domingo, 27 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (4)


Finalmente chegara sábado. O dia estava quente. Hipólito vestiu-se desportivamente e deu-se um leve aroma a pó de talco, por saber que ele enternece as mulheres maduras. Naquele encontro sobrenatural não queria decepcionar. Sorriu na antevisão de uma conversa agradável com uma das deusas que mais admirava. Ela, que só aparecia aos mortais apenas como um par de olhos, deixara que ele a visse inteira e até tocasse a sua carne.

A viagem foi rápida. Parou o automóvel e, de imediato, surgiu uma vestal que o levou até uma porta lateral do templo. Hera aguardava-o. Vestia um quíton de linho branco bordejado por uma faixa de amarelos, violetas e vermelhos, representando pássaros. Na sala duas mulheres com túnicas rosadas teciam um tapete.

- Bom dia, Dr. Hipólito. Bons olhos o vejam!, disse. - Vai ter o privilégio de ser recebido no gineceu, onde só os homens da casa podem entrar! E, ao dizê-lo, as presentes, levantaram-se e fizeram-lhe uma vénia.
Hipólito agradeceu pondo as mãos junto ao peito, e ofereceu a Hera uma romã, símbolo da fertilidade, do sangue e da morte.

Enquanto se dirigia a um canto da sala, onde duas poltronas LC3 de Le Corbusier os esperavam, Afrodite, de uma porta lateral, lançou-lhe um sorriso sedutor, que quase o fez tropeçar. Hera deu-lhe o braço e sentaram-se. Na mesa em frente havia taças com azeitonas, figos e amêndoas e uma garrafa de hidromel. Hipólito sentiu-se tomado por um encantamento e, quando veio de novo a si, a deusa iniciara a conversa.

- Dr.! Chamei-o para lhe dizer o que penso sobre os planos do meu marido. Ele deve-lhe ter falado numa prospecção de mercado com vista a um eventual regresso e num projecto a que chamou “Multidão Solitária”. Não acredite! Ele falou consigo e com mais um ou dois. É da velha guarda. Só ouve quem quer e, mulheres … nunca. Para ele as mulheres são para estar em casa a cuidar dos filhos. Ainda não percebeu que a pílula nos possibilitou entrar em força no mundo do trabalho e de nos tornarmos decisoras sobre o que ele pensa ser o “mundo dos homens”. Na idade de entrarem para a universidade elas são muito mais responsáveis e levam vantagem sobre eles. Já quase não há daquelas que estão à espera de quem as cuide, disponíveis até para as infidelidades. Quando era nova aturei-lhe todas as traições. Agora, se ele voltar ao mesmo, associo-me aos filhos e não o deixamos entrar aqui. Ele que vá dormir onde quiser.
Também lhe quero dizer que, depois de ter inventado o deus único e universal, já não acredito que o Homem queira voltar para nós. Substituíram a diversidade e imaginação que lhe proporcionávamos, pelas histórias rocambolescas dos santos e pouco ficaram a perder.
Para mais, e em termos gerais, o Homem está convencido que é o ser mais inteligente do Universo, por ter dominado parte dos seres vivos da Terra. Se ele pensasse bem, iria ver que em grupo é muito irracional. Há-de morrer no meio do lixo que fizer, a queixar-se de um qualquer fenómeno natural.

- Eu sei, dona Hera!, retorquiu o Dr. Hipólito. – Estou nessa onda! Mas tem de admitir que só agora a globalização pôs a nú as grandes assimetrias entre os países ricos e os países pobres. Vocês, deuses, é que podiam dar uma ajuda, para evitar uma catástrofe planetária. Caso contrário só se safarão aqueles que conseguirem sair da Terra e colonizar um planeta fora do sistema solar.

- Não conte com isso!, respondeu Hera. – O Homem está condenado. Andam para aí uns ficcionistas a dizer que em vez de ir um humano já formado, enviam-se ovos masculinos e femininos congelados, ligados a uma placenta electrónica, que se pode manter inactiva séculos e só se reactivar quando chegar a um destino favorável. E que a sua educação seria garantida por um programa informático. Nem pensar! 
Daqui a 4.500 milhões de anos, quando se acabar o hidrogénio do sol e ele se transformar numa supernova, todos os planetas serão atraídos para lá e … acabou-se. Já viu a quantos anos-luz está a próxima estrela? E ainda por cima com o Universo em expansão! As distâncias de hoje não serão as de amanhã! Para o impedir, nem uma chuva de milagres seria suficiente.

