A terceira dose de vacina não teve história. Lamento.
A fila de 200 pessoas que ordeiramente esperavam pela sua vez, era pontuada muito raramente por um comentário de desagrado, que não interferia com o colectivo e depressa se retomava o silêncio.
Num dia frio de sol, até sabia bem alternar o sol quente do meio dia com as sombras dos robustos plátanos que fazem o contorno do campo de treinos.
Para nos tornar a espera mais agradável, alguns soldados, em perfeito alinhamento, faziam marcha cadenciada de esquerdo, direito, que passava a passo de corrida e a um súbito direita volver. O suficiente para que todas as cabeças se virassem para acompanhar o espectáculo e, ao mesmo tempo, verificar com alívio o comprimento da fila que, entretanto, se formara atrás. Há quem esteja pior!
Outros soldados faziam exercício junto a uma parede, para nosso deleite. Parecia que estavam a jogar ao "jogo da estátua" ou à “minha mãe dá licença?".
Até música houve, com um solo de corneta bem timbrado.
Pudemos assistir à chegada de uma carrinha frigorífica da "Petit Forrester", carregadinha de vacinas, que arrancou de todos um sorriso de alívio por detrás das máscaras..., que os olhos não mentem.! Tanto mais que à entrada do enorme quartel, o segurança tinha informado que a casa aberta já tinha fechado, aquela hora, por se terem acabado as vacinas.
Nada de especial.
Quando, ao fim de uma hora, foi atravessado o primeiro patamar de espera, esperava-nos uma enorme tenda, daquelas que se usam em casamentos com cadeiras coloridas que emprestavam ar de festa a esta solenidade. Aqui a aproximação física entre os candidatos à vacina foi maior, pois o sistema de encaminhar pessoas em corredor serpenteante, obriga a que nos vejamos pelas costas e pela frente. E isso não é bom! Ao ver as caras enrugadas e o ar de sofrimento tenho sempre a tentação de deixar passar à frente aqueles que parecem mais velhos do que eu... Mas são todos!.... E todos somos da mesma idade!
Não houve lugar a qualquer episódio caricato.
Mesmo a “senhora de idade” que precisou de se sentar no chão para descansar as pernas, vinha prevenida e começou a ler o Público. Ainda assim, houve quem quisesse perturbar esta paz... Quem saía da vacinação, já com esta feita, ia entre risinhos dizendo para a fila que esperara três horas e meia. Outros lançaram um "tenha paciência...." e até alguém aventou que na quarta dose ia ser pior.
Pouca coisa. Não dá história.
A proximidade física não é boa em tempo de Covid, mas a nossa população não desperdiça a oportunidade de entabular uma conversa.
Como não sou capaz de me integrar em grupos de conversação com desconhecidos (embora os meus vizinhos de fila se tivessem esforçado), vi-me entalada entre dois grupos. O grupo de homens à minha frente, falava sobre a sua experiência com vacinas prévias, do mesmo jeito que as mulheres partilham as experiências da gravidez e parto, metendo obviamente bicadas à organização e de como era bom antigamente, em que nem televisão havia, "porque a televisão em Portugal começou em 58!" Atrás de mim, em cima dos meus ouvidos, um grupo de três mulheres contava a sua vida com voz estridente, desde as meias que usam para não ter frieiras até à técnica para ludibriar a filha, para comer as sandes de leitão às escondidas. Esta última, camuflava num par de jeans muito justo a pele sobrante das gorduras de outros tempos. Ainda antes de a ouvir dizer que estava a tremer de fome e que desde que tinha sido operada ao estômago tinha que comer muitas vezes, já eu tinha feito o diagnóstico. Depois, foi só ouvir a conversa que girava a volta do que tinha comido e do que ia comer e de como dissimuladamente o fazia. Ainda ontem tinha comido leitão até lhe chegar com o dedo. Também fiquei a saber que "-Eu sou franca! Moro sozinha! Às sete horas como a sopinha e vou para a cama, ligo a televisão e tento matar os bichinhos no telemóvel. A minha médica proibiu-me de fazer renda e bordar, por causa das artroses. Eu sei que o telemóvel também não faz bem, mas tenho que apanhar estas duas aranhas..."
Pobres médicos de família!
Assim, ao fim de quatro horas, saí do centro de vacinação como de um filme de Manuel de Oliveira. Cansada, sem ter percebido nada, sem história para contar mas com dores nos braços.
Na quarta dose deve ser melhor!
História de MHSG