domingo, 6 de outubro de 2024

Lembranças do Olimpo - 34

 Kissinger desceu do púlpito e, ao pisar o último degrau do palco, esfumou-se em tons de azul e branco em direcção ao hexagrama desenhado nas costas da cadeira onde se tinha sentado. Ouviu-se novo toque de trombetas e Phoebe, que tinha retomado o palco, anunciou o novo orador: Xi Jinping. Depois, deu um salto, três mortais de costas e um encarpado e veio sentar-se ao lado do dr. Hipólito.

-Eh lá! Exclamou o médico, enquanto se afastava. – Era escusado vir nesse rompante para cima de um mortal!

A deusa pediu desculpa e, depois de bem sentada, justificou-se: - Eu gosto de sentir o pulso ao povo, e estas minhas entradas servem para lhe estimularem a adrenalina. Você, dali de cima, pareceu-me um bom exemplar e esse camarada aí ao lado também! Mas vamos ouvir o que Jinping nos vem dizer de sua justiça, que o Kissinger aqueceu um bocado o ambiente.

Xi Jinping, que estava na mesa entre o Mao Tsé Tung e o Elon Musk, levantou-se e, em passadas largas, dirigiu-se ao centro do palco. Estava vestido com roupa tradicional chinesa hanfu, em tons de branco e preto, bordada a ouro, como a mostrar que a cultura chinesa tem alternativas ao cerimonial ocidental. Ajeitou o microfone junto a bochecha e, sem mover qualquer músculo da face, iniciou o seu discurso.

Hipólito pegou no lápis e no papel para anotar os tópicos, e cedo se apercebeu que ele se iria confinar ao seu “Pensamento” sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era. Eram quatorze paragrafos que ele já conhecia, ditos em tom monocórdico e com a “poker face” que o caracteriza.

Phoebe olhou para o papel vazio e perguntou: - Então? Não tira apontamentos?

Hipólito respondeu: - Ele não está a dizer nada de novo! Eu esperava algumas dicas sobre abertura a outros partidos mas, pelo andar da carruagem, ele não vai por esses caminhos!

A deusa sorriu, condescendente.

- Está a desvalorizar as dificuldades que ele teve de ultrapassar para criar as infraestruturas que hoje a China dispõe? Olhe que não há na História da Humanidade ninguém que, em vinte anos, tenha feito o que ele fez, ainda por cima tendo herdado um partido onde a corrupção era generalizada. Não foi fácil livrar-se do desperdício e aumentar a influência da China no mundo.

- Eu não apoio o culto da personalidade que faz perpetuar no poder. O homem já é mais popular que o Mao Tsé Tung. Se morrer o país tem um abalo difícil de recuperar. Respondeu o médico. 

- Não se preocupe com isso dr.! Ele está para lavar e durar. Tão cedo não lhe vai dar um treco. É “pragmático”, tem uma enorme estabilidade emocional e controla o PC Chinês. Tem tudo para se aguentar.

Xi Jinping, continuava a explanar o seu “Pensamento” que basicamente consistia em “Garantir a liderança do Partido Comunista da China em todas as formas de trabalho na China”.

Hipólito virou-se para a deusa e perguntou: - Será que, com os seus poderes sobre-humanos, não é capaz de perscrutar se o que ele pensa é independente do que diz?

Phoebe riu-se. - Os pensamentos do momento, não lhos consigo dizer, mas digo-lhe os que habitualmente o orientam.

Hipólito, cutucou o Harari: - Está visto. O Jinping não vai dizer nada que não tenha já dito. Mas a minha parceira aqui do lado é capaz de nos dar outras notícias. Quer ir lá fora connosco?

O professor recusou, alegando que os deuses enganam frequentemente os humanos e preferia continuar a ouvir o chinês, porque há coisas ditas nas entrelinhas que fazem toda a diferença e o diabo está nos pormenores.