- É por isso, caro Dr., que eu ando a convencê-lo a sair daqui e estabelecermos-nos numa outra galáxia mais estável. Já pesquisei e, na Andrómeda, que fica a dois milhões de anos-luz da Terra, há um planeta que me pareceu cinco estrelas. Tem uns seres vivos engraçadíssimos, inteligentes e amorosos. São de uma originalidade a toda a prova e não têm nenhum deus que os ouça quando estão recolhidos em pensamentos. Tenho-os observado e sempre os vi colaborantes, mesmo nas dificuldades. Pode não acreditar, mas lá não há chicos-espertos! O único senão é o cheiro. A química orgânica deles não é à base do carbono é à base do silício. Eles não notam, mas quem chega …! São vermelhos e voam. Que me diz?

O Dr. Hipólito, rodou o copo nas mãos, levantou os olhos e atreveu-se a perguntar.
- Dona Hera! Já ouviu falar do Big-Bang? Se aquilo que o Stephan Hawking anda para aí a dizer for verdade, então o universo pulsa e, quando ele se comprimir, vai tudo à vida e os deuses também. Estejam eles onde estiverem.

Hera desconhecia aquelas projecções. Incomodada por ser um humano a levantar-lhe o véu desse futuro, foi para a janela e, como se falasse para alguém no exterior, disse: -Dr. Hipólito! Ouviu o que eu lhe tinha a dizer. Sei que o meu marido vai tomar uma decisão para breve. Espero que ela não vá contra os meus desejos, pois uma turbulência nesta casa, ultrapassa as suas paredes. Nós ainda temos muito poder sobre as forças naturais e … quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. É assim que vocês dizem, ou não é!
-Agora venha! Vamos visitar Afrodite que ela parece ter engraçado consigo. Sabe! Zeus pensa que ela é filha dele e da ninfa Dione, mas não é! Ela nasceu da espuma que surgiu, quando Cronos, que era o pai dele, cortou os genitais a Urano e os arremessou ao mar. É por isso que ela é tão leve. Não se preocupe com o Hefesto. Há séculos que estão divorciados.

E saíram para a ágora onde, junto a uma fonte, Hércules se sentava pensativo.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (3)


Os dias depois de um evento extraordinário são difíceis para qualquer mortal. Mas quando um deus, mesmo que aposentado, nos dá a honra do seu convívio, os mistérios da vida mudam de significância e o futuro ganha outra dimensão.

Ainda atordoado pelos eventos desse dia, Hipólito, regressara a casa, decidido a só voltar àquele Lar no fim-de-semana seguinte, para se dar tempo para ler umas coisas sobre Organização Política e Administrativa do Estado, Mitologia Grega, parafilias e ciúme patológico. Zeus manifestara-lhe vontade de voltar ao activo e Hera mostrara-lhe temer o regresso das suas infidelidades. A perspectiva era ter de viver no meio de um litígio conjugal de dimensões cósmicas.

A semana não lhe rendera como habitual. Dormira mal e um estranho sentimento de comiseração por aqueles deuses derrotados assomava-lhe frequentemente ao estômago. Evitara as tertúlias com medo de se descair com os colegas e mesmo em casa nunca aflorara o assunto.
Dois dias antes da planeada visita, depois de um árduo dia de trabalho, sentara-se no escritório a ler, quando um trovão seguido por um estranho vento lhe abriu a janela. Levantou-se perplexo, e reparou que no sofá da frente Zeus se sentara, de perna traçada e raio na mão.
- Que é feito de si, meu amigo? Eu sei que em época de férias há muito que fazer, mas podia-nos ter avisado que alterara o esquema das visitas. O Dr. Euclides ia ao Lar duas vezes por semana.
Apanhado de surpresa, Hipólito, quase deixava cair o livro que tinha na mão, mas ao reconhecer a bonomia do visitante, levantou-se, cumprimentou-o com uma larga vénia e foi fechar a porta do escritório. Então justificou-se:
- Peço perdão, mas não me lembro de me ter sido dita essa regularidade. Fiquei com a ideia de só lá ir quando chamado. De qualquer modo, estava a planear uma visita no próximo sábado, com tempo para conhecer os utentes e as vossas especificidades. Há-de convir que não é fácil a um mortal prestar assistência aos sofrimentos divinos, para além de, ao que parece, querer falar comigo sobre assuntos fora da minha arte.
- Esteja descansado, Dr. Hipólito, que não quero fazer de si o Oráculo de Delfos. Quero unicamente a sua opinião. Estou a fazer uma sondagem de mercado, e o Dr. foi um dos seleccionados por ser "opinion leader" na área das ciências da saúde!. E, mudando de assunto, como se quisesse amenizar o ambiente, continuou: - Quando entrei, vi-o a ler um livro de contos do Mia Couto. Eu também gosto muito de contos. São uma arte. Um conto é tão difícil de escrever como um poema. É preciso dar-lhe ritmo da primeira à última linha. São muito eficazes para passar mensagens. Todas as religiões os usam. A Bíblia está cheia deles e a nossa Ilíada também.

