1981 - Verão - 12:30h. Vou buscar a miúda à Escola Primária e apresso-me para o almoço no Refeitório dos funcionários da Caixa de Previdência, antes de ir para a Consulta na Póvoa de Varzim. Tenho de ser rápido.
À entrada sou surpreendido por um cangalheiro:
-"Doutor, doutor!! Por favor! "
- "Que é?"
- "Por favor, antes de almoçar, passe a Certidão de Óbito daquela doente que foi ver ontem à noite, a sra. X!. Lembra-se? "
- "Lembro-me que ela estava mal! Agora é você que me está a dizer que ela morreu!"
- "Oh doutor! Ela morreu pouco depois do Dr. ter saído e está tudo à espera da Certidão para as formalidades legais.!"
Esta coisa dos óbitos tem histórias que não lembram ao diabo. Quando estava no Serviço Médico á Periferia em Ribeira de Pena e morria alguém nas aldeias mais longínquas, como não fazia sentido prejudicar os 24 doentes da consulta, andar horas aos solavancos para ir ver um morto, escrever uma página e voltar, o cangalheiro trazia um documento do Presidente da Junta de Freguesia com as suas presunções quanto á causa de morte e a afirmação de "morte por motivos não violentos", e eu passava a Certidão de Óbito com um diagnóstico que não ficasse mal àquele desconhecido.
Quando em casa contava a história, ouvia sempre uma reprimenda da minha mulher por não cumprir as normas e confiar num papel que não era legal e como tal, se houvesse problemas com a Justiça, era eu quem estava à perna!.
E até havia histórias, como aquela de um mancebo que se livrara da tropa com uma Certidão naquele estilo e que fora descoberto quando, anos depois, queria tirar a Carta de Condução, ou outra de um taxista que se disponibilizara para ir buscar um morto a uma terriola de França, e que fora parado na fronteira com o dito sentado no banco de trás no meio de dois paisanos. Calculo que alguém do lado de cá se iria disponibilizar para uma Certidão e embora se tivesse falado em morte natural, nada impedia que o não fosse.
Lá, eu tinha justificação para não ir ver o cadáver antes da Certidão, no centro da segunda cidade de Portugal pareceu-me inaceitável fazê-lo!.
Como o tempo era curto, pesei tudo e respondi:
- "Está bem! Eu passo! Mas primeiro vou identificar o cadáver, e só o posso fazer depois das 18:00h! Onde é que está o corpo?"
- "Está na casa mortuária da Igreja de Cedofeita!"
- "Está bem! Eu apareço lá quando acabar a consulta!"
e apressei-me para o almoço.
Fiz a Consulta e à hora prevista estava na Igreja, na expectativa de encontrar o corpo acompanhado por um ou dois familiares, fazer o que tinha a fazer e ir embora sem mais, mas tive de abrir espaço numa sala de gente consternada que, com surpresa, que me viu entrar de calça branca e T-Shirt garrida, a cumprimentar a família, sacar do estetoscópio, auscultar a morta durante três minutos e sair de caneta em punho para dar caminho legal à situação.
Só à saída é que fiz o ponto da situação.