domingo, 13 de abril de 2025

O Ocaso dos Deuses - 44





Hipólito subia para o quarto, quando sentiu Nossa Senhora a bater no vidro da porta. Correu a abri-la. A mãe de Cristo, sorrindo, afirmou: - Já ia no Monte Farinha, quando me lembrei de ter deixado aqui uma vela! e, à guisa de quem confessa um pecadilho: - Eu tenho um fraquinho por velas de cera de abelha com perfume, como esta. As que me costumam oferecer são de parafina e sem qualquer fragrância. Esta tem um suave aroma a alfazema que me agrada imenso. São difíceis de arranjar. Nem em Fátima há! Lá é ao peso! Quanto maior, mais caro! O povo, em geral, acha que o muito é qualidade e as velas votivas que atira para o fogo são prova disso, quando o sentir é mais importante que a coisa.

Hipólito aproveitou a deixa para lembrar as grandes ofertas que já se fizeram à Santa da Ladeira, à Amelinha de Vilar Chão e a muitos outros locais onde se fez crer existir um posto de contacto com os Céus.
Nossa Senhora respondeu: - Isso são resquícios do paganismo greco-romano, que os cristãos optaram por integrar, para os manter sob controle. O mesmo se passa com alguns dos santos ditos “populares”, como o São Roque.
Quanto à Santa da Ladeira o descabelamento foi tal, que tive de intervir e fazer com que fosse presa. Verdade seja dita que de Torres Novas a Fátima são uns meros 24Km, o que constituía uma ameaça se se viesse a criar aí um novo santuário. Quanto à Amelinha de Vilar Chão não foram precisas medidas tão drásticas. Resolveu-se o problema com “subtilezas”, como em muitos outros lugares onde apareceram videntes. Fátima é um caso especial, mas hoje não dá para falar dele, senão nunca mais saio daqui! E dirigiu-se para a porta dizendo: -Adeus que se faz tarde! Esta noite tenho de dar uma volta pelos meus principais santuários em Portugal. Daqui vou a Santa Luzia, passo pela Senhora da Graça em Mondim de Basto, pela Senhora da Peneda no Gerez e depois, é ir por aí abaixo. Pela madrugada tenho de ter tudo terminado, que amanhã e depois, vou andar por Espanha e França. Adeus! E dito isto, ascendeu ao céu esfumando-se na noite.

Hipólito fechou a porta sentindo-se honrado com a visita de Nossa Senhora e ainda por cima com inversão dos papéis, pois não era ele a “rogar por nós pecadores”, era a mãe de Deus a pedir-lhe uma intervenção, junto de outros humanos, para que a “marca” Nossa Senhora não fosse usada abusivamente. Pegou no Smartphone e pesquizou “aparições marianas”. Havia registo de mais de duas mil desde o ano 40 da E.C., embora a Santa Sé só reconhecesse 16 a 28. A maioria tinha acontecido em Portugal, Espanha e França nos últimos 200 anos, a crianças pobres. Mesmo que Nossa Senhora se desse ao trabalho de uma aparição por ano, ele fora um dos contemplados, no meio de 2,4 biliões de cristãos que hoje há no mundo. Não iria aladroar como fizeram outros videntes, guardaria o segredo para si, também para poder ser mais eficaz em cumprir a vontade da Mãe de Deus, caso fosse necessária qualquer intervenção sua. Como os “Secularistas” não têm liderança, o melhor era manter-se atento ao que se passava na Califórnia e em Shenzhen (o “Silicon Valley” chinês), por ser aí que andam a borbulhar as forças passíveis de definir os novos comportamentos. Mas não só. Iria estar também atento aos “fenómenos populares” não dependentes de qualquer racionalidade, que são frequentemente o núcleo de grandes alterações sociais catalisadas por oportunistas de toda a espécie.
Lembrou-se então do que Nossa Senhora disse: “O mesmo se passa com alguns dos santos ditos “populares”, como o São Roque!”, e planeou rever o assunto no dia seguinte. A noite ia já avançada. Felizmente era sábado e tinha o domingo livre.



