sábado, 30 de dezembro de 2023

Soneto

 



Um amigo do Facebook (Benjamim Carvalho) escreveu este poema, na sua página.


Paixões de verão.

Todos os dias, naquela encruzilhada
Atrás do velho tronco d’um sobreiro,
Escondido, descias pela estrada ...
Passava, num momento, o dia inteiro...
O sol, no teu rosto, em labaredas mansas,
Os olhos que fechavas nos passos que descias,
Batia o meu peito, em pulos de esperanças …
E tu passavas fazendo que não vias...
Já ias longe...o sol estava posto
A noite, bem no fundo, escurecia
Esperava o momento que não vinha...
Foi tão lindo, aquele mês de agosto.
Tanto gostei de ti, eu tanto te queria...
Tanto gostei de ti, mas nunca foste minha...



E eu, que não sou poeta, por achar graça à ideia, atrevi-me a transformá-lo num soneto.

Ora cada verso de um soneto tem onze sílabas. O primeiro quarteto apresenta o assunto e o segundo amplifica o mesmo. O primeiro terceto reflete sobre a ideia central dos quartetos, e o terceto final, mais emotivo, acaba com alguma reflexão, moral ou ideia profunda. A rima é fixa nos quartetos (ABBA; ABBA) com variantes mais livres nos tercetos (CDE:CDE; CDE:DCE; CDC:DCD).

E dito isto, meti-me ao caminho


Paixões de verão

Atrás do velho tronco d’um sobreiro,
Escondido, naquela encruzilhada
T’ esperava descendo pela estrada.
Passava, num minuto, o dia inteiro.

Luzia o sol nos campos que florias
E teus olhos fugiam quais crianças
Do meu peito esmagado de esperanças
Quando passavas, fazendo que não vias.

Quando partias, o sol ficava posto
E num repente a noite escurecia
A espera do momento que não vinha.

Tão fagueiro foi aquele agosto.
Tanto gostei de ti, tanto antevia...
Que tolo até pensei que fosses minha...

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

O Pescada

 


A razão primeira porque lhe chamavam “Pescada”, nunca a soube. Talvez os seus detratores inventassem a alcunha por ser alto, branco e sempre bem arrumado. Fosse ele pequeno e gorducho e iriam apelidá-lo de “Garrafão”, mesmo que ele não consumisse bebidas alcoólicas. Mas na equipe, alguns achavam-lhe mais defeitos que virtudes e, quando a ele se referiam, era assim que o nomeavam, para que se soubesse que eram seus críticos.

Eu gostava dele. Como profissional, tudo somado, era melhor que outros cirurgiões. Sabia das suas limitações e não se metia em aventuras onde previa grandes dificuldades. Os outros diziam que era lento, por ser demasiado meticuloso a operar, e faziam chacota quando tinham que o ajudar nas grandes cirurgias, dizendo; “Vais operar com o Pescada!? O melhor é algaliares-te!”, e riam. E riam também quando ele contava as peripécias do seu hobby, a fotografia, onde dava cartas. E aí, ele não brincava. Era tudo muito “a sério”. Equipamentos dos melhores e estudo minucioso das instruções das máquinas que adquiria. Disso sou testemunha, pois vi-o várias vezes sentado à secretária, em frente à Canon topo de gama de manual aberto, a medir-se com ela, e quando lhe perguntei se já a tinha usado, respondeu-me que só a tinha comprado há uma semana e que antes, tinha de a estudar. Mas o resultado era “Muito Bom”, a ponto de pretender vender à National Geographic Magazine as fotos que fazia aos bichinhos e plantinhas do monte, que o tiravam da cama a desoras ou no meio de inclemências do tempo para apanhar a melhor luz. Vi algumas e alguns dos pequenos filmes e confirmo a qualidade e a paciência.

Mas era o seu humor o que mais me surpreendia. Aquela capacidade para ler no inesperado um ponto alto do dia e dele retirar uma história, que depois contava despretenciosamente, ridiculizando-se se necessário, para que a situação atingisse um clímax e se extinguisse nos segundos seguintes. E se lhe pedisse para repetir, ele contava-a exatamente como da primeira vez e ria comigo, não só da história, mas por nos rirmos de coisas que outros não achariam qualquer graça. Havia muitas trapalhadas em que ele se achara envolvido e, quando o encontrava, fosse num tempo morto do trabalho ou num corredor de um Supermercado, não resistia a relembrar uma, para ficarmos a rir, os dois, até ao embaraço.