A conversa informal reposicionara-os. Hipólito olhou Zeus ali sentado, quase humano, e retorquiu-lhe: - Não é todos os dias que um deus nos aparece. Confesso que, apesar da sua benevolência, temo que a minha ignorância vos possa causar incómodos. Houve algum inconveniente em não ter lá ido mais cedo?
- De modo nenhum!. Estão todos na mesma!, respondeu Zeus. – Eu é que, como tinha tempo, decidi dar um salto até aqui para ouvir a sua opinião sobre umas coisas que ando a congeminar!
Hipólito, pousou o livro, virou-lhe as palmas das mãos e respondeu:
- Faça favor. Sou todo ouvidos!

- Ora ainda bem que nos entendemos!, disse Zeus, e, abrindo a túnica, retirou de lá um cartapácio que colocou em cima da secretária. Hipólito leu na capa - “MULTIDÃO SOLITÁRIA – Projecto a implementar na Terra durante o Ano 2016”. Ao fundo tinha o seu nome romano - JÚPITER.
E Zeus continuou: - O meu público-alvo são as pessoas que vivem solitárias nas grandes cidades industrializadas, vítimas da desagregação social causada pela sociedade de consumo.
- Como assim?, perguntou o clínico.
- Dr. Hipólito, pense comigo. A actual família restrita – pai, mãe e 1 filho, cujo ícone é o presépio, só responde às necessidades dos adultos jovens, com saúde, emprego e dinheiro. Já nada tem a ver com aquelas famílias de outras épocas, onde debaixo do mesmo tecto era possível encontrar avós, parentes próximos solteiros e com frequência os filhos casados, netos e outras pessoas agregadas como os criados.
Perdeu-se a natural convivência das aldeias, provocada pela exigência de trabalho gratuito recíproco e quando se chega à idade de procurar emprego, o mais certo é ele estar longe da família e dos amigos. Como resultado o cuidado das crianças, dos anciãos e dos enfermos, tem passado para a responsabilidade do Estado ou para instituições autónomas, como creches, hospitais, Lares ou residências.
Ora é para a multidão que vive fora da tal família restrita, que eu me quero dirigir, organizando-as em grupos comunais onde o lema seja: ajuda, hospitalidade e amizade, integrando pessoas de diferente condição e sexo, debaixo de uma regra, à semelhança do que acontece ainda nos conventos, mas que, em vez de se dedicarem só a actividades pouco rentáveis, se possam dedicar a qualquer profissão.

O Dr. Hipólito, já lera algumas coisas sobre as comunas utópicas da Alemanha e Estados Unidos nos idos anos 60. Nunca as levara a sério e até admirava que se tivessem aguentado alguns anos, sem estarem sustentadas numa forte base material.
Considerava impossível que houvesse gente disponível a abdicar permanentemente de bens pessoais, pois, mais tarde ou mais cedo, os naturais conflitos entre os indivíduos iriam despertar reacções de poder que interfeririam com esses princípios. Para ele eram utopias de intelectuais entusiastas que viam no primitivo comunismo aldeão a possibilidade de alterar as bases das novas sociedades. O que Zeus tinha em mente parecia-lhe coisa semelhante e por isso respondeu que isso já fora testado e que dera sempre mau resultado.

- Sabe Zeus! O que agora se fizer tem de dar lucro em pouco tempo, e esse projecto não me parece rentável por se centrar nos desafortunados. Em minha opinião, deveria envolver em primeiro lugar os ricos, oferecendo-lhes vantagens que despertassem a curiosidade dos pobres. Se começar ao contrário, vão ser necessários uns milhares de mártires para quebrar a natural resistência à mudança. Não se esqueça que o Deus cristão enveredou por esse caminho e que, as circunstâncias acabaram por o levar a fazer vista grossa ao liberalismo selvagem.

- Caro Hipólito. O meu plano de negócio tem um braço na construção civil e um outro na ecologia. Se os acordos de Paris forem para a frente, pode facilmente candidatar-se a fundos da CEE. Ele cumpre os objectivos de redução de emissões de CO2 e prevê a recuperação dos centros históricos das cidades. Não vejo porque é que os financiadores não o hão-de apoiar. E engana-se ao pensar que a multidão solitária só é constituída por pobres. Há muitos ricos disponíveis, se houver garantias de qualidade.
Basicamente o conceito é criar múltiplos “conventos abertos” ao exterior, em que os seus membros possam circular, de acordo com os seus desejos, desde que cumpram a tal “regra”, que mais não é que um padrão civilizacional.
Não se pretende interferir com as famílias actuais, proponho só implementar uma filosofia de convivência naqueles que o acaso e as políticas que estimulam o individualismo, a massificação e a concorrência despiedada atiraram para a solidão.

