terça-feira, 23 de novembro de 2021

O meu sapateiro

 


É sabido que não sou uma pessoa muito corajosa. Tenho medos como qualquer um. Medo de perder os meus, medo de morrer,  medo de baratas e osgas, … enfim, o normal.
Mas, o medo mais recente, com que eu não estava a contar, é o ter medo do meu sapateiro! 
Sei que não sou cuidadosa com os sapatos. Raramente os escovo ou engraxo e, quando são confortáveis, uso-os até irem para o lixo e tento comprar outros iguais. Como tenho mais tempo desde que mudei de casa e me ando a tentar disciplinar, decidi rentabilizar o calçado. Foi  por isso que levei as botas cambadas ao sapateiro da esquina.

O homem é careca, grande e musculado como um comando, e com mais ouro nos dentes do que os meus dedos alguma vez podem comportar. UUhhh!! Intimidante do outro lado do balcão.
Pega nas botas, olha para a sola e, em menos de um segundo, precisa:
-Oh menina! Deixa chegar isto a este estado!?!?… Isto vai ficar caro!!!… Tem que ter mais cuidado!!!… Tem que vir antes de chegar aqui!!! … Está a ver??!… Assim, tenho que tirar isto!, e aponta com as unhas negras o ponto crítico. Abana a cabeça e parece crescer quando eu tento um esboço de desculpa. Só me ocorre dizer que são da minha filha, … da minha mãe … ou que mas deram já assim. Mas não me sai nada! Pego no talão e saio rápido, ruborizada e de olhos baixos.

Dias depois, vou buscá-las. Antes de entrar, espreito pela montra. O animal não está lá. Em seu lugar está um homem, também grande, mas jovem. Uff!! Que alívio!! Entro confiante. 
- Oh menina! (outra vez!!). Isto deu muito trabalho!... Era o filho!… Só podia! … e foi perorando enquanto tardava em me dar as botas.
De saca na mão prometo-me nunca mais lá voltar…

...

Passa um ano, e o meu marido pede-me que leve dois pares de sapatos para capas. Acedi. Afinal o que pode um sapateiro fazer-me?…Humilhar-me? Ora! Já nem se lembra de mim e para mais, os sapatos nem são meus!

-Oh menina! ... Como isto está!!! … A pessoa consegue andar??!... Falta aqui quase um centímetro!!!... e só deste lado!. Ui, ui!!, e a sola também está fina!! Já viu a palmilha??… Ressequida, como a palha!. Saca do giz e começa a fazer a adição na sola 26 +20 ….
De repente, pára a conta, volta a pôr os sapatos alinhados sobre o balcão e pergunta, enquanto me olha ameaçador do alto do seu metro e noventa (felizmente atrás do vidro que nos separa): E cordões?? Não acha que é preciso mudar?! Só então me dou conta que cada sapato tem um atacador diferente, de cores distintas e meio desfiados.
Com voz sumida, consigo dizer: Faça o que for preciso!, e saio novamente de olhos baixos como se tivesse reprovado num exame...

Juro-vos… É de vez! Nem que a vaca tussa! Na 6ª feira não vou lá buscá-los!

História de MHSG

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O que a vida lhe ensinou

Poema homérico de lírica peculiar, oralidade tradicional e estilo próprio, não estranho à linhagem da família. 

Na sua amplitude, o autor revela, não a aurora que almejava ser, mas o crepúsculo de uma civilização que se extinguia.


O QUE A VIDA ME ENSINOU


O que a vida me ensinou,
Ou, que foi a minha vida?
Será que me agradou?
Será que foi bem vivida?

O que a vida me ensinou,
Ou o que dela aprendi;
Se feliz ainda estou,
E o que foi que consegui!

Se muita coisa aprendi,
Mais ficou por aprender
Mas se melhor não vivi
Não me estou a arrepender

Se na vida tive sorte,
(eu acho que alguma tive), 
Se bem que a um ânimo forte,
Deva muito do que obtive.

Há quem tenha tido mais,
E não esteja satisfeito
Ambição quando é demais,
Tem um muito mau efeito

Fui vivendo o dia-a-dia,
De maneira natural.
Tive horas de alegria,
Também soube o que era o mal

Desde muito tenra idade,
Fiz trabalho com prazer,
Vencendo adversidade,
Que tive que combater.

Infância não conheci,
Muito cedo fui adulto.
Depressa compreendi,
Não dever ficar inculto

Lealdade e honestidade,
Nas relações sociais,
E respeito pela verdade,
Sempre achei fundamentais!

Várias vezes isolado,
Tentei, com grande vigor,
Que fosse bem aplicado,
Com justiça e com rigor,

Bom senso nas decisões,
P’ra benefício geral.
Mas encontrei figurões
A fazerem muito mal

Em país onde é corrente,
Em cargos de direcção,
Haver gente incompetente,
Há conflitos, com razão.

A eles não me furtei,
E suportei invejosos.
Em querelas em que andei,
Gastei tempos preciosos

Mas nunca desanimei,
De lutar com dignidade.
Muitas vezes enfrentei,
A mais cruel falsidade.

Gente que muito ajudei,
Quis-me fazer vida dura.
A esses não perdoei,
Por me trazer tanta agrura.

Nos velhos tempos de outrora,
Em que até uma PIDE havia,
Eu nunca vi como agora,
Tamanha rebaldaria.

Diplomados ignorantes,
Que eu tive que preparar,
Para úteis os tornar,
Importantes se mostraram.

Foi grande a desilusão,
Que eles me provocaram.
Em vez de ter gratidão,
Sem pudor, me atraiçoaram.

De êxitos que conquistei
Alguns se vangloriaram;
Tudo quanto eu lhes dei,
Muito mal utilizaram.

Gastaram muito dinheiro,
Do que ao País pertencia.
Por seu ego estar primeiro,
Só o seu interesse havia.

Que falsos amigos há,
Minha vida revelou.
Mas essa escola foi má,
Pois anjinho ainda sou.

Os mesmos erros cometo,
Confiante nas pessoas.
Mudar-me já não prometo,
Pois ainda há algumas boas.

Isso me apraz registar.
Bons amigos encontrei,
Capazes de acarinhar
Estudos que realizei.

Fizeram-me homenagem,
Quando fui aposentado,
Por ter mantido a coragem
De não me ter desviado.

Da rectidão que tracei,
Como sistema de vida.
Justiça sempre foi lei,
Que procurei ver cumprida.

Na vida familiar
Tive algumas decepções
Que não esperava encontrar
Em difíceis situações.

Mas isso já é passado
Que não gosto de lembrar,
Pois sempre tive a meu lado,
Alguém p’ra me estimular.

Hoje sou um homem feliz,
Sou muito mais tolerante.
Não me importo haver quem diz,
Que até me julgo importante.

Modéstia a mais é defeito.
Eu útil fui ao País.
Mais podia ter eu feito,
Se não houvesse imbecis.

Investidos no poder,
Mas com fraca competência,
Armando tudo saber,
Com enorme inconsciência.

Dispostos a atrapalhar,
Quem quer que se lhes oponha
Tentando pelo bem lutar,
Sem na cara ter vergonha.

Em 3-7-2007