Saíram os dois, à formiga, para o átrio, onde um sofá em pele de girafa os esperava. A deusa sentou-se e segredou-lhe: - Aqui ninguém nos ouve e até a pele deste sofá é de um bicho mudo!, brincou. – Mas, respondendo à sua curiosidade, posso-lhe dizer que o Xi anda num sino, com a Videovigilância e a Inteligência Artificial, que lhe garantem uma ordem nunca antes conseguida. Ri-se das democracias ocidentais e dos bloqueios que elas causam às tomadas de decisão. Chama-lhes “sacos de gatos” e aposta na sua decadência. Para já pretende dominar o negócio dos automóveis no mundo. Depois vai tentar o mesmo nos aviões e por fim aumentar a importância da China nos serviços. O Xi pensa no sucesso do formigueiro e não se coíbe de sacrificar formigas. São mil e seiscentos milhões delas. Os conflitos actuais no Médio Oriente e na Ucrânia, só lhe dão vantagens e espaço para se meter cada vez mais em Africa. Espere mais uns anos e vai ver a volta que ele ali vai dar. O "socialismo ao estilo chinês” tem horror à desordem e é pouco preocupado com as liberdades e garantias que tolhem o Ocidente. Ele diz, para si próprio, que África está à espera de quem a arrume!

Hipólito, aproveitou para se certificar de uma notícia que lera num jornal. – É verdade que nas cidades chinesas há 440 câmaras de vigilância por cada 1000 habitantes?

- Sim! E, com a ajuda da AI já monitorizam os movimentos dos cidadãos que quiserem, desde criminosos a potenciais opositores políticos. Mas não são só eles. Em Londres também há Videovigilância, só que em vez das 440 câmaras têm 13 por mil e regras bem mais apertadas. Mas o mundo está em rápida transformação e o amanhã é sempre uma incógnita. Vai ver que o "crédito social" vai aparecer noutras regiões para além da China. 

 Dentro da sala ouvia-se o barulho das palmas. Hipólito levantou-se e apressou-se para chegar ao seu lugar e perguntou ao Harari: - Ele disse alguma coisa de novo?

- Não! Disse o que já sabemos. É dos que nunca abre o jogo! Não disse nem uma graça e só por uma vez esboçou um sorriso. E você? Tem novidades?

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Marca



Uma “marca” é um rótulo aplicado a um produto, que conta uma história sobre ele, que até pode ter pouco a ver com as suas especificidades, mas, ainda assim, o público habitua-se a associar um ao outro. 

José Estaline, polo agregador de um dos maiores cultos da personalidade a que a História assistiu, sabendo que Vassili, o seu filho problemático, se aproveitava do apelido para atemorizar e intimidar, repreendeu-o. - Mas eu também sou um Estaline!, respondeu Vassili. 
- Não! Não és!, respondeu o ditador. – Eu próprio não sou Estaline. Estaline é o poder soviético, é o seu rosto nos jornais e nos retratos; não és tu nem sou eu! 

José Estaline sabia que os indivíduos, à imagem dos produtos, também se podem constituir como “marca”. Um bilionário corrupto pode ser rotulado como defensor dos pobres; o maior imbecil pode ser vendido como génio; um guru que abusa sexualmente de seguidores pode ser apresentado ao mundo como um santo casto. O público crê estar conectado ao indivíduo, mas está ligado à história que lhe contaram sobre o ele e, o mais das vezes, a distância que vai de uma coisa à outra é gigantesca. 

In “Nexus” de Yuval Noah Harari 

“No man is a hero to his valet”, dita um velho provérbio inglês.
Como “não há grandes homens para o seu criado de quarto”, há que criar uma “marca” para aqueles que se quer promover.

domingo, 8 de setembro de 2024

IMT

 

Esta coisa da idade é um sarilho. A gente pensa que mantém as prerrogativas dos mais novos e esquece-se que, depois dos 70 anos, se tem de revalidar a Carta de Condução de 2 em 2 anos. Nada de complicado desde que a gente se lembre, e eu … não me lembrei. Mea culpa!. Grato a todos os santos do Céu por não me ter acontecido acidente rodoviário neste período (a Companhia de Seguros não iria assumir a sua parte e todas as despesas ficariam a meu cargo), assumi o erro e disponibilizei-me para as penalizações.

