- Vais ter de me contar essa história outra vez. É que o amor aos 17 anos tem a imprevisibilidade dos grandes fenómenos naturais.
- Ela teria uns 19 anos e, embora já conversada, fora nessa tarde de fim de Outono, que nos inflamámos na Levada do João Mestre. Entre gestos e palavras, os nossos corpos exigiram uma proximidade impossível, e ela sugeriu o seu quarto naquela noite!
- Arriscado!?
- Nem muito. Ela vivia com os avós, era um rés-do-chão virado para as traseiras e para o monte, que havia sido cortado na terraplanagem da construção. Os pais estavam emigrados.
- E os avós?
- Dormiam no andar de cima e para a frente, e eu só entraria quando visse um sinal de luzes, pois isso significaria que eles estavam a dormir.
- E depois?
-Depois do jantar dei uma volta pela aldeia a fazer horas, e às onze meti-me pelo monte e ali fiquei intermináveis minutos, sentado a olhar a janela à espera. Por fim a luz acendeu e apagou quatro vezes e eu desci monte abaixo os cem metros que distavam da habitação.
- E via-se bem?
- Não! Havia pouco luar, mas como não havia arvoredo denso, não me foi difícil chegar ao terreno da casa, iniciado por um pequeno talude de pouco mais de metro e meio, que me pareceu fácil de saltar. Saltei, mas quando os pés chegaram ao chão, em vez de estancar, dei por mim a escorregar por um declive húmido e a afundar-me numa pasta nauseabunda, para só parar quando a tinha pelo pescoço.
- Então caíste mesmo numa fossa!
- Literalmente! Julguei que morria. Esbracejei longos segundos naquela lama, consegui agarrar umas giestas que cresciam ao pé e sair dali barrado de merda de cima a baixo.
- E depois, ... foste ter com a rapariga?
- Nem pensar! Eu queria ir para casa, a uns dois quilómetros, mas antes tinha de arranjar modo de me ver livre daquela pasta que me envolvia e que cheirava que tolhia. Para cúmulo, nesse dia estreava umas calças à boca-de-sino, que a minha mãe mandara fazer ao alfaiate.
- Que horas eram?
- Pouco passava da meia-noite. Lembrei-me do local onde as mulheres costumavam lavar a roupa e fui para lá. Entrei no rio vestido a ver se aquilo saía, mas o lodo que estava por debaixo da roupa era tanto que tive de a tirar toda.
- E puseste-te a lavar roupa à noite?
- Encontrei uns pedacitos de sabão rosa no meio das pedras junto à margem e esfreguei o mais que pude peça a peça, mas nem assim o cheiro desentranhava. Estive lá até às 3h, a pendurá-la nos varões da ponte à medida que a ia lavando. Quando a vesti, cheirava igual.
Meti-me ao caminho, e ainda me cruzei com o Bipa e o Pireca que vinham da estiva e que estavam à conversa, e que, à minha passagem, comentaram “ Chiça, que este vai perfumado!”, ao que o outro retorquiu “Deve estar podre!”. A minha sorte foi ser noite e ter passado bem ao largo, para eles não me reconhecerem.
Quando cheguei a casa, despi-me no coberto, meti a roupa toda num saco de plástico, escondida junto aos detergentes, passei-me pela mangueira, e pé ante pé, para não acordar ninguém, meti-me na cama.
...
Estava no primeiro sono, quando a minha mãe entrou quarto adentro e abriu a janela enquanto dizia: "A Rosa do Raul deve ter andado a despejar a fossa, que está um cheiro que não se pára nesta casa!".
E eu, embrulhado nos cobertores, esperei que ela saísse para tomar um banho de uma hora que põe fim a esta história! É que, nesse dia, nem lhe ouvi o "cheiras a desgraçado!" com que me mimoseava, quando sentia o cheiro a tabaco na minha roupa!