todo o seu redor, haviam sido tomados por mato e pelo desmoronamento de parte dos muros e, como consequência, a Câmara Municipal, deixou de considerar a metade norte do lugar como “agrícola” e passou a chamar-lhe “florestal”. O matagal era um contínuo com as bouças dos vizinhos, também elas nada cuidadas. Um panorama semelhante atingia as casas vizinhas, também elas desabitadas (Casa do Cigano) ou temporariamente habitadas (Casa do Vale, Casa da Corticeira). O risco de incêndio era enorme. A agravar a situação a Junta de Freguesia de então, deixara de limpar as linhas de água e, no Inverno, a água do monte que deveria correr para norte, pelas bouças em direcção a Afife, procurava os caminhos e vinha cair em cachão pelo monte sobranceiro à Fonte Nova, para aí formar um imenso lago cujas águas, perfuravam os muros da propriedade e desciam em cascata pelos socalcos do lugar.

Foi esta a casa que comprámos em 1997. Um sem número de problemas para resolver, numa freguesia com um presidente de Junta nada disponível a facilitar a nossa instalação na aldeia e vizinhos renitentes em cumprir as determinações legais de manutenção das suas bouças.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Arrogância e Ressentimento

 

 



Nem tudo é sorte, mas sem ela, pouco ou nada é possível.

É preciso Sorte em nascer saudável, com bons genes, dentro de uma família coesa, responsável e influente. Sorte em ter bons professores e amigos que nos ajudem a definir e a progredir nos sonhos. Sorte em encontrar a feliz coincidência entre as nossas capacidades e as necessidades do mercado. E sorte em manter a saúde necessária ao esforço e empenhamento que o sucesso exige.

Só os ignorantes atribuem os altos rendimentos a mérito e os baixos a falta dele. A fraca relação entre mérito e sucesso não “legitima” a arrogância dos vencedores, nem deve desmoralizar quem não conseguiu subir na escala social.

Nas últimas décadas, Portugal entrou na onda (muito “americana”) de entender o valor de uma pessoa pela sua riqueza patrimonial e vai de dar medalhas de mérito a gente cujo sucesso deriva de alguma agilidade em lidar com o dinheiro, frequentemente o dos outros.

São difíceis de entender os altos vencimentos dos banqueiros, e os grandes lucros da gente que vive de negócio de oportunidade lembram-me uma história (ignoro a veracidade) de um cirurgião que sai do Bloco Operatório de mãos no ar e luvas ensanguentadas, para dizer ao marido que, ansioso, aguarda: “Surgiu uma complicação! Vamos ter que tirar o apêndice! São mais 200 euros! Que diz?”

Um vizinho meu conta-me, de olhos arregalados, que “fulano” está podre de rico a vender material que vai buscar França por dez e vende em Portugal por cinquenta. Ele não admira quem estudou ou se envolveu socialmente. Ele admira quem aproveitou a oportunidade.

Não nego valor a quem está atento ao “mercado”. Não lhe dou é especial mérito. Estas “oportunidades” de comprar num lado e vender noutro, geralmente associadas a nichos de mercado em expansão, dão origem a novos ricos que raramente investem em educação ou em estruturas socialmente úteis. O mais comum é gastarem em automóveis topo de gama e grandes almoçaradas.

Portugal deve ser o país da Europa onde há mais “Armandos Vara”, “Duartes Lima” e Loureiros de toda a espécie, uns a Dias, outros Valentões que, vindos do nada, usam empréstimos dos Bancos Públicos e Privados, para a “grande trafulhice” que lhes permite acarretar somas avultadas, não declaradas, e por isso, livre de impostos. São gente que anda atrás das “oportunidades” nas margens da legalidade, habitualmente “aconselhados” por Bancos, advogados e contactos conseguidos na “política”, enquanto o Portugal dos pequeninos se entretém a trabalhar e a pagar os impostos para que as estradas, os Hospitais e as outras funções do Estado lhes garanta as condições para o saque.