No dia seguinte telefonei ao meu médico, tratei do Certificado Médico e, de seguida, fui ao IMT para as devidas diligências. À porta acumulava-se uma dezena de pessoas a bloquear a entrada, a obrigar a vários “com licença ”para consegui acesso a uma sala cheia de gente, sentada e em pé, simultaneamente atenta aos telemóveis e ao grande écran pendurado na parede com os números de chamada. No balcão de atendimento, junto à parede oposta, funcionavam 3 das 5 boxes. No canto esquerdo, junto a uma pequena secretária, um segurança de ar pouco amistoso, espreitava por cima das cabeças. Ao lado a máquina de senhas de atendimento, tinha um papel colado: “Não há mais senhas!”.

Dirijo-me a ele, na esperança de uma solução que me permita dar início ao processo com segurança. Responde secamente: “Não há mais senhas. Se quiser esperar, pelas 15:30h, pode ser que abram de novo!”.

São 13:00h. Olho em volta. Na sala há uma dezena de cadeiras encostadas a uma parede todas ocupadas. De pé uns quantos idosos e gente jovem com ar de indiano e brasileiro. Junto a mim, um grupo de meninas/senhoras, cheias de adereços, interpela alguém num espanhol cantado, ininteligível. Todos aguardam com papéis debaixo dos braços.

Volto-me de novo para o segurança: - “Não há senhas? Mas eu só quero pedir uma informação. Será que não há ninguém que ma possa dar, sem eu ficar este tempo todo à espera?”. Aponta-me para a porta de entrada, enquanto me responde.  “Pode fazer marcação “on line” ou telefonar para o Call Center. Os números estão ali num papel!”.

Colado à porta está uma folha A4 com no nº do Call Center e o site https://www.imtonline.pt/ para eu fazer a marcação. Ligo para o 210488488 e espero vinte minutos a ouvir uma música “de moer o juízo a um santo” e ninguém atente. Tento a marcação “on line” no telemóvel e depois de múltiplas voltas a abrir páginas sobre páginas, consigo visualizar que só daqui a mês e meio é que serei atendido.

Entretanto o tempo passa e, depois de conseguir lugar sentado, decido aguardar. Não pára de chegar gente. Uns dirigem-se ao segurança, outros esperam de pé. Um familiar que acompanha um velho que mal anda, reclama prioridade por deficiência. O placard na parede vai lentamente alterando: C13, A16, C14 … e o tempo arrasta-se nos guichés porque nem todos percebem que se lhes diz e voltam atrás para se certificar de tudo uma e outra vez. Os funcionários ausentam-se por curtos períodos para uma sala onde deve estar o chefe, ou juntam-se para solucionar em conjunto uma qualquer dificuldade mais particular. Tudo devagar, devagarinho.

Finalmente, às 15:30h, “abrem de novo as senhas” e, de imediato, há um corre-corre de gente a chegar-se ao segurança. -Eu cheguei primeiro!... Depois, foi aquele senhor! ...Perdão! Eu já cá estava quando aquele senhor chegou!, ...-Não! Não! Eu estava lá atrás e vi o senhor entrar! …  e o segurança de braços no ar, vai distribuindo as senhas tentando responder às solicitações e ao que a memória lhe permite. Por fim, lá consigo a tão almejada senha, com a sensação de que aquela barafunda beneficiou quem estava mais perto do homem.

Às 16:45h chega o meu número ao écran. Preencho dois papéis, pago os emolumentos - 15€ pela Revalidação do Título de Condução, 15€ por uma Licença de Aprendizagem e 30€ para o Exame (prático) de Condução, fica-me com a carta velha e dá-me uma Licença de Condução válida por 6 meses. Dez minutos depois estou a respirar o ar da rua, a caminho de uma Escola de Condução, para alugar um automóvel “certificado” para o “exame prático”, pois não poderei usar o meu.

Procuro na Google uma Escola próxima do IMT. Está fechada, mas tem um papel colado na porta com um "Volto já " e um nº de telefone. Ligo. Atende-me uma senhora que pede para eu esperar, pois não tarda mais que 15 minutos. Calculo que esses 15 minutos se irão transformar em, pelo menos, meia hora e digo-lhe ao que vou. – Que sou saudável, que conduzo diariamente há mais de 50 anos, sem acidentes ou multas, que deixei caducar a carta há mais de dois anos e que por isso tenho de fazer um exame prático num automóvel de uma Escola, e pergunto o preço. – São 350 Euros!

