Em 1980 - tinha vindo do Serviço Médico à Periferia, que era uma espécie de bodo às populações periféricas do país, com médicos recém-formados que, por um ano, se deslocavam para os locais onde os Serviços Médico-Sociais das Caixas de Previdência e as Casas do Povo (nos primórdios do SNS), tinham gravosa falta de médicos – Alto Minho, Alto Douro e Trás-os-Montes, … mas disso falarei mais tarde.
Nessa altura o meu trabalho semanal no Hospital de S. João ocupava-me as manhãs e uma só tarde/noite de 12h Urgência. As restantes tardes ficavam livres e era prática da maioria dos médicos ter um período de 2h na “Caixa” onde deveriam ver 12 doentes (6 à hora).
As outras possibilidades eram os Domicílios, 6 por dia numa pequena zona da cidade e o Serviço Permanente.
Neste faziam-se domicílios nocturnos, 3 noites por mês, das 20:00h às 08:00h, e um dia de fim-de-semana de 4 em 4 semanas, das 08:00h às 08:00h. Nas noites deviam ser atendidos até 10 doentes e no fim-de-semana até 20. Cobria todo o Porto, Gaia central e Matosinhos.
Esta última modalidade tinha para mim a vantagem de deixar os dias livres e de ter um pagamento em que só por se estar à chamada se recebia metade do vencimento que se pagava pelo período de 2h/dia nas Consultas sentado à secretária (3.300$00), sendo o restante só atribuído de acordo com o nº de doentes observados. Assim 30 + 20 = 50 X 33$00 = 1.650$00.
Este esquema seduziu-me e quando apareceu a primeira vaga agarrei-a. Devíamos ser para aí 12 nestas funções. O mais aborrecido era o fim-de-semana, por se ter de andar todo o dia de um lado para o outro, cumprindo a obrigação de dar resposta às solicitações em 3 horas. À noite era mais fácil, porque nunca havia 10 chamadas – habitualmente eram 4 ou 5.
Às 21 horas o telefonista que recebia as chamadas na Sede, telefonava-me:
- “Doutor tem 4! Um no Bairro de Aldoar, Bloco L, Entrada 256, casa 21, outro na Rua da Vitória, nº 315, outro na Rua da Banharia, nº 31 e outro na Rua da Vilarinha, nº 6. É melhor começar pela Banharia, que aquilo ali não é seguro e o familiar da doente fica na Rua Mouzinho da Silveira à sua espera e leva-o lá. Se começar por lá eu aviso-o para ficar até o Dr. passar!”.
– “OK!, começo por aí! Diga-lhe que vou num R5 azul e que paro perto! Ele deve identificar-me.!” - “E a Rua da Vilarinha, onde é?”
- “É a meio da Avenida da Boavista. O melhor é parar logo no início da Rua Antunes Guimarães e ir a pé que é uma das primeiras casas “
- "E o Bairro em Aldoar?”
– “Fica atrás do Magalhães Lemos.! Veja no Mapa. Vá por Antunes Guimarães e a meio vire à esquerda. Atenção que os Blocos têm as letras identificadoras lá em cima nas paredes laterais!”.
- ”Obrigado! Quando estiver adiantado, volto a telefonar!” Adeus!
Aí vou eu! Certifico-me que tenho o material necessário dentro da mala e saio em direcção ao rio! Ainda há muita gente na rua! Paro perto do local combinado e sou rapidamente identificado por um homem que está na esquina. Tacitamente nos entendemos. Sigo-o medindo os poucos autóctones que ainda circulam, na tentativa de identificar disfunção! Nada! Tudo gente normal! Chegamos à porta e subimos. É coisa banal. Uma febre de ontem! Garganta bem! Pulmões bem! Abdómen bem! Vai por gripe! Receita e, embora que há mais vida! Despeço-me, mas o homenzinho faz questão de me levar em segurança até ao carro! Obrigado!
Aí vou eu para a Rua da Victória que é já ali em cima, mas antes confirmo no Mapa da Cidade o melhor caminho, porque tem sentido único e tenho que entrar pela Cordoaria.
É uma rua estreita, de grande declive, com calçada portuguesa de pedras lisas e escorregadias que não dão confiança para conduzir. Vou aos soluços, a olhar os poucos números de porta visíveis e a adivinhar onde estacionar. Mesmo colocando a placa de “Médico em Serviço Urgente” vai ser difícil parar o carro, mas como há pouco trânsito por aqui a estas horas, hei-de arranjar qualquer lado. 193, 207, 213 … é aqui o 215. Estaciono metros à frente, encostado à porta de uma das casas. Dá para passar um carro, mas se alguém quiser sair da casa vai ter que andar de lado. Vão ser só uns minutos!.