Nestes últimos anos tem sido difícil dar credibilidade ao nosso Estado. Tivemos um Primeiro Ministro a receber dinheiro em envelopes, um grande Banco privado a enganar depositantes, o Banco de Portugal a fingir que não via, um Joe Berardo de mil milhões de dívidas e o seu arrogante “Ah, Ah, Ah!” e todos esperamos o novo escândalo de amanhã.

Mas também é difícil acreditar numa população cujo imaginário é dominado pelo negócio de oportunidade, seja ele vender uma bouça no meio do nada a um árabe, para um palácio, ou gastar o que lhe faz falta em raspadinhas, na esperança que a Segurança Social lhe garanta o que lhe falta viver, maldizendo a sua pouca sorte e com ressentimento de quem se esforçou para ter uma vida melhor.

Um sistema económico deve ser julgado menos pela eficácia na satisfação dos desejos dos consumidores, e mais pelo desejos que gera e pelo tipo de carácter que forma na população. Eticamente, a criação de desejos "certos" é mais importante que a satisfação dos desejos quaisquer que eles sejam.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Pinheiros secos

 


- Rrrrrrrzzzzzzz!, ZUUUUUM, ZZZZZZUUUUUUUMMMMMMM! RRrrrrrr..rrr…. !, pára a motosserra.
- Boa tarde!
- Boa tarde!, responde, enquanto afasta os ramos do pinheiro, deixando a nu um grosso tronco meio apodrecido.
- Então, hoje acabam o serviço aqui?
- Sim! Falta levar estes últimos troncos. Amanhã vem o tractor para moer os galhos que aí ficaram!
O companheiro, aproveita a conversa para um descanso. Desliga também a motosserra, vira-a para baixo e apoia nela o cotovelo como numa bengala. Estão há horas, debaixo de um sol abrasador, a ultimar a limpeza destes terrenos. O ICNF contratou um outro madeireiro para o abate destas árvores que se queimaram no incêndio de Maio de 2019 e que os proprietários ignoraram. Agora é outro que as está a remover. Trabalho árduo que só peca por tardio, nesta altura de calor.
- E aqueles três pinheiros que ali ficaram? Embora não estejam mortos, não me parece ser muito seguro deixá-los ali. Desprotegidos pelo abate dos outros, quando chegar o Inverno, o mais certo é caírem. Queira Deus que não seja para cima do meu quintal nem para cima das azinheiras que estão por cima da Fonte Nova. Já chega o estrago nos carvalhos que aí havia quando abateram os pinheiros.
Dizem que aqueles três pinheiros, estão numa bouça de proprietário desconhecido e que não os podem deitar abaixo sem ordem dos Serviços Florestais. Os proprietários perderam direito às árvores abatidas. O seu desinteresse deve ter relação com as dificuldades de acesso, já que foi por um caminho que se abriu, na bouça vizinha, que foi possível retirar aqueles pinheiros com a ajuda de um guincho.
- Mas olhe que isto aqui está muito bem! Há umas semanas fui dar uma volta pelas Beiras e nem queira saber como aquilo está. Se houver incêndio vai ser como em 2017.
- Não me diga que isto aqui está “muito bem!”, que me faz lembrar aquela história do miúdo apanhado a mentir e que quando lhe disseram que ele era um mentiroso de primeira linha, respondeu: “Eu, mentiroso? Havia de conhecer o meu primo!”.
Este hábito de nos compararmos com o pior, é uma pecha. Todos temos conhecimento de uma coisa pior que aquela que estamos a viver. “Partiste as duas pernas? Tiveste sorte! Já vi gente que num acidente igual ao teu, também partiu um braço e a coluna!”, “Fulano morreu? Foi uma sorte! Do jeito que ele ia ficar, até foi melhor assim!” Nós temos que nos comparar com quem está melhor e com o que a lei determina.
- Mas olhe que a lei não é para todos! Há para aí gente que se faz de morto e ninguém o chateia!
- É! Mas pelo jeito que isto leva, não creio que a União Europeia esteja disposta a mandar dinheiro para a nossa floresta e para os incêndios, sem que o governo altere este estado a que chegámos, onde nem se sabe quem são os proprietários. Mas adiante, que vos estou a atrasar! Bom resto de dia!
- Boa tarde!, e vá de puxar o “starter” da motosserra. - Rrrrrrrzzzzzzz!, ZUUUUUM, ZZZZZZUUUUUUUMMMMMMM! RRrrrrrr..rrr, logo seguido da outra- Rrrrrrrzzzzzzz!, ZUUUUUM, ZZZZZZUUUUUUUMMMMMMM! RRrrrrrr..rrr!, ZUUUUUM, ZZZZZZUUUUUUUMMMMMMM!
Foge Fernando!!!!

