segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Lembranças do Olimpo (18)



Hipólito saíra da Urgência às 20:00h, quando o céu do fim da tarde se tingia de vermelho e o sol se apagava no mar. Rumou em direcção à praia e estacionou virado para a linha do horizonte, enquanto pensava nos porquês daquela cor.
Partículas em suspensão no ar? A última cor visível do espectro da luz? Ou sangue subindo aos céus proveniente de algum ritual pagão nos confins da Terra?

Confabulava. Tivesse pensado que o céu estava tingido de encarnado e a associação de ideias, por certo, seria diferente (em Lisboa, os nobres do Império dizem encarnado e a plebe diz vermelho, e vermelhos são os comunistas e encarnados os adeptos do Benfica).

Encarnado trar-lhe-ia à mente, não sangue, mas carne e o mais provável seria o tê-la associado a um qualquer acidente explosivo que esfacelasse completamente um indivíduo, como os homens-bomba no Próximo Oriente ou um choque de lixo espacial à deriva com o corpo de um cosmonauta em passeio fora da sua Estação Espacial ou quiçá, com um deus “encarnado” em humano.
Na Grécia antiga não havia restos de satélite na órbita do nosso planeta e os seus deuses não tinham problemas desta índole, bem como Nossa Senhora ou Jesus que subiram aos Céus em corpo, talvez para evitarem as profanações. Agora, se passarem perto da Terra, têm de ter cuidado. Talvez por causa disso “sepultaram” o Bin Laden no mar Arábico em vez de o enviar para a estratosfera. Ficou mais barato e evitaram-se colisões.

Depois, lembrou-se que conhecera um José da Encarnação na Escola Primária, que fora colega de turma de uma Maria da Encarnação no 3º ano do Liceu, e que, no Norte do país, nunca encontrara Encarnações, onde as mulheres antigas são Agonias e Dores ou quando muito Ascenções.

Aquele "vermelho de sangue", embora só prenunciasse um dia seguinte quente e sem nuvens, permitia-lhe conjurar que podia haver quem o julgasse resultante de um ritual religioso, daqueles em que se tira a vida a um ser para agradecer ou pedir um favor pois, desde tempos imemoriais, que o sangue das vítimas agrada aos deuses, seja o de um bode expiatório, de um inimigo ou o de um qualquer paisano que o acaso pôs no caminho de um sacerdote disposto a redimir os erros de um grupo, com a vida alheia.
À cota onde o sol se estava a pôr, podia ser um Maya fundamentalista, de Cancun ou de Kukulcán, a tentar aplacar algum dos novos deuses dos “Mercados” ou do FMI. Vá-se lá saber o que anda na cabeça de quem crê que o Além influencia o que se passa neste Mundo!

Estes pensamentos distraíam-no. Fizera-se noite e o estômago pedia um regresso a casa. No caminho estranhou que os Gregos não tivessem inventado um Deus para o dinheiro com atributos que obrigassem os crentes a resguardar-se do seu poder. Se o tivessem feito, talvez o caminho da História fosse diferente e os sacrifícios não fossem com sangue dos outros, mas com a riqueza do próprio e então, o pôr-do-sol seria dourado, prateado ou esverdeado se lhe abundassem as notas de 100 Euros.

Chegara a casa. O cão fez-lhe a festa do costume, o gato enrolou-se-lhe nos pés e a companheira estranhou o atraso. Nas notícias da TV viu os destroços de casas e gente a correr com crianças nos braços. Os gritos de Allahu Akbar lembraram-lhe as guerras entre portugueses e castelhanos, uns gritando por S. Jorge e outros por Santiago, enquanto se atiravam encarniçadamente uns sobre os outros. Nessa altura o Deus cristão devia estar tão baralhado como Allah está nos tempos que correm.

Jantou automaticamente sem notar que o cozinhado tinha cuidados “gourmet” e subiu ao quarto para lavar os dentes, quando, ao passar pelo Nkisi lhe decidiu perguntar se na terra dos Bakongos, também faziam distinção entre vermelho e encarnado.

