Para finalizar a visita aos "Ímpetos Naturais" do meu avô, reescrevo a sua "Serração da Velha", que nada tem a ver com algumas das histórias que agora se contam sobre o mesmo tema.
Ignoro se aquela tradição ainda perdura e desconheço a origem de tão selvático divertimento, que caía sobre os velhos que a gente moça considerava um estorvo, por serem semi-cegos, aleijados ou uma boca a mais sem qualquer préstimo.
Reza a tradição que um velho pai paralítico encavalitado no dorso do filho, exclamara angustiado ao vê-lo caminhar para sítio seu conhecido: - “Bem sei onde me levas, meu filho! Foi ali que eu despenhei meu velho pai, e é ali onde o teu filho te há-de conduzir!”
Nascesse onde nascesse, a verdade é que a tradição se foi conservando, alimentada por muitos dos que agora sofriam o ultraje, e todos os anos atingia os velhos pobres, porque quem tinha onde se arrumar, não era "velho", mas sim "pessoa de idade".
O dia da serração da velha não tinha registo especial no calendário, mas na quarta-feira que precedia o terceiro domingo da Quaresma, uma algazarra de rapazes, alimentada por um tradicionalista arrevesado, surgia do nada e incendiava a vila.
E no meu tempo era o Bairrão.
Ao bater das doze horas, repimpava-se debaixo de uma oliveira ao pé da Escola, esperando a saída dos rapazes e, como um perdigão a servir de chamariz, marcava a sua presença, cantando a melopeia sinistra: “Au! Au! Au! Venha a velha para a rua, que lhe quero dar com o pau!"
Nada mais era preciso para acordar na garotada os instintos animalescos e pô-los a pular, chiar e gritar de alegria. O Bairrão dera as suas ordens, e a revoada de garotos esvoaçara por ruas e becos para, passados minutos, redemoinhar em sua volta, mas agora cada uma com o seu cacete e novos iniciados.
Este pequeno Napoleão, tinha um plano tão bem delineado, que se corriam as ruas sem necessidade de voltar atrás, pois era conhecedor de todos os recantos onde se albergavam aqueles a quem o tempo fora arqueando as costas e posto uma grilheta nas pernas, e os que, no seu entender, deviam receber aquele baptismo, por já lhes pingar o nariz ou comerem com as gengivas.
Uma destas foi a Teresa forneira, que noutro tempo se postava na soleira da porta, de mãos nas ancas, a frisar a cara bolachuda de riso, perante a serração das vizinhas. Muito subtilmente, com a respiração suspensa, para a apanhar de surpresa, a malta endiabrada aproximou-se da porta. O chefe dera o sinal, e á uma, o som dos cacetes no degrau e na própria porta, junto com o de muitas matracas soou como o desabar de um telhado, enquanto a chiada da miudagem e voz roufenha dos matulões, repetia incessantemente - “Au! Au! Au! Venha a velha para a rua, que lhe quero dar com o pau!”. A forneira, qual grilo esfuracado por uma palhinha na toca, assomou ao postigo a cabeça embranquecida, acalorando a assuada, e de seguida, saíu com a pá do forno, armada em padeira de Aljubarrota.
Ao bater das doze horas, repimpava-se debaixo de uma oliveira ao pé da Escola, esperando a saída dos rapazes e, como um perdigão a servir de chamariz, marcava a sua presença, cantando a melopeia sinistra: “Au! Au! Au! Venha a velha para a rua, que lhe quero dar com o pau!"
Nada mais era preciso para acordar na garotada os instintos animalescos e pô-los a pular, chiar e gritar de alegria. O Bairrão dera as suas ordens, e a revoada de garotos esvoaçara por ruas e becos para, passados minutos, redemoinhar em sua volta, mas agora cada uma com o seu cacete e novos iniciados.
Este pequeno Napoleão, tinha um plano tão bem delineado, que se corriam as ruas sem necessidade de voltar atrás, pois era conhecedor de todos os recantos onde se albergavam aqueles a quem o tempo fora arqueando as costas e posto uma grilheta nas pernas, e os que, no seu entender, deviam receber aquele baptismo, por já lhes pingar o nariz ou comerem com as gengivas.