terça-feira, 1 de abril de 2025

O Ocaso dos Deuses - 43



Hipólito organizou o pensamento em voz alta, para que Nossa Senhora ouvisse.
Maria era judia e vivia em Nazaré que, na altura, teria entre 200 e 400 habitantes e onde todos se conheciam.
Tinha cerca de 14 anos quando ficou grávida de pai incógnito.
Na lei judaica, o adultério é punível com a pena de morte, conforme indica o livro de Levítico. A Torá prevê que tanto o homem como a mulher que cometerem adultério sejam apedrejados até a morte.
Maria se identificasse o pai seriam os dois lapidados.
José compadeceu-se de Maria.
José era um velho para a época. Teria cerca de 40 anos, era carpinteiro, viúvo e pai de vários filhos. Ser carpinteiro era pertencer à “elite” da aldeia.
As afirmações de José quanto à paternidade, não foram tomadas a sério na sinagoga e a dúvida persistiu.
Quando Maria estava perto do parto, José fugiu com ela de burro, sem levar nenhuma mulher da família para ajudar, quando a mortalidade associada ao parto, à época, era muito grande.
José era um homem avisado, o que faz pensar que a família devia ter cortado relações com Maria ou a premência da fuga.
Ficaram numa caverna nas imediações de Belém, por terem chegado à noite ao caravançarai e este já estar fechado.
De Nazaré a Belém são 14km a pé, cerca de 3 horas com passo estugado.
José ajudou o parto e Jesus nasceu saudável e sem complicações, o que é obra sendo Maria primípara.
Nos dias seguintes, uns amigos de José foram a essa caverna, levar-lhe uns “precisos”, talvez por já saberem desse esconderijo. O leite deve-lhes ter parecido ouro, uns panos, mirra e algo que comer o incenso.
Depois, Jesus foi educado por José que, como bom judeu, o ensinou a ler. Desde a diáspora que o pai tinha obrigação de ensinar os filhos (não às filhas) a ler, para manter o culto vivo.

Nossa Senhora ouviu com atenção o raciocínio de Hipólito, sem que no seu rosto assomasse qualquer ruga de agrado ou contrariedade e, no fim, comentou: - A realidade é demasiado complexa para se resumir numa página! Diferentes observadores narram os mesmos factos de modo diverso, limitados que estão pelas suas capacidades e experiência de vida. Para mais, quando a oralidade é o principal meio de comunicação, as deturpações são inevitáveis. Mas lembre-se que cada história que se conta tem intenção de influenciar o ouvinte/leitor e, se os conceitos que se querem passar são importantes, há que realçá-los.
O senhor já reparou que um manequim estilizado, mede 11 cabeças, quando na realidade as pessoas medem 7 cabeças e meia. Mas se quiser desenhar um herói, deve fazê-lo com 9 cabeças. As “figuras de estilo” são muito importantes para que a história “funcione”.
Como sabe, quando alguém se benze, diz: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. O feminino está ausente. O culto Mariano foi o tributo mínimo à mulher, numa religião onde o homem é o centro de tudo. 
Essa história que conta não é inspiradora. A outra é melhor! Nossa Senhora é um ícone de mãe, de bondade, de serenidade e porque não … de beleza feminina. A sua “história” põe, de novo, a tónica num ser masculino. Em José. José é o herói ao afirmar-se como pai da criança que Maria trazia no ventre, para assim impedir a sua lapidação. José é o homem importante da aldeia que arrisca a sua posição para defender uma rapariga pobre, caída em desgraça, por suspeita de adultério.
É uma boa regra não deixar que a verdade estrague uma boa história! Guarde essa para si e para os seus amigos e, por favor, faça o que lhe pedi. 
Eu não quero ser mais do que aquilo em que me transformaram e gosto de sentir as pessoas confortadas quando pensam em Nossa Senhora, seja ela da Agonia, da Ajuda, do Alívio, do Amparo, Aparecida, Auxiliadora, da Boa Hora, da Boa Morte, da Cabeça, Desatadora de Nós, da Graça, dos Mares, do Monte, da Pena, da Vitória, de Fátima ou de qualquer outro lado, que títulos não me faltam!

Hipólito beijou-lhe de novo as mãos, prometendo tudo fazer para que os Secularistas não se apoderassem da sua imagem com qualquer intenção política, enquanto a conduzia à porta da casa. Aí Nossa Senhora elevou-se e iniciou nova ascensão ao céu, esfumando-se numa nuvem que entretanto passava.