A imagem respondeu-lhe, no mesmo tom ciciado, que não tinham grandes diferenciações das cores, mas que tinha ouvido, há minutos, que os pretos não querem que lhes chamem negros e não percebia o porquê.

Hipólito pasmou com a rapidez com que o Nkisi se tinha apercebido das nuances que o racismo pode ter na linguagem, e aproveitou para o pôr a par.
- Sabes a palavra “negro”, no mundo ocidental tem uma conotação desgraçada. É que negro também quer dizer infeliz, maldito. É a ovelha negra, o dia negro, a lista negra, o mercado negro, a peste negra, o buraco negro, a fome negra, o humor negro, o passado negro, futuro negro e por aí fora. Tudo o que é negro está relacionado com coisas negativas. Quando se quer valorizar não se diz negro. Diz-se preto. Come-se feijão preto, compra-se um carro preto, toma-se café preto e quando se ganha a lotaria ganha-se uma nota preta. Percebes?

- Percebo!, respondeu o espírito. - Podem ser mensagens subliminares, mas por certo que são eficazes. Depois é o medo que o “outro” possa trazer valores que ponham em causa os nossos, muitas vezes sem ter feito o mínimo esforço para o conhecer. É curioso como o homem confia tanto nos seus olhos!
- É um facto!, respondeu o médico. - Desde o século XVI que a Europa trata a África muito mal. Não só escravizou grande parte da sua população, como também destruiu a sua História e coesão social.

O Nkisi permaneceu calado. O médico pensou que ele estava a integrar estas informações e afastou-se sem lhe falar das quarenta e nove tonalidades de vermelho e das cinquenta de preto que a indústria das tintas cataloga. Despediu-se com um “Boa Noite!” e só depois se lembrou de que lhe queria perguntar se ele seria capaz de contactar com os deuses do Olimpo que se tinham deslocalizado. 
Mas não voltou atrás. Disse para consigo: "O que se não faz no dia de Santa Luzia, faz-se noutro dia!", e continuou. ... "Para alguma coisa hão-de servir os provérbios!".

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Lembranças do Olimpo (17)


Fora em Março que os deuses gregos lhe deram o último sinal de presença. Desde então passara duas ou três vezes pelo Lar, à procura de um qualquer movimento que o levasse a bater à porta, mas encontrara-a sempre fechada, as persianas corridas, nada de fumo na chaminé e o mato a tomar conta do jardim.
Malgrado a sua não fiabilidade, sentia saudades deles. Ainda que andassem desmotivados, mantinham-se dinâmicos. Um levava diariamente o carro do Sol através do imenso espaço, outro activava vulcões, outro tempestades e acorriam prontos onde acontecesse desgraça, na procura de almas para reciclar no Hades. De vez em quando, se queriam pôr à prova a soberba de alguém, vestiam-se de andrajos e pediam-lhe uma esmola ou então, se havia necessidade de ajudar na natalidade, engravidavam mulheres para que dessem à luz futuros heróis. Eram origem para os centos de histórias que estimulavam as mentes dos crentes a perseguir objectivos que os pudessem transcender e, nesse acto, desenvolviam as sociedades que os acolhiam.

Hipólito andava numa fase má, céptico da política nacional e internacional, com o sentimento de que muitas lideranças estavam entregues a atrevidos que utilizavam o Estado como trampolim para lugares de topo nos grandes negócios internacionais. Depois também não via solução para os conflitos, de ontem, de hoje e para os que se perspectivavam, por mais que os comentadores os tentassem explicar e os religiosos os lamentassem, porque as crenças no seu cerne, têm séculos, sem nada mais as valide que uma “Fé” construída em cima de “verdades irreais”, que só aquele grupo aceita, sejam elas a “Santíssima Trindade”, a revelação da “última palavra” de Alá a Maomé, ou as actividades do sem número de espíritos que pululam no Hinduísmo.