Nesta altura Zeus entusiasmado, deambulava entre a estante e a janela. Depois parou, abriu o projecto num centro histórico de uma grande cidade de Portugal e chamou o médico para junto de si.
- Está a ver aqui. Nesta zona há imensas casas senhoriais degradadas que urge recuperar. São casas que não têm utilidade para as famílias nucleares e que cumprem plenamente as nossas exigências. Até dão para ter uma horta comunitária.
- Que diz?

Hipólito queria dissuadi-lo. Pareceu-lhe que Zeus parara no tempo e que não tinha conhecimento do que se passara na revolução bolchevique e, para o não ofender, disse:
- Eu só poderia investir nesse projecto se perdesse toda a minha família. Mas ia-me ser muito difícil viver em comunidade com gente adulta que ganhou hábitos muito diferentes dos meus.

Zeus olhou para o tecto, como se pensasse, e respondeu: -É para isso que eu cá estou!. Há que desenvolver a tolerância desde o berço para superar as diferenças culturais. Numa primeira fase terei de disponibilizar uma maior quantidade de milagres. Obrigado!
De seguida, pegou no projecto, despediu-se e desfez-se numa ondulante luz azul que atravessou o tecto ao som do ribombar longínquo de um trovão.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (2)

Dirigiram-se então à câmara de Hera. Zeus afastou um pouco as cortinas, e anunciou-os: - Querida! Chegou o Dr.! Podemos?
A cortina abriu e entraram num imenso quarto com portas laterais a dar acesso a outros aposentos, por onde circulavam jovens serviçais.
Passou por três estátuas representando as três graças - Thalia (juventude e beleza), Euphrosyne (alegria) e Aglaia (elegância) e dirigiu-se à janela onde Hera o aguardava, sentada numa cadeira de ébano com os pés imitando as patas de um leão.

- Boa noite!, cumprimentou o médico. -"Kalispera", respondeu Hera, convidando-o a sentar na cadeira da frente. Zeus afastou-se, dizendo: - Estejam à vontade. Eu tenho que preparar uma disputa com o Destino e não vos quero interromper. Dr.! ela fala pelos cotovelos. Se não tem cuidado, nem amanhã sai daqui.
Hera sorriu, puxou os cabelos para trás, confirmou a saída do marido e iniciou a conversa:
- Dr.! Antes de falarmos da doença, queria fazer-lhe um pedido, que deverá ficar só entre nós. Estive aqui a ver-vos passear lá fora, e pareceu-me que o meu marido simpatizou consigo.

O médico endireitou-se na cadeira, e para melhor garantir intimidade à conversa, inclinou-se, para a incentivar: - Diga dona Hera. Sou todo ouvidos!
- Dr. Hipólito! Há muito que Zeus quer voltar ao activo, não para dar um melhor rumo à humanidade, mas para voltar à gandulice e ir para o meio das jovens fazer-lhes filhos, sejam elas casadas ou solteiras. É isso que ele quer. Embora já não tenha as hormonas no vermelho, como antigamente, mantém-se lascivo e, se eu não tivesse mão nele, teria mais filhos que o padre de Trancoso. Agradeço-lhe que não o incentive. A nossa vida actual não é das melhores, mas viajamos e entretemo-nos, sem aqueles conflitos de outros tempos. Mas como está com pressa. Fiquemos por aqui. Veja o que pode fazer.
E passando ao assunto de saúde, quero dizer-lhe que esta minha tosse, começou há-de haver quinze dias, quando fomos a Marrocos visitar os nossos primos do Egipto - Osiris, Iris e Órus, que também se retiraram e compraram lá uma mansão. São uma gente muito antiga que parou no tempo. Vivem como há cinco mil anos. Nós que éramos para estar lá uma semana, não aguentámos dois dias. Arranjámos uma desculpa esfarrapada e fomos à Lapónia visitar o Odin. Ele tem casa na mesma rua do Pai Natal. Ora, eu não levava roupa para aquelas latitudes. Está a ver! Vir de um calor de assar e entrar naquele gelo … . Sorte foi não adoecermos os dois. Mas ele é feito da pele do diabo e nada lhe pega.

O médico sorriu e, enquanto abria a pasta para tirar o estetoscópio, respondeu:
- Dona Hera! Quanto ao primeiro ponto, quero dizer-lhe que é meu lema não me meter entre os assuntos do casal, para mais sabendo do que o seu marido é capaz! Por favor, ponha-me de fora. Eu vim aqui, por causa da sua tosse, não para resolver conflitos matrimoniais.
- Eu sei!, respondeu Hera. - Mas note que eu só lhe pedi para não o incentivar, não vá o Dr. descair-se e dizer o que não deve. Agora vamos à doença. Quer que eu tire a túnica ou ausculta-me à pescador, pelo decote?