Uma destas foi a Teresa forneira, que noutro tempo se postava na soleira da porta, de mãos nas ancas, a frisar a cara bolachuda de riso, perante a serração das vizinhas. Muito subtilmente, com a respiração suspensa, para a apanhar de surpresa, a malta endiabrada aproximou-se da porta. O chefe dera o sinal, e á uma, o som dos cacetes no degrau e na própria porta, junto com o de muitas matracas soou como o desabar de um telhado, enquanto a chiada da miudagem e voz roufenha dos matulões, repetia incessantemente - “Au! Au! Au! Venha a velha para a rua, que lhe quero dar com o pau!”. A forneira, qual grilo esfuracado por uma palhinha na toca, assomou ao postigo a cabeça embranquecida, acalorando a assuada, e de seguida, saíu com a pá do forno, armada em padeira de Aljubarrota.
Mas, se nem o diabo quis nada com rapazes, como poderia a pobre livrar-se das garras daqueles gerifaltes? Em breve, semelhava um gafanhoto caído num formigueiro, de cabelos desgrenhados, tombando aqui e ali, até surgir o Manuel Calhaz com uma vergasta e pôr a chiar três ou quatro.
Esta debandada pouco afligiu o Bairrão, que logo reorganizou a tropa fandanga desmoralizada, e pôs o programa a cumprir-se, ou não tivesse sonhado com ele o ano inteiro.
A Genoveva Ceguinha, a Mónica Canhoto, a Antónia Bruxa, a Pirra, etc …, e até a Luísa do Moinho, que morava fora de portas, sofreram tratos de polé. Só a Gemida, uma eterna vítima, ficou ilesa nesse ano, pois quando tudo estava a postos, surgiu detrás da porta a sobrinho, que pôs tudo em debandada com um chicote. Também a Tirroca se livrou usando de esperteza. Conteve os rapazes com a promessa de ir buscar figos e castanhas, para dar tempo a aparecer pelas traseiras da casa o cunhado, que se fartou de dar castanha naqueles que apanhou mais à mão. Figos? Ninguém viu!
O som longínquo do “Au! Au! Au!, canalizado pela íngreme rua de S. Pedro, chegava agora aos ouvidos das almas penadas que armazenavam o sol no botaréu da praça. Eram os inválidos do rio, a quem o reumático e a miséria envelhecera precocemente, e que, irmanados na desgraça, faziam dali o seu ponto de reunião. Alertados pelo barulho, arrastaram as pernas adormecidas, antes que o pé ligeiro da galfarrada os apanhasse desprevenidos.
- “Agora rapaziada, vamos aos velhos da praça!”.
Todos, tinham debandado, só o Poita, melro de bico amarelo, ali ficou imóvel como um bonzo. Regaladinho de sol, ao sentir o trotar próximo dos rapazes, puxou o esburacado chapéu para os olhos e deixou descair os braços, como se tivesse adormecido. Observava o cerco a gravitar e, quando um mais atrevido o quis acordar daquela letargia, puxou-o de repelão e com uma sovela furou-lhe uma nádega, perante as gargalhadas dos assistentes e os saltos e guinchos do visado.
Agora era a vez de um iniciado.
De mãos enlaçadas sobre o ventre volumoso, o Zé Fadista tasquinhava, sentado à porta da taberna do lá vem um, estendendo a beiça à D. João VI, como se estivesse a desdenhar de alguém. O cerco fez-se. Os varapaus bateram. A canzoada ladrava e uivava, com as vozes enrouquecidas dos gritos de toda a tarde. O Fadista estremunhado, enfunou as bochechas com um sorriso bonacheirão, cruzou os braços, olhou em volta para os que gozavam de palanque, e encolheu os ombros como que a dizer: -“É justo! Eu fiz o mesmo na idade deles!”, na esperança de que a indiferença desarmasse aquela súcia, enquanto seguia fleumaticamente para dentro do balcão, no meio de um batuque de acordar os mortos, dos paus que lhe rabeavam os pés. E tudo teria terminado aí, se o Zé do Algarve, não tivesse aproveitado o motim para meter os cinco dedos no alguidar dos tremoços, a obrigá-lo a recorrer à celha de lavar os copos, sem que as suas mão flácidas pudessem impedir que o vaso seguisse a água, e na gargalhada, o bando perder o temor e intensificar o “Au! Au! Au!. Veio então à rua por uma pedra, e o furor redobrou. Cercaram-no. E, como se fosse à mercê de ressacas, levaram-no até meio da praça, onde chegou com as forças enfraquecidas e a faixa negra que lhe compunha o abdómen desmanchada. Um dos gerifaltes apanhou-lhe a ponta caída e fê-lo rodopiar como um pião até as calças lhe caíram. Um suor de agonia deslizou-lhe pela testa, humedeceram-se-lhe os olhos, na esperança de um auxílio, e a sua boca desdentada ficou incapaz de qualquer som.