- 350 euros???, pergunto a confirmar. - Sim! O preço incluiu duas aulas de condução antes do exame! Confesso que não esperava tal resposta, que me soou a oportunidade de acrescentar o negócio, e retruquei que prescindia das aulas e que só pretendia que me alugassem o carro para o tal exame que pouco mais dura que meia hora. Nada feito. A senhora justifica-se dizendo que não vai por o carro nas mãos de quem não conhece, que sem as duas aulas nada feito. - Obrigado!! Boa tarde! Escusa de vir a correr! Fica sem efeito!

De seguida ligo para outras Escolas da cidade, para ouvir uma música igual ou muito parecida. Mais um telefonema para uma outra, numa vila nas imediações, e é mais do mesmo. Até parece que têm tudo combinado. Por via telefónica está visto. O mínimo são 350€. Decido ir pessoalmente e tentar falar com quem manda. Entro na Escola X e pergunto se posso falar com o chefe.  Vem um senhor amável que aceita negociar e, depois de lhe explicar quem sou e ao que vou, aceito a sua proposta: uma aula para me familiarizar com o carro e com as picuinhices do examinador + 200 € … sem IVA. Ao negro, como aqui se diz! Dá-me um documento para entregar no IMT com a matrícula do carro do exame, dou-lhe 100€ em numerário e o acordo de novos 100€ no dia da aula. Peço-lhe um documento comprovativo e ele rabisca num papel timbrado da Escola - 100€, assina e põe-lhe um carimbo. Tudo legal.

Agora é aguardar que o IMT me informe da data do exame, para que, no dia anterior, eu vá ter a tal aula. Entretanto posso conduzir por todo o lado, menos no estrangeiro.

Já mais aliviado, rebobino o calvário que o meu esquecimento ocasionou. Há uns 10 anos, quando me esqueci de levar o carro à inspeção e a polícia me mandou parar, paguei, na hora, uma multa de 200€ (agora seriam, no mínimo 250€), agora por ter deixado caducar a carta, pago ao IMT 60€ e ao dono de uma Escola de Condução 200€, para não pagar à Escola de Condução de 350 a 400€.

Qual é a utilidade da obrigatoriedade de um exame prático quando se tem um Atestado Médico que comprova a competência para a condução do mesmo tipo de veículos? Qual a utilidade de, no exame prático, se ter de usar um automóvel de uma Escola de Condução, nestas circunstâncias? Não seria melhor uma multa semelhante à que se tem por não levar o automóvel em devido tempo à Inspeção?? Ao menos aí o dinheiro reverteria para o Estado e não se atirava um cidadão para as mãos de quem aproveita a ocasião para um negócio de oportunidade.

Um mês depois, chega a carta para o dito exame. Recebo a tal lição de condução onde reaprendo a sinalizar mudanças de direção, circulação em rotundas e marchas atrás em curvas e, no dia do exame, lá vou andar a mando de um senhor, que não aparenta ser mais novo que eu, mas que deve ter a carta em dia: Vire à direita, entre na rotunda e saia na segunda saída, vire à esquerda, estacione ali à frente entre aquelas duas árvores, faça marcha atrás … pode parar aqui. Nem trinta minutos depois, eis-me fora do carro. Passei! Devo ter tido 20 valores, pois não me esqueci de sinalizar tudo e mais alguma coisa.

Já me foi dado um “Título de Condução” válido por 60 dias. Agora é ter atenção ao correio que a “definitiva” deve chegar no prazo de 15 dias.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Yuval Noah Harari & Ian Bremmer at The 92nd Street Y – March 2024


RESUMO 
*From the author of the multi-million bestselling Sapiens comes an incredible new story of the human race, for younger readers.
*We humans aren't strong like lions, we don't swim as well as dolphins, and we definitely don't have wings! So how did we end up ruling the world? The answer to that is one of the strangest tales you'll ever hear. And it's a true story . . . Have you ever wondered how we got here? From hunting mammoths, to flying to the moon? It is because we are unstoppable. But what made us so? Well, we have the most amazing superpower: the ability to tell stories. Fairy tales have led us from imagining ghosts and spirits to being able to create money (yes, really!). And this has made us very powerful . . . but very deadly. Nothing stands in our way, and we always want more. So get ready for the most amazing story there ever was - the incredible true tale of the Unstoppables. Find out how fire shrank our stomachs, how our ancestors spoke to animals, what football can tell us about being human, how we used our superpower for good and bad . . . and how YOU have the superpower to change the world. With full-colour illustrations showing the relentless rise and rise of the human race, this is history like you've never experienced it before.