O Dr. Hipólito mediu tensões, viu a orofaringe, auscultou, procurou sinais de disfunção de órgão e concluiu pela benignidade do quadro clínico. Prescreveu-lhe um antitússico e, quando arrumava o bloco de receitas, Hera segurou-lhe no braço e disse-lhe:
-Dr.! Eu sei que hoje está com pressa, mas, para a próxima, quando aqui voltar, quero que venha com mais tempo. Precisamos de falar.
- Está bem, dona Hera! Para a próxima venho com mais tempo, até porque vou ter de vos conhecer a todos e a funcionalidade desta casa. Respondeu o dr. Hipólito. Mas agora é tarde e a minha mulher deve estar a pensar que me aconteceu qualquer coisa para eu chegar tarde sem lhe ter dito nada. Posso telefonar daqui?

Telefonou. Depois despediu-se e a mesma menina que o trouxe, disponibilizou-se para o acompanhar até à saída dos aposentos, onde Zeus já o esperava. – Então? Perguntou. – Vamos ter outra noite sem dormir ou é coisa de pouca monta?
- Nada de especial. No entanto, caso os sintomas persistam deverá fazer uma radiografia. E dito isto entregou-lhe a receita e dirigiu-se à porta. 
A meio caminho reconheceu Hefesto, que coxeava na sua direcção com o avental de ferreiro e o martelo na mão. Era bem mais feio que alguma vez poderia imaginar, mas transparecia bondade no olhar. Pousou o martelo e questionou-o:  - Dr.! A minha mãe vai melhorar rápido? É que eu tenho de sair hoje para provocar uma erupção no Etna. Vai para um ano que me pediram umas cinzas para fortalecer os vinhedos e eu tinha isso marcado para a semana passada.
- Não vai haver problema! Ela amanhã está boa. Pode trabalhar com calma e por favor, não provoque grandes explosões, como aquelas do Eyjafjallajökull em 2010, que o meu filho regressa de férias e viaja de avião. Boa noite!
Zeus levou-o até ao automóvel e ficou até ver as luzes desaparecerem. Depois, deu um enorme salto e duas voltas ao planeta para se certificar de que Hélio conduzia o carro do Sol na devida órbita em volta da Terra, e voltou ao templo para descansar. Tinha uma ideia para regressar ao activo.   

domingo, 13 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (1)


Era verão. Talvez Agosto. A cidade mantinha-se activa, indiferente à ausência dos que rumaram para Algarves e outras paragens, deixando para trás os problemas e as pessoas que deles esperam solução.
Então, exige-se a quem fica, não só um maior esforço, mas também que seja rápido a ler e a decidir as coisas que o acaso lhe põe à frente, se não quer ser surpreendido com o que já não têm solução. Para uns é uma oportunidade. Para outros um sufoco. São estas as regras do jogo nos tempos que vão correndo a que os médicos também não conseguem escapar.

Nesse dia, o Dr. Hipólito, internista de renome, recebera um telefonema de um grande amigo, a pedir-lhe para assumir a assistência a um Lar de Terceira Idade, com o sugestivo nome de Lembranças do Olimpo.
Apontara a morada e a hora 18:30h e, depois de uma jornada em que mal tivera tempo para almoçar, levara-se àquele extremo da cidade. Parou o automóvel onde o GPS dissera “chegou ao seu destino” e olhou em redor. O amplo parque dava acesso a uma alameda de grandes ciprestes, onde estacionava um SUV preto de vidros fumados, que lhe fez lembrar os do filme Matrix. Riu-se para dentro, enquanto pensava: - Devem ser idosos "muito p'rá frentex, os que por aqui param!". Confirmou a morada no mapa do Smartphone e apressou o passo em direcção ao edifício, que mais parecia lhe um Palácio da Justiça que um Lar de Terceira Idade.

As cidades actuais, minoram as grandes construções de outros séculos levantadas à força de suor e músculo, e o corre-corre a que nos obrigamos, só nos lembra que vivemos em cidades milenares, quando alguém nos chama a atenção para um muro em vias de sofrer as "delícias" do camartelo.

Ao Dr. Hipólito, as rápidas passadas dificultavam o entendimento da majestade daquelas paredes, rodeadas por um peristilo de mármore creme. Viera em modo automático, rebobinando os sucessos do dia e só levantara os olhos ao esbarrar com as imponentes portas de bronze, glorificando os triunfos dos deuses do Olimpo.

