- “Bons dias! Então como vai essa perna?”, perguntei, enquanto entrava pela enfermaria.
- “Melhor, doutor! Está quase boa, e já deve dar para andar!”, respondeu prazenteiro, com sotaque alentejano, o que mais uma vez me motivou a inquirir do seu passado.
- “O que é que você anda a fazer aqui por estes lados?”
. “Eu sou de cá! Sou de Perre! Estou a viver há mais de 40 anos no Alentejo! Fui para lá para a tropa e depois, arranjei mulher, e por lá fiquei! Agora, estou viúvo e vim ver as terras que foram dos meus pais, para dar um caminho àquilo. O doutor não quer comprar?”
- “Não! Obrigado! Eu já tenho terra que me chegue!”, respondi, temendo as capacidades de negociante daquele olhar ladino.
- “Mostre lá a perna!”
O Sr. Napumoceno tinha a pele crestada por um sol que só existe no mar e no Alentejo, que lhe marcava em longos sulcos o riso quase constante. Era magro e bom conversador, e as suas histórias enfiavam-se umas nas outras como um rosário, enquanto eu, com os dedos, lhe percorria o trajecto da veia trombosada.
- “Olhe lá homem! Quando isto melhorar, você vai ficar aqui ou vai para o Alentejo? É que você vai precisar de alguém para o apoioar!”, pergunto a medi-lo!
- “Não tenho problema, doutor! Eu cá me arranjo! Eu sou o homem dos sete instrumentos!”
E de imediato conta a história da sua vida, mil vezes contada.
- “Sabe, eu sou um homem muito rico! Eu tenho mais de 100 fatos, tenho mais de 200 pares de sapatos, e de todas as medidas!”, e elevava-se nos cotovelos para garantir que eu estava a ouvir direito, e confiante continuava.
- “Quando fui para o Alentejo, comprei um terreno pequeno e comecei a juntar aquilo que ninguém queria. Como me viam sempre roto e sujo, chamavam-me e diziam-me: - Oh Sr. Napumoceno, o meu marido morreu, tenho lá a roupa dele sem uso, passe por lá que eu dou-lhe um fato!, e eu ficava-lhe com a roupa do defunto. Outro tinha por lá uns arames e uns ferros ou uma mobília, que lhe estavam a empatar e eu levava aquilo de graça para o meu terreno. Como estas muitas outras que depois eu dividia e vendia a outros e, aos poucos, fui juntando muito dinheiro!
- Um dia, ainda os meus pais eram vivos, quis saber o que é que valia mais, se era o dinheiro se era a aparência. Vesti-me com a roupa mais rasgada que tinha, calcei umas botas com as solas descoladas e atadas com cordas, fui a Santa Apolónia e comprei um bilhete no Foguete para o Porto em 1ª classe.”
- “Nem há 10 minutos estava lá sentado, com todos aqueles chiques a olhar para mim, quando apareceu o revisor: -“ O senhor!, mostre-me o bilhete!” E eu, ali, deito a mão ao bolso do casaco e mostro-lho, Faz Favor!”. Sentou-se e imitou o antigo gesto, com quem lança o ás de trunfo para cima de uma manilha para de seguida reclinar-se e continuar: - “Fiz a viagem toda em 1ª, com toda a gente a olhar para mim! Depois, quando cheguei ao Porto, fui a todos os Bancos onde tinha dinheiro e entreguei um cheque de 300 contos para levantar. Só o Banco Espírito Santo é que me deu logo o dinheiro, os outros puseram-se com merdices, que iam perguntar ao Gerente e isto e aquilo. Vai daí, eu tirei o dinheiro que tinha nos outros e pus tudo no Espírito Santo!
- “Oh Sr. Napumoceno, você é um perigo! Mas agora como a perna está a melhorar, vai ter de arranjar quem o ajude pelo menos por mais 5 dias depois da alta.”
- “Esteja descansado doutor, que não vai haver problema.”
E eu mais não perguntei, por a história me ter convencido e pela multidão de visitas que vira à volta da sua cama no dia anterior.