Para ele, a coexistência pacífica de várias religiões no mesmo espaço, era uma utopia, principalmente quando elas reclamam normas jurídicas e governativas. Os católicos tinham a vantagem da experiência da Inquisição e, pelo menos em teoria, entregavam a César o que é de César.

Nessa tarde fora ao Porto ver a ruína da casa onde nascera e o andamento da reabilitação do Centro Histórico da cidade. Estacionou o carro no Silo-Auto, foi pela Rua de Santa Catarina até à Batalha, desceu a Rua de Santo António, bebeu um fino na Cervejaria Sá Reis e subia a Rua do Almada quando, quase ao chegar à Praça da República, uma montra com arte africana o fez parar. Há anos que pensava numa peça para pôr em cima de um aparador, ao pé de uma pequena caixa de pau preto que um tio lhe dera de prenda de casamento e uma máscara daquelas, talvez desse continuidade ao quadro que lhe estava próximo, e que ele entendia como uma representação do Santo Graal.
No amontoado de figuras que cobria o chão, não encontrou o que procurava e foi quase à saída que o gerente, natural do Mali, na perspectiva de um não negócio, foi ao fundo de um baú retirar uma estatueta que o encantou. Era de uma madeira escura e não teria mais que trinta centímetros de altura. Representava um homem com os pés assentes numa tartaruga e um comprido gorro de tecido canelado a cobrir-lhe a crânio. Tinha às costas um grande cesto de vime, onde uns pequenos objectos chocalhavam. Mordia um pau, que segurava com ambas as mãos.
Era aquilo. Perguntou o que representava e ouviu a resposta num português “macarrónico” que ele continha o espírito de um poderoso falecido, que poderia ser usado pelos vivos para combater doenças ou pessoas que nos querem mal.
- Ora nem mais! É disto mesmo que eu preciso!, disse ao pagar, desvalorizando-lhe os supostos atributos. Desejou sorte para o negócio, paz para o Mali e despediu-se do Keita, que insistia em lhe vender um bronze do Benim.

Chegado a casa, com a mulher, reorganizou o recanto. Parecia que a estatueta fora feita para ali. Depois, jantou, leu um artigo médico numa das revistas que regularmente lhe chegavam a casa e, quando ia para o quarto descansar, junto ao aparador, ouviu um sussurro que lhe pareceu um “obrigado”. Incrédulo, pegou na imagem, como a medi-la, quando uma voz do seu interior lhe disse: - Fica calmo! Já vi que não sabes quem eu sou!
Hipólito, deu um passo atrás, e desceu as escadas em direcção à garagem, para que a conversa pudesse continuar sem interferências, enquanto lhe ciciava: - Espera um pouco. A minha mulher não vai gostar de saber que tu falas! Se queres ficar connosco, é melhor resguardares-te!
Chegados, o médico sentou-se ao volante do automóvel, pousou a estatueta em cima do tablier e, após um suspiro, continuou: - Agora podes falar! Mas sê breve que, se me demoro, ela desce a procurar-me!
A imagem fez com que a sua voz saísse pelos altifalantes do rádio:
- Antes de mais, queria reforçar o meu agradecimento por me teres tirado daquele lugar. Estive embrulhado montes de tempo e já estava a recear nunca mais ver um ser humano. Sou um Nkisi e, se assim o entenderes, posso cuidar do teu equilíbrio físico, energético e emocional. Estou ao teu inteiro dispor!