Identificava, num dos seus retábulos, Deméter semeando uma ceara de trigo, quando uma jovem o abordou, solícita, indicando-lhe o interior. Vinha descalça, envolta numa túnica branca esvoaçante e exalava em ténue perfume a relva recém-cortada. Os cabelos compridos balouçavam-lhe no amplo vão de um decote. Seguiu-a.

Passaram uma segunda porta de sólido castanho, também ela ricamente ornada com o que entendeu serem referências aos quatro elementos – água, terra, fogo e ar, e entraram numa nave imensa, ladeada de seis grandes dosséis, e dominada ao fundo por um trono de ouro e marfim, com múltiplas incrustações de pedras cintilantes, onde um velho o aguardava.
Estava envolto numa manto vermelho, que lhe deixava a nu mais de metade do tórax, tinha a mão esquerda apoiada num ceptro encimado por uma águia e na direita um raio azul, onde assomava o escuro rugoso da ferrugem. Fez um gesto de cabeça sugerindo que se aproximasse.

O Dr. Hipólito subiu um degrau e estendeu-lhe a mão, como a querer cumprimentá-lo, mas conteve-se e dobrou-se numa vénia. Aquele corpo, não escondia a força. A testa enrugada de muitas contrariedades, terminava numa coroa de ramos de oliveira e prolongava-se por um manto de cabelos e barba brancos até ao cavername do peito. O ancião levantou-se e desceu os três degraus, sorrindo, até ao médico e, como se uma familiaridade os unisse há séculos, com voz suave, onde transparecia determinação, informou-o:

-Desculpe não o termos avisado do que iria aqui encontrar. Foi uma situação imprevista. O Dr. Euclides, que nos prestava assistência, faleceu há dois dias, e a minha mulher Hera, anda com uma tosse de não deixar ninguém descansar e, embora ela seja imortal, sofre e faz-nos sofrer.
E continuou: -Já vi que está a estranhar o lugar e, antes que dê azo a cogitações, quero que saiba que este templo é o refúgio que escolhemos depois de termos sido selvaticamente derrotados pelos cristãos, vai para uns mil e quinhentos anos. Temos aqui todas as comodidades, mas falta-nos a adoração dos homens. É esse o nosso maior problema. Estarmos inactivos. Só somos lembrados por meia dúzia de eruditos, nas suas palestras e, de vez em quando, damos orientações em filmes de guerra ou aos desenhos animados, mas já ninguém nos leva a sério e muitos até fazem chacota das nossas aventuras.

O Dr. Hipólito conhecia bem a vida dos deuses eternos. Quando vencidos pelos novos deuses, afastam-se e ficam à espera que o mundo complete um dos seus ciclos e possa reclamar de novo os seus serviços.
Reconhecera Zeus. Conhecia dos livros os seus defeitos e virtudes e tinha-o como um bom deus grego, que tentara jogar com o acaso para estimular o Homem na procura de soluções que lhe permitissem viver em comunidade mas que, como muitos outros, não se apercebera da evolução social e descurara a actualização.

Sentiu o seu braço encaminhando-o para as traseiras da nave, onde verdejava um imenso olival, e entraram num caminho de terra batida que se estendia até ao topo do monte, onde uma pérgula esperava os peripatéticos.

Um deus, nem sempre tem interlocutores humanos à sua medida. Zeus tivera o cuidado de recolher informações sobre ele e, concluindo que seria um bom conversador, aguardara-o, mais para saber a sua percepção da actualidade, que pela doença de Hera.
Enquanto esticavam as pernas pelo trilho e apanhavam os últimos raios daquele sol poente, Zeus reiniciou a conversa. Explicou-lhe as lutas e as cedências que os tinham arrastado para aquela situação. Falou da conquista da Grécia pelos Romanos e de eles lhes terem proposto a alteração dos seus nomes, coisa que a princípio até os lisonjeou, por verem crescer a sua cota no mercado da humanidade, mas que, quando se viram nas mãos dos maus senadores e generais romanos e quiseram lutar, já ninguém os conhecia pelos seus nomes antigos. Atena bem o avisou e nunca aceitou que lhe chamassem Minerva, mas os outros foram-se habituando e só se arrependeram quando se viram cair às mãos da cristandade.