Harari tem o pensamento claro sobre a História da Humanidade. Ouve-se e lê-se com agrado. É como uma lufada de ar fresco, nestas salas de ar bafiento em que, por vezes, nos metemos (ou nos metem).

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Receita para fazer um herói

 


Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (1922 - 1959) . Nasceu em Barcelona. Morreu em Moçambique.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Frase do dia

 Uma boa regra geral da evolução é que "nada é de graça": o sucesso num aspecto da vida deve ser pago com um falhanço noutro.

In "A linguagem dos genes" de Steve Jones.

sábado, 15 de junho de 2024

Galhas


 Até que enfim! 

Hoje dei um passeio pela veiga e pela floresta, entre Carreço e Afife, e foi com agrado que vi as acácias (vulgo austrálias) infestadas com este parasita que as vai destruindo. Ainda não chegaram à zona onde habito - só faltam umas dezenas de metros- e,  pelo sim, pelo não,  trouxe umas galhas que espalhei, com fé, que agora é muita, na esperança de ver os seus efeitos nos próximos anos.

Obrigado Serviços Florestais.

sábado, 8 de junho de 2024

Corvo marinho


Ao contrário da maioria das aves aquáticas, as penas do corvo-marinho não são impermeáveis. 

Quando na água, o seu corpo está quase totalmente imerso. Após vários mergulhos, a ave regressa a um pouso seco e abre as asas de forma a secar.

Este, feito de metal reciclado, não o encontrei junto ao rio. Estava pousado em Vezeley (França) e é filho de um artesão do Zimbabwe. 



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segunda-feira, 3 de junho de 2024

Testemunho


Abril é bom! Por tudo!. Celebra-se o bom tempo, as cerejas, as flores - cravos e outras, a explosão da glicínia, os dias cada vez maiores, a liberdade, a chuva, o sol, os pássaros, a Páscoa, a neve onde ainda a há.
A liberdade associa-se a Abril porque foi bom nesse Abril estar com medo do que iria acontecer, mas era bom poder dizer que não se sabia, que se tinha medo e que se tinha tido medo.
O medo estava instalado (como diria Rui Zink) e foi preciso sacudi-lo. Éramos jovens e tínhamos tudo a ganhar.
Era assimilar tanta informação de olhos arregalados. Era não ter a polícia à porta da faculdade. Era o fim da guerra que levava os rapazes e deixava as noivas viúvas. Era o fim das mensagens de Natal dos soldados. Era poder falar sem olhar para o lado. Era poder ler sem tapar as capas dos livros. Era exagerar tudo a ver no que dava. Era usar calças - vermelhas ou brancas. Era cantar músicas revolucionárias e ouvir Zeca Afonso.
Era ganhar o futuro e fazê-lo nosso.

E os mais velhos, que eram velhos com 40 anos, pesados de uma tristeza também instalada, não tinham nada a perder e não podiam perder tempo. A televisão mostrava muitas coisas novas, mas o cinema mostrava coisas nunca vistas, sonhadas ou imaginadas.