Lembro aquela que mais me levou às lágrimas: Ele tinha uma casa no Porto, onde ia regularmente, principalmente quando ele e a mulher só tinham horário de manhã. Saíam do trabalho, almoçavam num restaurante em Esposende e depois seguiam viajem. Ora num desses dias, a comida não lhe caiu bem e, minutos depois, sentiu-se nauseado. Ainda pensou em parar, mas como tinha um encontro na Praça D. João I a que não queria chegar atrasado, continuou a conduzir o seu Mercedes Classe E, até mais não poder. Em frente ao Palácio de Cristal, parou no espaço então dedicado à paragem do eléctrico e, meio cambaleante e pálido como a cal, saiu do bólide e encostou-se ao tronco da primeira árvore que encontrou. E foi nesta posição que uma alma caridosa que por ali passava, lhe foi perguntar se precisava de ajuda. Agora o relato dele: “Eu estava em ponto de vómito eminente. Estás a ver! Tinha o antebraço apoiado na árvore e a cabeça apoiada nele. Quando o ouvi falar, virei-me na sua direcção e,  aquilo que estava por um fio, rebentou, e o vómito saiu-me explosivo. Havias de ver o gajo a saltar para trás com as calças a escorrer uma papa de arroz de sarrabulho misturada com tinto do Douro! Aos pulos, a sacudir os sapatos e a dizer Oh Homem! Oh homem! Então como é! E eu sem saber o que fazer. Se acabar de vomitar ou de cuidar dele! Ainda por cima o tipo estava todo apinocado, como quem vai para uma festa. Uma desgraça! A minha mulher a sair do carro com um pacote de lenços de papel, mas o vómito tinha-o atingido em cheio. Cá pra mim tinha-lhe passado já para a cueca! E o tipo a dizer C’um caraças! C’um caraças! Sem me ligar mais! E eu lá acabei de vomitar o resto para o tronco da árvore, mas o grosso já tinha ido para cima dele.“

E ria, enquanto imitava o fulano a saltar com ar enojado. E eu ria com ele e a malta que passava sorria de nos ver rir e dos gestos dele, e a certa altura caíamos na real com medo de alguém conhecido nos tomar por insanos.

Era assim o “Pescada”, há-de haver uns bons vinte anos. Depois disso, vi-o duas vezes e numa delas pedi-lhe para recontar esta história e ele contou como se o tempo não tivesse passado e rimo-nos, talvez não tanto como dantes, mas o suficiente para sairmos dali satisfeitos de tanto rir, lembrando também os alarmes que tinha em casa e que assustavam mais os convidados que o ladrões e os esquilos que mantinha numa imensa gaiola com todas as comodidades possíveis e imagináveis para um esquilo da alta sociedade.

Espero encontrá-lo ainda mais vezes nesta vida mas, caso tal não aconteça, por certo que nos iremos  encontrar no Além para nos rirmos outra vez das mesmas histórias ou doutras peripécias que lhe tenham acontecido, que ele era um bom contador de histórias. 

sábado, 16 de dezembro de 2023

As duas liberdades de Isaiah Berlin.



A palavra “liberdade” pode ser usada de mil maneiras. Isaiah Berlin (1909-1997) contribuiu com dois conceitos: o da Liberdade negativa e positiva.

A liberdade está estreitamente ligada à coação, isto é, àquilo que a nega ou limita. Somos mais livres na medida em que encontramos menos obstáculos para decidirmos a nossa vida como quisermos. Quanto menor for a autoridade exercida sobre a minha conduta, enquanto esta puder ser determinada de forma mais autónoma pelas minhas próprias motivações (necessidades, ambições, fantasias), sem interferência de vontades alheias, mais livre eu sou. É este o conceito “negativo” de Liberdade.

É um conceito mais individual do que social e absolutamente moderno. Nasce em sociedades que alcançaram um elevado nível de civilização e uma certa abastança. Pressupõe que a soberania do indivíduo deve ser respeitada, porque em última instância é ela a origem da criatividade humana, do desenvolvimento intelectual e artístico, do progresso científico. Se o indivíduo for sufocado, condicionado, mecanizado, a fonte de criatividade fica ceifada e o resultado é um mundo cinzento e medíocre, um povo de formigas ou robôs. Os que defendem esta noção de liberdade veem sempre o maior perigo no poder e na autoridade, e por isso propõem que, já que é inevitável eles existirem, que o seu raio de acção seja mínimo, só o indispensável para evitar o caos e a desintegração da sociedade, e que as suas funções sejam escrupulosamente reguladas e controladas.

Enquanto a liberdade “negativa” quer sobretudo limitar a autoridade, a “positiva” quer apoderar-se dela, exercê-la. Esta noção é muito mais social que individual, pois fundamenta-se na ideia de que a possibilidade que cada indivíduo tem de decidir o seu destino, está em grande medida subordinada a causas sociais, alheias à sua vontade. Como poderá um analfabeto disfrutar da liberdade de imprensa? Para que servirá a liberdade de viajar a quem vive na miséria? … Enquanto a liberdade “negativa” tem principalmente em conta o facto dos indivíduos serem diferentes, a “positiva” considera acima de tudo o que eles têm de semelhante. Ao contrário daquela, para a qual a liberdade é bem mais preservada quanto mais se respeitarem as variantes e os casos particulares, ela considera que há mais liberdade, em termos sociais,  quanto menos diferenças se manifestarem no corpo social, quanto mais homogénea for uma comunidade.