Nesse ano a serração da velha terminou com dois estalos no Bairrão. Foi o último a que assisti e onde fui gloriosamente compensado com uma nádega furada.
Mea Culpa! Mea Culpa!
Esta debandada pouco afligiu o Bairrão, que logo reorganizou a tropa fandanga desmoralizada, e pôs o programa a cumprir-se, ou não tivesse sonhado com ele o ano inteiro.
A Genoveva Ceguinha, a Mónica Canhoto, a Antónia Bruxa, a Pirra, etc …, e até a Luísa do Moinho, que morava fora de portas, sofreram tratos de polé. Só a Gemida, uma eterna vítima, ficou ilesa nesse ano, pois quando tudo estava a postos, surgiu detrás da porta a sobrinho, que pôs tudo em debandada com um chicote. Também a Tirroca se livrou usando de esperteza. Conteve os rapazes com a promessa de ir buscar figos e castanhas, para dar tempo a aparecer pelas traseiras da casa o cunhado, que se fartou de dar castanha naqueles que apanhou mais à mão. Figos? Ninguém viu!
O som longínquo do “Au! Au! Au!, canalizado pela íngreme rua de S. Pedro, chegava agora aos ouvidos das almas penadas que armazenavam o sol no botaréu da praça. Eram os inválidos do rio, a quem o reumático e a miséria envelhecera precocemente, e que, irmanados na desgraça, faziam dali o seu ponto de reunião. Alertados pelo barulho, arrastaram as pernas adormecidas, antes que o pé ligeiro da galfarrada os apanhasse desprevenidos.
- “Agora rapaziada, vamos aos velhos da praça!”.
Todos, tinham debandado, só o Poita, melro de bico amarelo, ali ficou imóvel como um bonzo. Regaladinho de sol, ao sentir o trotar próximo dos rapazes, puxou o esburacado chapéu para os olhos e deixou descair os braços, como se tivesse adormecido. Observava o cerco a gravitar e, quando um mais atrevido o quis acordar daquela letargia, puxou-o de repelão e com uma sovela furou-lhe uma nádega, perante as gargalhadas dos assistentes e os saltos e guinchos do visado.
Agora era a vez de um iniciado.
De mãos enlaçadas sobre o ventre volumoso, o Zé Fadista tasquinhava, sentado à porta da taberna do lá vem um, estendendo a beiça à D. João VI, como se estivesse a desdenhar de alguém. O cerco fez-se. Os varapaus bateram. A canzoada ladrava e uivava, com as vozes enrouquecidas dos gritos de toda a tarde. O Fadista estremunhado, enfunou as bochechas com um sorriso bonacheirão, cruzou os braços, olhou em volta para os que gozavam de palanque, e encolheu os ombros como que a dizer: -“É justo! Eu fiz o mesmo na idade deles!”, na esperança de que a indiferença desarmasse aquela súcia, enquanto seguia fleumaticamente para dentro do balcão, no meio de um batuque de acordar os mortos, dos paus que lhe rabeavam os pés. E tudo teria terminado aí, se o Zé do Algarve, não tivesse aproveitado o motim para meter os cinco dedos no alguidar dos tremoços, a obrigá-lo a recorrer à celha de lavar os copos, sem que as suas mão flácidas pudessem impedir que o vaso seguisse a água, e na gargalhada, o bando perder o temor e intensificar o “Au! Au! Au!. Veio então à rua por uma pedra, e o furor redobrou. Cercaram-no. E, como se fosse à mercê de ressacas, levaram-no até meio da praça, onde chegou com as forças enfraquecidas e a faixa negra que lhe compunha o abdómen desmanchada. Um dos gerifaltes apanhou-lhe a ponta caída e fê-lo rodopiar como um pião até as calças lhe caíram. Um suor de agonia deslizou-lhe pela testa, humedeceram-se-lhe os olhos, na esperança de um auxílio, e a sua boca desdentada ficou incapaz de qualquer som.
Nesse ano a serração da velha terminou com dois estalos no Bairrão. Foi o último a que assisti e onde fui gloriosamente compensado com uma nádega furada.
Mea Culpa! Mea Culpa!
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