A avó tivera uma educação esmerada para a época. Sabia costurar, bordar, tricotar e ocupava-se sobretudo a fazer renda. Tinha em casa um piano e, penso que, terá tido educação musical. No entanto, nunca aquele piano se abriu. Parecia uma mágoa. A única canção que a ouvi cantar foi a “Maria da Fonte”, uma ou duas vezes. 
Enviuvou com 70 anos, depois de um matrimónio sem graça de 45 anos e manteve-se a viver com a empregada de longa data. Nos cinco anos que com eles vivi, nunca os vi conversar, discutir, rir ou fazer o que que quer que fosse em conjunto.
No entanto, era meiga e afável com os netos e tinha sentido de humor. Adorava rir, o que só fazia junto das amigas com quem partilhava anedotas, que eu não percebia, mas que soavam a coisas proibidas. E ria-se, particularmente, das que seriam bem maliciosas. Pedia ao meu irmão para as contar repetidamente e, de cada vez, ria-se como se fosse a primeira.
Uma dessas amigas, a dona Maria José, com uma limitação física que a obrigava a usar duas muletas, morava num 2º andar, sem elevador, na rua Formosa, numa casa minúscula, atafulhada de móveis escuros e pesados, que subiam por todas as paredes. Tinha a voz distónica e era flagrante o contraste entre aquele ambiente soturno e as gargalhadas que as conversas sussurradas, entre as duas, desencadeavam. Cochichavam coscuvilhices com a preocupação de eu não ouvir. Depois do chá e das bolachas Maria com marmelada, despediam-se com beijos e abraços e promessas de novas visitas em breve.
O avô era um homem fraco e sem graça, a quem não se arrancava uma palavra, quanto mais um sorriso. Soube-se depois que terá tido uma outra vida fora de casa, de sócios, negócios e não só, onde gastava o que não podia. Em casa, estendia, em silêncio, sobre a mesa da sala de jantar, tiras de papel quadriculado, onde números desenhados a caneta de tinta permanente azul, perfilavam o testemunho das suas dívidas.

Sem eu entender os porquês, depois de 1974, percebi na minha avó, uma certa excitação na forma como abordava os netos, com frequentes insinuações de cariz sexual, que me deixavam num grande desconforto. Há assuntos que não se discutem com uma avó, ponto. E, quando a certa altura me disse qualquer coisa como “eu também tenho um senhor!”, eu só quis fugir. Apesar de tudo e de todas as aberturas de espírito que a liberdade e a educação “superior” nos pode proporcionar, a vida sexual dos nossos antepassados é a última coisa da qual queremos ouvir falar.

Mas também aprendi que há coisas das quais não podemos fugir, porque elas vêm ter connosco de um modo ou de outro. Saber por terceiros que a avó começou a frequentar as sessões de filmes pornográficos do Sá da Bandeira, à tarde, e que lá conheceu um “senhor” que passou a frequentar a casa e o quarto, não seria a melhor forma.
Incomodada e entre dentes, a empregada insinuava e descrevia os sons que vinham do quarto e de como testemunhava o contacto físico durante a hora do chá que era obrigada a servir.
O assunto foi sério a ponto do meu irmão mais velho ter ido conhecer o tal “senhor”, que lhe assegurou o genuíno amor pela avó e esta lhe terá feito sentir que, pela primeira vez na vida, se sentiu amada, sem ter encontrado na família um ombro para chorar, um conselho amigo ou um ouvido para escutar a sua felicidade, por efémera que fosse, quando tinha direito a ela, sem julgamentos e sem crítica.

Foi livre e amou enquanto durou. Como começou, não sei. Como acabou, também não. Terá acabado quando acabaram os bens? O relógio de ouro do avô e outras minudências sumiram então. Se foi a paga e se foi feliz, só isso interessa.
Nessa época, eu estava empenhada em construir o meu futuro e os meus preconceitos ainda não se tinham dissipado. A formatação é impressionante e é preciso força e tempo para arrancar conceitos que são instilados de modo constante e subtil. Mas mais do que isso, sinto que fugi para a frente, incapaz de a ouvir, por estar ocupada comigo e incapaz de derrubar o mito da avó idosa submissa e sem direito a amar e ser amada, para além do “amor” familiar e de circunstância. Mea culpa.

M.H.

domingo, 2 de junho de 2024

Paul Auster

 


Quando acabo de ler um livro, pergunto-me: o que aprendi com ele?

Paul Auster morreu recentemente sem e eu ter lido nada dele. Não que eu seja um grande leitor, vou lendo como quem tira cerejas de uma taça (um traz outro), mas tinha um Auster na prateleira à espera dos seus dias. A sua morte foi o “trigger”, para pegar no “Sunset park”, mesmo tendo sido aconselhado a ler o seu último o “4321”.

Paul Auster é judeu e como os judeus vivem maioritariamente ou na Califórnia ou em Nova York, para além de Israel, Sunset park é em NY e o estar dos personagens é novaiorquino, com as suas pequenas histórias a se entrecruzarem que, bem espremidas, não me “inspiraram”.