Bato e espero. Bato outra vez! Sinto passos apressados a descer as escadas e, momentos depois abre-se a porta! Vem um homem de cabelo oxidado, que me cumprimenta e pergunta com voz efeminada:
-“É o médico?”
–“Sim!”.
Começamos a subir enquanto conta a história da criança, da febre, da mãe e do não repare doutor! No cimo das escadas está uma motocicleta encostada. Espanto-me, mas não pergunto como foi possível subir com ela aquelas escadas íngremes e estreitas onde meço um a um os degraus. Vamos ao quarto! Há uma mistura de cheiros a urina, leite e a casa fechada, que aumenta à medida que me aproximo da cama onde uma mulher com estigmas de alcoolismo tem ao colo uma criança magra, de uns dois anos, a arfar. A pouca luz não esconde o completo desalinho, com gavetas entreabertas, roupa em montes pelo chão e alguma pendurada.
Pego na criança a medo a medir-lhe a reacção. Arde em febre e imite um gemido pálido enquanto a observo! Não vale a pena perder mais tempo! Pego no Bloco de Receitas, escrevo uma carta ao Serviço de Urgência do Hospital de Sto António, e digo com ar decisivo:
-“Não receito nada! Têm de a levar sem demora ao Hospital de Sto António!”
Certifico-me que perceberam e apresso-me a sair, mas o homem interpela-me com aquela voz melíflua:
- Dr.! Já agora, o Dr. não me dá uma receita para umas hemorróides que eu tenho e que me andam a afligir!”
Olho para ele a medi-lo! Este gajo tem a filha a morrer de febre, provavelmente com uma pneumonia, queira Deus que não tenha uma meningite e, em vez de dar à perna para a pôr no Hospital, quer que o médico aqui apanhado à má fila lhe receite para as hemorróides! Tá quieto ó mau! Nem pensar!
-“Oh meu amigo, trate agora da sua filha e amanhã vá ao Posto Médico para que lhe vejam as hemorróides porque é preciso ver isso antes de receitar. Está bem!”
Despeço-me e, ala para a Rua da Vilarinha.
Algum trânsito a dificultar-me andar depressa, Rotunda da Boavista e toca a andar. Estou no sítio, há aqui um lugar, paro e vou a pé. Mais uns passos e dou rapidamente com a casa térrea. Toco. Espero! Toco outra vez.
–“Quem é?”,
“É o médico!”.
“Um momento!”
Abre a porta uma mulher nos seus 60 anos, bem gastos, desfazendo-se em desculpas.
– Oh Dr.! Não repare que ele é como os recos! Não repare! Eu bem lhe pedi para ele vestir um pijama, mas ele quer ficar assim como os recos, sem roupa!”
Leva-me através de cadeiras, mesinhas e vasos até ao quarto onde numa cama estreita, encostada à parede, me aguarda sentado e todo nu, um homem gordo e careca com uma grande barba branca.
–“Sr. Monteiro?!” Pergunto a tactear.
-“Oh! Doutor! Ainda bem que vem! Não consigo mijar! É uma dor do carago! Quer ver?” e a mulher a apressar-se a meter-se entre nós,
-“Oh! Homem não é preciso mostrar, o doutor já percebeu!”, enquanto o homem pegava num cano de uns 20 cm que estava ao lado da cama, e enfiava pelas pregas que se acumulavam por entre as pernas à procura de um pénis invisível. A mulher já lhe suplicava: “Oh homem pára!”, mas ele, surdo, queria mostrar a dor. Por fim, conseguiu localizá-lo lá bem no fundo, dando início a uma micção ardente pelo tubo em direcção a um pote de plástico, enquanto gania IIIIIHHH. IIIHHHH!!!!
E eu, com ar benevolente, a tentar acalmar a perplexidade da mulher com aquela exibição, dizia: - “Pronto, pronto! Já vi!, Deixe agora isso, Sr. Monteiro”, mas o homem, sem me ligar, cumpriu a totalidade daquele ritual, despejando de seguida, sob o meu olhar incrédulo, o conteúdo do penico num funil que estava no início de uma mangueira transparente, que corria fixada à parede e bordejando a cama até aos seus pés, onde a perfurava, penso que em direcção ao quintal da casa (não confirmei).