-Sabe Dr. Hipólito, esta relação dos deuses com os homens nunca foi estável. Nós, deuses, temos de estar muito atentos, pois uma pequena ocorrência pode ter consequências dramáticas. Eu devia ter fortalecido a equipe e pôr no banco alguns dos meus deuses mais dados a extremismos. O Dionísio já não era bem visto na Grécia e quando virou Baco, em Roma, e o deixei organizar os bacanais, ele fez aquilo da pior maneira. Era “tudo ao monte e fé em deus” e a malta do poder começou a olhar para nós “al revés”, como se fossemos todos farinha do mesmo saco, e a coisa foi de mal a pior, até o Imperador Constantino em 321, começar a proteger os cristãos. Aí tivemos de fugir, porque logo que sentiram as costas quentes, desataram a inventar mentiras sobre nós e a profanar os nossos templos. Foram tempos terríveis. Nas aldeias e nos locais mais remotos ainda nos conseguimos aguentar uns séculos, a planear um regresso, mas quando chegou a Inquisição, ficaram todos aterrorizados e deixaram de querer saber de nós. Nem o deus dos Cátaros, que era feito da mesma massa, resistiu. Sabe! Pode-lhe parecer conversa de velho, mas só quando, em 1624, o Papa Urbano VII mandou fundir as placas de bronze que forravam o Pantéon em Roma, que era a casa de todos nós, para construir o baldaquino na Basílica de S. Pedro, é que perdemos a esperança de um dia voltar a ter quem se nos dirigisse nas aflições.

Chegaram à pérgula onde crescia um jasmim de cheiro tão aveludado, que Eros o teria usado nas suas setas para enfeitiçar os amantes, e sentaram-se, recebendo a aragem fresca do fim da tarde.
E Zeus continuou: -Naqueles dosséis, que viu no templo, dormem os meus familiares: a minha mulher Hera, os meus irmãos Poseidon, Deméter, Atena e Apolo, e os meus filhos Ares, Artemísia, Hefesto, Afrodite, Hermes e Dioniso.

A minha mulher, passa o dia sozinha. Já nem tem ciúmes de mim. Está chata e ressona. Então agora que constipou, incomoda toda a gente com a gosma. O meu filho Dionísio, que gerei na minha própria coxa, está com cirrose e mais amarelo que um canário. O que lhe vale é ser eterno. Não lê nada para se actualizar com as novas tecnologias da produção e comercialização do vinho. Se um dia nos chamarem de novo, vou ter de arranjar alguém fora da família para lidar com o assunto. O meu irmão Poseidon está cheio de reumatismo. Eu bem o avisei para se afastar da humidade dos oceanos, mas ele gostava das tempestades, o que é que eu ia fazer. Agora é aguentar e cara alegre. Cortou o dente do meio do tridente e usa-o como muleta. Assim, mantém alguma memória do passado, mas quando está chateado ainda sai e faz uma asneira, como aquela do tsunami no Japão.

-Mas voltemos antes que o sol se ponha, que eu quero que observe a minha mulher. Se a convencer a ir à Ítaca umas semanas era óptimo. Ela gostou da ilha quando lá fomos dar uma mãozinha ao Ulisses. Há lá cinco hotéis. Se for convincente, ela vai aceder.

O Dr. Hipólito ouvia e tentava enquadrar o discurso de Zeus naquilo que conhecia dos livros, sabendo ele que os livros são um reflexo da realidade filtrada pelos olhos do narrador, semelhante a uma árvore espelhada na superfície de um lago, que não é exactamente igual à própria árvore, e quando surgiu a oportunidade, questionou-o:
- É curioso que ainda tenha vontade de voltar ao activo. Deve ter observado que o mundo nos últimos cinquenta anos sofreu modificações difíceis de integrar em qualquer das antigas religiões e que se exigem deuses com outras atitudes. O vosso historial belicista é um problema e a tipologia do vosso bucólico não se enquadra bem no turismo rural. Falta-vos know how em smarphones, na política de inclusão de minorias, em globalização, e isto para não falar de problemas mais específicos como política de emprego nas sociedades competitivas, onde a robótica tende a substituir o trabalho manual.

Zeus ouvia interessado, anuindo com a cabeça, enquanto segurava na mão a fralda da túnica para a não pisar ao subir os três degraus que davam acesso ao vestíbulo do templo.

-Concordo consigo, mas não se esqueça que somos deuses e que aquilo que fazemos pode ser interpretado pelo Homem de modos muito diversos. É uma questão de falarmos com os exegetas de serviço e tomarmos conta dos meios de comunicação social. Isso para nós é mais fácil que para um partido político, e o Dr. Hipólito há-de convir que a população actual pouco exige aos poderosos. O nosso grande problema está nos outros deuses.
- Mas a quais se refere especificamente?
- Aos dois que actualmente mandam em meio mundo. Ao Deus cristão e a Alá. O cristão tem a maior multinacional do planeta e o muçulmano tem uma franchising sem padrão de qualidade, que alicia quem precisa de um livro único para resolver todos os problemas.
- E não tem medo dos deuses que andam pela China e pela India? Olhe que eles influenciam muita gente.
- Não! Esses deuses são inclusivos, não exclusivos como estes. Temos tido vários contactos com eles, não oficiais, e até já tivemos um plano para uma parceria. Eu dava uns mitos e eles, outros. Coisas a chamar a atenção para a pobreza e para o cuidado com o planeta, mas não andámos para a frente, porque eles queriam que eu afastasse definitivamente os meus deuses mais controversos, como o Ares, a que os romanos chamavam Marte, e o Dionísio. Mas também o Poseidon, por causa das moções. Dizem que ele tem tendência para o exagero e não confiam. Aquela malta do oriente é mais dada às contemplações e querem deuses mais zen.