- Um Nkisi? Perguntou o médico. – Eu conheço o Nkisi Nkondi, mas tu não és nada parecido com ele. Ele tem o corpo coberto de pregos e lâminas.
- Esse é um primo meu, que é doutorado. Para onde vai, leva o currículo. Cada prego ou lâmina corresponde à resolução de uma disputa ou de uma vingança. Eu dedico-me a doenças mentais e a problemas sociais. Sou um Nkisi Luganbe.
- E não achas que os teus poderes estão circunscritos à África ... “profunda”?
- Nunca experimentei aqui na Europa, com os autóctones, mas creio conseguir contactar com os teus antepassados. Para além disso, transporto no cesto, garras de águia capazes de darem castigo aos malfeitores e de tratar doenças malignas.
- Ok! Retorquiu Hipólito. – No fundo, o que me estás a propor, é seres o meu Anjo da Guarda?
- Não sei bem o que fazem esses anjos, mas eu posso defender-te de quem te quiser fazer mal e pôr-te no caminho dos teus antepassados.

O médico não o queria desconsiderar. O espírito estava manifestamente desactualizado. Devia ter passado mais de cinquenta anos no fundo do baú. Pegou na imagem, colocou-a com bonomia sobre os joelhos e disse-lhe: - Não deves estar a par do salto exponencial que a ciência deu nos últimos tempos. Aqui no Ocidente, o modo como se vive alterou-se muito. A globalização levou à formação de grandes Multinacionais em todas as áreas, na indústria, no comércio, nos serviços e na religião. E a tendência é para aumentarem. Actualmente, em Portugal, estão a tomar conta do Serviço Nacional de Saúde, mas há muito que os Hipermercados rebentaram com os merceeiros e que o Vaticano domina o pensamento religioso.
O vosso Animismo ao imaginar forças divinas na natureza, numa árvore, numa gruta ou num qualquer recanto, não cumpre os objectivos do "Mercado". A Economia precisa que se façam muitos edifícios e de grande valor, que o diga o pai do Bin Laden que se tornou o segundo homem mais rico da Arábia Saudita, a construir mesquitas. Isto sem falar das peregrinações e do turismo religioso que estão em alta. O vosso mundo de agora está no folclore e nos museus etnográficos.

O espírito, após uma pausa, respondeu ressentido: - Pelos vistos dispensas os meus favores. Mas não te esqueças que é o passado que determina o futuro e que sem o apoio dos ancestrais, ele perde sentido.
- Oh meu caro Nkisi! , respondeu paternalmente o médico. - O passado, não existe! O que existe são versões sobre factos passados. E Ponto Final. O local onde se coloca o observador é determinante para a história que irá contar. Se está do lado de um vencedor escreverá o “passado oficial”, se estiver do lado dos perdedores, o mais certo é ser esquecido ou lembrado como infiel, herético ou takfir ou com qualquer outro epíteto que o desclassifique. Tu começaste a perder no dia em que os primeiros missionários portugueses pisaram o teu território. Depois foi a máquina da globalização a triturar o que não gera riqueza.
- Como tenho estado embrulhado, não tenho essa noção. Pelo que dizes, o mundo está muito mudado, mas “o espírito” de cada um, será que se transformou assim tanto? Será que alguém pode viver bem, onde quer que seja, sem equilíbrio físico, energético e emocional. Ora é isso que eu te propus ... a custo zero!

Hipólito, coçou a cabeça. Aquele espírito era resiliente. Não exigia templos e procurava mostrar a essência espiritual na natureza, para manter um percurso de vida sem sobressaltos. Iniciou o regresso ao quarto com a imagem, com uma proposta: - Não me importo que vivas connosco, mas só deves falar comigo e sem interferir com a actividade desta casa. Se um dia eu precisar de um anjo-da-guarda digo-te! Ok? Até lá observa! Sabes, há quem diga que a vida é um eterno retorno e que o que já foi, voltará na mesma ordem e sequência. Então pode ser que possas ter alguma vantagem. Mas o facto é que te comprei pelo teu aspecto exótico, sem considerar os teus eventuais poderes e gostava que a coisa ficasse por aí.

O Nkisi resignado, respondeu que ficava a aguardar novas ordens. Hipólito pousou-o delicadamente no seu local e despediu-se, pois no dia seguinte esperavam-no dezasseis horas de trabalho no Serviço de Urgência e, apesar de já haver menos turistas na cidade, a afluência mantinha-se acima da média.