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Caminhos do monte

 



Todas as semanas dou um passeio a pé pelo monte. O mais comum e curto, é subir ao estradão que une Carreço a Afife, descer até ao Casino, comprar o jornal, tomar um abatanado, e voltar pela recente estrada paralela à linha do comboio.
Uma vez por outra cruzo-me com madeireiros, raramente com pedestres, ciclistas ou motociclistas em recreio, nesta pequena floresta onde imperam eucaliptos e pinheiros.
Quando me meto a explorar uma lateral, passados umas dezenas de metros, esbarro em muros, árvores ou num troço do caminho atulhado por ramos secos e pedras derreadas dos muros, a obrigar-me a voltar para trás.
Sou um “urbanita” que não entende uma floresta sem caminhos identificados, sejam eles de servidão, pertença de dois ou três, ou rurais e florestais, que os há concerteza, que os madeireiros contornam, porque há muito estão entregues ao abandono.
Um amigo meu, do Porto, vendeu recentemente uma moradia onde viveu até há uns 20 anos. Tinha cave, rés-do-chão e primeiro andar, garagem para dois carros na traseira e um pequeno jardim em frente. Dois meses depois o comprador interpelou-o por não conseguir meter os carros na garagem e quando se foi analisar o corredor de acesso, chegaram à conclusão que os automóveis actuais têm uma distância entre rodas significativamente superior aos daquela data.
Com os caminhos rurais e florestais deve ter acontecido a mesma coisa. Estão desadaptados às novas exigências, mas eles são fundamentais por fazerem parte dos perímetros florestais e proporcionarem a circulação de animais, máquinas e viaturas florestais, para além da importância acrescida para a proteção civil e de facultarem as ligações a áreas com considerável valor ecológico, paisagístico e ambiental.
Daí a necessidade de as manter limpas e em bom estado de conservação, regularizando o piso, desmatando a vegetação no caminho e nas bermas de modo a evitar ignições e a propagação do fogo.
Junto a minha casa havia dois destes caminhos, que ao longo destes anos em que aqui vivo, tentei manter livre de árvores. Há uns anos, ainda eram percursos de motards e ciclistas de BTT. Num deles alguém colocou no seu início um volumoso bloco de pedra para, anos depois, construir uma moradia, agora embargada. O outro, depois do incêndio de maio de 2019, foi parcialmente tomado por acácias e fetos e, embora ainda se passe, é aconselhável levar uma catana.
Estou em crer que a floresta de Carreço já teve melhores vias, pese embora a actual maquinaria permita, em meia dúzia de horas, abrir e regularizar estes caminhos para os benefícios referidos.
Hoje, um madeireiro abriu um novo caminho no monte, em terreno particular, para conseguir retirar a madeira abatida.
Não foram necessárias muitas horas, nem planos de engenharia. Imperou a necessidade.
Daniel Fontainhas, Francisco Cruz e outras 17 pessoas