No entanto, ficou-me a descrição de Bing Nathan:

Ele é um soldado da indignação, o campeão do descontentamento, o militante que desmascara a vida contemporânea e sonha construir uma nova realidade a partir das ruínas de um mundo que falhou. Ao contrário da maior parte dos contestatários do seu género, não acredita na acção política. Não pertence a nenhum movimento nem a nenhum partido, nunca falou em público e não tem o menor desejo de conduzir hordas furiosas pelas ruas a fim de incendiarem edifícios e derrubarem governos. É uma posição puramente pessoal, mas tem a certeza de que, se viver a sua vida de acordo com os princípios que estabeleceu para si mesmo, os outros seguirão o seu exemplo.

Portanto, quando ele fala do mundo, está a referir-se ao seu mundo, à pequena e circunscrita esfera da sua própria vida, e não ao mundo global, que é demasiado grande e demasiado imperfeito para que as suas acções possam produzir nele algum efeito. Concentra-se pois no local, no particular, nos quase invisíveis pormenores dos assunto quotidianos. As decisões que toma são necessariamente pequenas, mas pequeno nem sempre significa sem importância , e, dia após dia,  luta para se manter fiel à norma fundamental do seu descontentamento: uma oposição constante  e firme às coisas-tal-qual-como-estão, resistir ao "status quo" em todas as frentes.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Um ponto



Há vida onde a gente menos espera. No claustro de uma abadia, dorme este morcego, alheio à passagem constante de turistas. Um ponto no imenso creme das paredes.
 

domingo, 5 de maio de 2024

sexta-feira, 26 de abril de 2024

25 de Abril Sempre!

Quando há curiosidade, uma descoberta leva a outra e por aí adiante, que é assim que se vai conhecendo o mundo onde se vive.

No caso presente, tudo começou num podcast, quando o entrevistado sugeriu o livro “A Invenção da Natureza” de Andrea Wulf, que basicamente é uma biografia de Alexander Von Humboldt.

Aceitei a sugestão e meti-me nas 454 páginas sobre o primeiro homem a olhar para o mundo na procura de entender a relação entre tudo o que nele existe, desde o clima, os ventos, o mar, os rios, os seres animados e as pedras. Foi o primeiro naturalista, um homem decisivo para o pensamento científico actual, sobre cujos ombros se sentaram homens como Darwin, Júlio Verne e Simão Bolivar.

Humboldt viveu entre 1769 e 1859. Esteve em Paris durante a Revolução Francesa (1789-1799), no tempo de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e terá industriado Simão Bolivar (1783 – 1830) a revoltar-se contra Espanha e tentar criar os Estados Unidos da América do Sul.

Revisitei Bonaparte e a Revolução Francesa na Wikipédia, mas Simão Bolivar foi-me trazido por Gabriel de Garcia Marques, em  “O General no seu labirinto”, que romanceia os seus últimos dias. É uma “quase biografia” do homem que libertou meio continente do jugo colonial, sonhando criar os Estados Unidos da América do Sul. Li os custos dessa Revolução e a incapacidade em manter a união, depois de afastado o inimigo comum - Espanha. Li o seu estado de espírito final - empobrecido, isolado e amargurado e a pormenorizada descrição da sua saúde nas últimas semanas, que os médicos da época chamaram “lesão pulmonar com origem num catarro mal curado” e que em 2010 a exumação dos seus restos mortais iria provar ser uma tuberculose (o bacilo de Kock só foi descoberto em 1882).

No fim concluí: "Nada une mais as pessoas que um inimigo comum ou um bode expiatório!" 

- "25 de Abril Sempre! Fascismo nunca mais!"


sexta-feira, 15 de março de 2024

Prenda de anos



Imagination is more important than knowledge. Knowledge is
 limited. Imagination encircles the world.Albert Einstein



sábado, 2 de março de 2024

Novo modo de aprender


Este podcast põe em causa o processo tradicional de aprendizagem e propõe um novo sistema que, espero, dê início a uma pequena revolução no "Ensino" do país, para bem de todos nós, a começar por alunos e professores.