A palavra “liberdade” pode ser usada de mil maneiras. Isaiah
Berlin (1909-1997) contribuiu com dois conceitos: o da Liberdade negativa e positiva.
A liberdade está estreitamente ligada à coação, isto é,
àquilo que a nega ou limita. Somos mais livres na medida em que encontramos
menos obstáculos para decidirmos a nossa vida como quisermos. Quanto menor for
a autoridade exercida sobre a minha conduta, enquanto esta puder ser
determinada de forma mais autónoma pelas minhas próprias motivações
(necessidades, ambições, fantasias), sem interferência de vontades alheias,
mais livre eu sou. É este o conceito “negativo” de Liberdade.
É um conceito mais individual do que social e absolutamente
moderno. Nasce em sociedades que alcançaram um elevado nível de civilização e
uma certa abastança. Pressupõe que a soberania do indivíduo deve ser
respeitada, porque em última instância é ela a origem da criatividade humana,
do desenvolvimento intelectual e artístico, do progresso científico. Se o
indivíduo for sufocado, condicionado, mecanizado, a fonte de criatividade fica
ceifada e o resultado é um mundo cinzento e medíocre, um povo de formigas ou
robôs. Os que defendem esta noção de liberdade veem sempre o maior perigo no
poder e na autoridade, e por isso propõem que, já que é inevitável eles
existirem, que o seu raio de acção seja mínimo, só o indispensável para evitar
o caos e a desintegração da sociedade, e que as suas funções sejam escrupulosamente
reguladas e controladas.
…
Enquanto a liberdade “negativa” quer sobretudo limitar a
autoridade, a “positiva” quer apoderar-se dela, exercê-la. Esta noção é muito
mais social que individual, pois fundamenta-se na ideia de que a possibilidade que
cada indivíduo tem de decidir o seu destino, está em grande medida subordinada
a causas sociais, alheias à sua vontade. Como poderá um analfabeto disfrutar da
liberdade de imprensa? Para que servirá a liberdade de viajar a quem vive na miséria?
… Enquanto a liberdade “negativa” tem principalmente em conta o facto dos indivíduos
serem diferentes, a “positiva” considera acima de tudo o que eles têm de
semelhante. Ao contrário daquela, para a qual a liberdade é bem mais preservada
quanto mais se respeitarem as variantes e os casos particulares, ela considera
que há mais liberdade, em termos sociais,
quanto menos diferenças se manifestarem no corpo social, quanto mais
homogénea for uma comunidade.
Todas as ideologias e crenças totalizadoras, finalistas,
convencidas de que existe uma meta última e única para uma dada colectividade –
uma nação, uma raça, uma classe ou a humanidade inteira -, partilham do
conceito “positivo” da liberdade. Deste derivam inúmeros benefícios para o
homem, e é graças a ele que existe a consciência social: saber que as desigualdades
económicas, sociais e culturais são um mal corrigível e que podem e devem ser
combatidas. As noções de solidariedade humana, de responsabilidade social e a
ideia de justiça, enriqueceram-se e expandiram-se graças ao conceito “positivo”
de liberdade, que também serviu para travar ou abolir iniquidades como a
escravatura, o racismo, a servidão e a descriminação.
Mas este conceito de liberdade também gerou as suas
iniquidades correspondentes. Todas as utopias sociais de direita e de esquerda,
religiosas ou laicas, baseiam-se na noção “positiva” de liberdade. Elas partem da convicção de que
existe em cada pessoa, além do indivíduo particular e distinto, algo mais
importante, um “eu” social idêntico, que aspira realizar um ideal colectivo,
solidário, que será realidade num dado futuro e ao qual deve ser sacrificado tudo
o que o impedir e obstruir. Por exemplo, aqueles casos particulares que são uma
ameaça para a harmonia e homogeneidade social. Por isso, em nome dessa
liberdade “positiva” – essa sociedade utópica futura, a da raça eleita triunfante,
a da sociedade sem classes e sem Estado, ou a cidade dos bem-aventurados
eternos – travaram-se guerras crudelíssimas, criaram-se campos de concentração,
exterminaram-se milhões de seres humanos, impuseram-se sistemas asfixiantes e
eliminou-se todo o tipo de dissidência ou crítica.
Estas duas noções de liberdade repelem-se reciprocamente,
mas não faz sentido tentar demonstrar que uma é verdadeira e outra falsa, pois
apesar de se servirem da mesma palavra, tratam de coisas diferentes. As
liberdades “negativa” e “positiva” não são duas interpretações de um conceito,
mas duas atitudes divergentes e irreconciliáveis sobre os fins da vida humana.
As sociedades que forem capazes de conseguir um compromisso
entre estas duas formas de liberdade, conseguirão níveis de vida mais justos.
in "O apelo da Tribo" de Mario Vargas Llosa