Todas as ideologias e crenças totalizadoras, finalistas, convencidas de que existe uma meta última e única para uma dada colectividade – uma nação, uma raça, uma classe ou a humanidade inteira -, partilham do conceito “positivo” da liberdade. Deste derivam inúmeros benefícios para o homem, e é graças a ele que existe a consciência social: saber que as desigualdades económicas, sociais e culturais são um mal corrigível e que podem e devem ser combatidas. As noções de solidariedade humana, de responsabilidade social e a ideia de justiça, enriqueceram-se e expandiram-se graças ao conceito “positivo” de liberdade, que também serviu para travar ou abolir iniquidades como a escravatura, o racismo, a servidão e a descriminação.

Mas este conceito de liberdade também gerou as suas iniquidades correspondentes. Todas as utopias sociais de direita e de esquerda, religiosas ou laicas, baseiam-se na noção “positiva”  de liberdade. Elas partem da convicção de que existe em cada pessoa, além do indivíduo particular e distinto, algo mais importante, um “eu” social idêntico, que aspira realizar um ideal colectivo, solidário, que será realidade num dado futuro e ao qual deve ser sacrificado tudo o que o impedir e obstruir. Por exemplo, aqueles casos particulares que são uma ameaça para a harmonia e homogeneidade social. Por isso, em nome dessa liberdade “positiva” – essa sociedade utópica futura, a da raça eleita triunfante, a da sociedade sem classes e sem Estado, ou a cidade dos bem-aventurados eternos – travaram-se guerras crudelíssimas, criaram-se campos de concentração, exterminaram-se milhões de seres humanos, impuseram-se sistemas asfixiantes e eliminou-se todo o tipo de dissidência ou crítica.

Estas duas noções de liberdade repelem-se reciprocamente, mas não faz sentido tentar demonstrar que uma é verdadeira e outra falsa, pois apesar de se servirem da mesma palavra, tratam de coisas diferentes. As liberdades “negativa” e “positiva” não são duas interpretações de um conceito, mas duas atitudes divergentes e irreconciliáveis sobre os fins da vida humana.

As sociedades que forem capazes de conseguir um compromisso entre estas duas formas de liberdade, conseguirão níveis de vida mais justos.

in "O apelo da Tribo" de Mario Vargas Llosa


domingo, 10 de dezembro de 2023

Deang


DEANG, é da Tailândia. A sua obra abrangente, explora diferentes materiais que vão da madeira, ao ferro, à pedra e à cerâmica. Por vezes figurativo, outras vezes abstracto, mas sempre com um olhar atento e determinado na sua forma de representar. 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Arte abstrata


Nunca pensei ser artista, embora mantenha veleidades de artesão. Artista, implica capacidade de inovar, de criar qualquer coisa que nunca tenha sido feita e o meu trabalho sempre foi aplicar o estado da arte às particularidades de cada indivíduo. Por isso, olho os artistas, com um misto de respeito e receio, por temer que a etiqueta de “arte” caia sobre embustes de toda a espécie.

No outro dia, dei com um pequeno texto sobre “A Desumanização da Arte e outros ensaios de estética” de Ortega e Gasset (1883-1955).  Transcrevo:

O livro abre com uma afirmação audaciosa: As massas odeiam a arte nova, porque não a entendem!. A razão é evidente: a arte romântica, que encadeou o século XIX, bem como o naturalismo, estavam ao alcance de todos, com a representação exaltada da vida sentimental e das suas efusões piegas e o tratamento clínico dos seus problemas sociais; mas as novas tendências da música, da pintura, do teatro e da literatura, que não aspiram a mostrar a vida tal como é, mas sim criar “outra” vida, exigem um esforço intelectual laborioso – uma mudança de perspectiva e da própria ideia do que é arte - , que “o grande rebanho filisteu” não está disposto a fazer. Portanto, deu-se um divórcio irremediável – um abismo – entre a arte nova, os seus cultores e defensores, e o resto da sociedade.

… O artista do nosso tempo, não quer que a sua arte apareça como uma ilustração da “vida verdadeira”; pelo contrário, aspira criar uma vida diferente da real. … Debussy desumanizou a música, Mallarmé a poesia, Pirandello o teatro, Joyce a literatura e, na pintura, “de pintar as coisas, passou-se a pintar ideias. O artista cegou para o mundo exterior e voltou a pupila para as passagens interna e subjectivas”.

 Uma das frases célebres do mesmo autor, é: “A clareza é a cortesia do filósofo!” e eu concordo com ele. 

Nestes tempos, cada vez mais, nos diferentes ramos da cultura, se impõem, sobre a linguagem comum, os jargões especializados e herméticos sob cuja sombra, muitas vezes, se esconde não a complexidade e a profundidade científica, mas sim a prestidigitação verborreica e o ardil”.