Com o ar mais natural possível, diagnostiquei infecção urinária e mediquei de acordo. Quando me apressava-me para sair, a senhora diligente correu para mim com o jarro da água para me ajudar a lavar as mãos na bacia do lavatório esmaltado. Para minha desgraça o jarro não tinha água e para solucionar o lapso, a senhora, que já não sabia o que fazer, disse enquanto fuzilava o companheiro com o olhar:
-“Espere um bocadinho, que eu vou buscar álcool para lavar as mãos!”, e de imediato foi buscar uma garrafa transparente com um líquido transparente que me derramou delicadamente mas mãos. Era aguardente. Esfreguei as mãos e limpei-as a uma toalha limpa que me ofereceu.
–“Boa Noite!. Tenho de me ir que ainda tenho muito que fazer. As melhoras!”
- “Muito obrigado! E desculpe!”, dizia a mulher aflita com toda aquela disfunção.
Agora é o Bairro do Aldoar! Mas antes há que gastar uns toalhetes que a divina providência me colocou no tablier do carro.
É 01:00h e ainda não liguei para o telefonista a perguntar se tem mais chamadas para mim! Detesto ir a Bairros! Há sempre cães vadios a quem as pessoas dão de comer e que ficam em matilha pela rua a rosnar a quem passa perto das casas que consideram seu território!
Perco-me 2 vezes na entrada! Está um nevoeiro cerrado! Mas parece-me que já cá estou. Há candeeiros com luzes apagadas e outros com luzes partidas, talvez por pedradas e vê-se mal o topo dos Blocos de 3 andares, onde estão os números que os identificam. Não anda ninguém na rua! Paro e saio para decifrar a letra deste. É o B! O L deve estar lá para a outra ponta. Continuo, talvez encontre alguém! Passo 5 Blocos e paro. Saio e não vejo letra nenhuma no lado do Bloco. Dou a volta – é o G! Entro outra vez no carro e ando mais dois Blocos! Ninguém! Do carro não consigo ver as letras. Estaciono e vou a pé. O que vale é que não está frio, não chove, nem vejo cães, mas estou a desesperar. Estico a cabeça para identificar este aqui e é … o L! É aqui! Tem 2 entradas. A primeira tem os números caídos, deixa ver aquela, 256. Uff!! Subo 2 lanços de escadas ás escuras por causa das luzes partidas. Com a lanterna de ver gargantas foco o nº da porta - Nº21. Toco à campainha! Estão acordados e vêm abrir a porta! É um casal de velhotes. A casa está desarrumada. Ela está doente e tem dificuldade em andar. Há 3 dias que chamou o médico dos domicílios e ele ainda não apareceu. Foi por isso que chamou o Permanente. A doença é a do costume, mas não tem medicamentos e está pior! Tento ver se há qualquer coisa de novo, verifico a medicação, faço o trabalho do médico domiciliário às 01:30h da noite e antes de sair pergunto se posso usar o telefone. Que sim! Ligo para o Telefonista:
-“Então há mais que fazer?”
-“Sim! Dr.! Tem de ir à 2ª Rua Particular do Castelo do Queijo nº 2. É mesmo no fundo do lado direito, antes daquele Café que lá há! Está a ver?. Mas tenha cuidado que a rua mal se nota!”
Despeço-me e meto-me á estrada.
Dou logo com a casa, até parece que já lá tinha ido. Cães a ladrar e uma voz a acalmá-los.
- “É o Sr. Dr.?”
- “Sim! Os cães estão presos?”
- “Pode entrar, que os cães não fazem mal! Por aqui por este carreirinho, cuidado não caia. Aqui tem um degrau! É a minha mulher que está na cama há dois dias com um febrão dos demónios. Dói-lhe a garganta e não consegue comer!”
Vá que é fácil! Abra a boca, deite-se, respire fundo! Vai tomar isto e aquilo! Adeus e até á próxima! E vão 5. Queira Deus que não haja mais! O melhor é voltar a telefonar antes de chegar a casa. Não! A esta hora só por azar é que voltavam a chamar.
Entro em casa sem fazer barulho. Vou a telefone e pergunto:
-“Há mais?”
-“Não!
-“Estou em casa e vou dormir!”
-“Ok! Até à semana!”
-“Até à semana!”