Sentaram-se nas escadas que dava acesso ao trono. O Dr. Hipólito percorria com o olhar os dosséis de grosso veludo grená, quando Zeus lhe perguntou: -Acha que a crise de valores que actualmente assola a humanidade poderá constituir uma oportunidade para nós, ou será que vamos ter de esperar mais?
-Não sei! Respondeu o médico. – A vossa imagem não é das melhores. Há histórias que lutam contra vós. Eu, por exemplo, sou discípulo de Esculápio, e mantenho vivo, como símbolo da minha profissão, o seu bastão, e nunca irei esquecer que fostes vós que o mataste por ele ter ressuscitado um paisano com o meu nome, só porque achaste que ele tinha pensamentos demasiado grandiosos para um homem. Mas há outros que se queixam de outras coisas. Se vocês aparecerem de novo, ou vêm apoiados num marketing agressivo, ou estais feitos. Para além disso, pelo que disseste e vejo, muitos de vós perderam a Esperança e a força para arrastar multidões.

Zeus, coçou os cabelos enquanto pensava na resposta seguinte. De facto Atena ficara muito perturbada com as derrotas. Perdera o escudo e passava o dia a fazer crochet. Ares, a quem os romanos chamavam de Marte, se já não era bom da cabeça quando estava activo, não melhorara com aquele repouso. De vez em quando, punha-se a gritar para as paredes a dizer que elas não sabiam quem ele era, e era ele que o tinha de acalmar com o raio. Hefesto, ainda dominava o ferro, mas nada sabia das novas ligas e de plásticos. Nem com Afrodite podia contar. Ela que fora a deusa do amor, vestia-se unissexo e raramente usava saias. Só poderia contar com o Hermes que, por ser patrono dos ladrões e guia dos mortos, se mantivera sempre ocupado. Para mais aquelas asas nos pés tornavam-no extremamente ecológico.

Levantou-se das escadas, atirou a túnica para cima do ombro esquerdo, e enquanto dava a mão ao Dr. Hipólito para o ajudar a levantar, olhou-o nos olhos e disse: - Acho que tem razão. Vou ter de dar uma volta no staff. Com este não me safo. A solução está nas Parcerias!.
E dito isto avançou até ao bar onde Dionísio experimentava cocktails. Zeus pediu um daikiri e o médico, depois das apresentações e de um longo aperto de mão, pediu um guaraná.
De seguida, encaminharam-se para o exterior para apreciar o ocaso. Zeus ia contar a história de Faetonte, mas o Dr. Hipólito, pôs-lhe a mão no braço como a dizer-lhe que já a conhecia e que o momento deveria ser aproveitado para uma reflexão sobre o que tinham acabado de falar, e assim ficaram até o sol desaparecer no horizonte. Então o médico levantou-se e disse: -É tarde! Eu tenho a minha família à espera e fiquei sem carga no telemóvel. Hei-de vir cá mais vezes e com mais tempo. Agora vamos lá auscultar a sua esposa a ver se consigo dar com o remédio sem ter de recorrer a meios auxiliares de diagnóstico.
E dirigiram-se ao dossel nº2.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Pós-operatório


Quando se juntam cirurgiões apressados a doentes surdos, é mais que provável surgirem cenas pouco aconselháveis a ouvidos sensíveis. A história tem décadas e foi passada numa enfermaria de cirurgia de um hospital central do Porto, onde o vernáculo tinha honras de erudição.
Uma idosa, meio surda, recuperava de uma cirurgia abdominal. O cirurgião (Dr. C.G.) aproxima-se, seguido do seu séquito, e pergunta-lhe: - “A Sra. tem tido gases?”, e a doente, responde: - Não! Sr. Dr.! Eu cozinho a carvão!
Espantado com a réplica, o Dr. C. G., para não lhe deixar dúvidas, questiona-a, então, em sonora voz: - “A SENHORA PEIDA-SE?”, ao que esta lhe responde no mesmo registo: - “Oh Sr. Dr.!!!! ... Como um cu aberto!”
...
E tudo está bem, quando acaba em bem!