sábado, 28 de julho de 2012

Acidentes

-Então foi pescado?
-Não! Estava a fazer uma armadilha para um texugo. Prendeu-se o anzol numa espiga e quando o puxei, veio desembestado e espetou-se-me no nariz! Por sorte não veio ao olho!
-E o que é que você tem contra o texugo? O mais certo é ele andar-lhe a controlar os ratos e outra bicharada junto à casa!
-É que ele gosta mais de galinha que eu.
-Devia ter feito uma gaiola/armadilha em vez de um desses iscos. Deixava o bicho vivo e são, e você ainda se entretinha.  Depois, entregava-o ao SEPNA da GNR, para eles lhes darem o melhor destino.
Agora vamos tirar-lhe isso. Primeiro anestesiamo-lhe a ponta do nariz, depois empurramos o anzol até aparecer a ponta e corta-mo-la com um alicate de aço. Assim é fácil retirá-lo.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Desesperos

-Sr. Dr.! Nós somos de Cuide de Vila Verde. Fui com a minha mãe ao Centro de Saúde de Ponte da Barca por causa dos olhos, e a doutora mandou-me para o Hospital de Viana. Agora dizem-me que tenho de ir com ela para Braga, porque não há Oftalmologia nesta Urgência!?
Eu não tenho dinheiro para andar de um lado para o outro. Ainda por cima trouxe o meu pai, para o não o deixar sozinho em casa, e ele tem que tomar os remédios a horas.

É uma mulher bonita e cuidada, embora as mãos denotem intenso trabalho manual. Deve andar pelos quarenta e cinco anos. Os óculos modernos valorizam-lhe o sorriso, logo cortado pelas lágrimas de desespero, quando retoma a conversa. Diz que o pai foi construtor civil e que têm vindo a perder o pouco desafogo que já tiveram.

-Não casei para tomar conta dos meus pais. Agora, estou sozinha e com eles doentes. O meu pai teve alta há um mês, depois de uma operação ao pâncreas. Ainda por cima tiraram-lhe a isenção. Não deve ter sido por ter casa própria, porque isso não conta e os dois juntos pouco mais têm que 500 Euros de reforma, e eu, só posso trabalhar meio tempo, porque tenho de cuidar deles. A gente até desanima de andar no mundo!
Não me mande para Braga por favor! Eu volto segunda–feira. Ela aguenta. … Aguentas, não aguentas, mãe?
...

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Judeus

O papel dos judeus na vida intelectual ocidental no século XX, em especial nos Estados Unidos, foi efectivamente desproporcionado, indiciando uma vantagem de ordem cultural e genética. Representando cerca de 0,2% da população mundial e 2% da população americana, os judeus ganharam 22% dos Prémios Nobel, 20% da Medalhas Fields de Matemática e 67% das Medalhas John Clarke Bates para economistas com menos de quarenta anos de idade. Os judeus venceram 38% dos Óscares para Melhor Realização, 20% dos Prémios Pulitzer de não ficção e 13% dos Grammy de Carreira.

No pé da página 277 do livro "Civilização - O Ocidente e os Outros" de Niall Ferguson

... do mesmo livro, no pé da página 210:

Na realidade, os judeus ultrapassaram os protestantes em desempenho nos últimos cem anos, com rendimentos e taxas de auto emprego significativamente mais elevados. Dos chief officers das 100 maiores empresas da revista Fortune em 2003, pelo menos 10% eram judeus, como judeus representavam também 23% dos CEOs da Forbes 400. Além de serem desproporcionadamente bem-sucedidos a lançar firmas financeiras, os judeus também fundaram ou co-fundaram algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo, por exemplo, a Dell, a Google, a Intel e a Oracle.

Nota: Os judeus são ~13,2 milhões, dos quais ~5,5 milhões vivem em Israel e na Palestina e ~5,1 milhões nos EUA .

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Receita para um fim de dia

Chegue-se a casa, depois de um dia de trabalho, com um pouco de sede e a camisa colada às costas. Faça uma festa ao cão, cumprimente quem por lá se encontre, e suba ao quarto.

Retire a roupa da rua, lave a cara, os braços e passe-se-lhes uma toalha, sem se secar completamente. De seguida vista uma T-shirt, uns calções curtos e uns chinelos, tudo bem usado, para que o corpo os reconheça.

Depois desça sentindo o ar despentear os pelos das pernas e a entrar pelas frinchas dos chinelos. Passe pela cozinha e fatie fininho um pedacito de queijo Manchego e coloque-o numa tábua ao lado de um naco de pão alentejano.
Enquanto estes "comes" lhe estimulam os sucos, com a agilidade possível prepare o Mojito.
Num almofariz, deite o sumo de um limão, 10 folhas de hortelã e 1 colher de chá de açúcar. Esmague e verta para um copo bem grande, sem deixar ir as folhas. Associe 4cl de Rum, gelo moído e Água das Pedras bem fresca qb. Mexa suavemente. Decore com um raminho de hortelã e ponha-lhe uma palhinha.

Depois, pegue no copo e nos "comes" e sente-se no local mais confortável que por aí encontre, entremeando a bebida com o queijo e o pão, enquanto tenta identificar os sons que lhe andam por perto.
Quando acabar, espreguice-se, arrote e vai ver que mesmo que sejam seis da tarde, o dia começa de novo.

Em seguida, dê uma volta pelo lugar e com nova passagem pela cozinha, pois pode haver novidade para o jantar, principalmente se tiver filhas jovens que andem a ouvir atentamente o Jamie Oliver na TV.
Se tiver sorte pode participar na preparação de uma Tarte de Espinafres e queijo indo à horta buscar um molho de espinafres, enquanto a deixa entretida na sua preparação.

Ingredientes: massa filo, 300g espinafres, 4 ovos, 1 dL leite, 100g de miolo de camarão, 150g de queijo feta, salsa, tomilho, malagueta

Pega-se numa folha de papel vegetal, amassa-se e molha-se. Estende-se na banca e por cima coloca-se 1 folha da massa filo. Tempera-se com tomilho, pimenta e azeite. Espalha-se bem e coloca-se outra folha de massa por cima e assim sucessivamente, temperando cada folha individualmente. No final forra-se uma forma de tarte.
À parte salteia-se o miolo de camarão num refogado com azeite, 4 dentes de alho esmagados e 2 malaguetas. Quando cozinhados retira-se o miolo de camarão e salteiam-se as folhas dos espinafres no mesmo refogado durante cerca de 2 minutos.
À parte batem-se os 4 ovos, junta-se o leite e o queijo feta partido aos cubos e um raminho de salsa picada.
Junta-se tudo e coloca-se na forma previamente forrada com a massa. Cobre-se o recheio com as pontas da massa e leva-se ao forno a 180º durante cerca de 20 minutos.

Entretanto ponha a mesa e procure na garrafeira um vinho tinto que não o deixe ficar mal. Pode ser um Douro que liga bem, mas um bom Cabernet-Sauvignon não fica lhe fica nada atrás.
Volte à cozinha para saber novidades da sobremesa, para escolher os talheres.

Gelado
Pica-se muito bem 100g de chocolate de culinária, 2 mãos de grãos de café e uma mão de avelãs. Envolvem-se bolas de gelado de nata nesta mistura e leva-se ao congelador antes de servir.

Esqueça a crise!

sábado, 14 de julho de 2012

Urgências

-Sr. Serafim. Então você queria suicidar-se?
-Eu??!! Sr. Dr.!!? Não!!! ... Quem é que disse isso?
-Foram os Bombeiros que o encontraram na beira da linha do comboio!
-Não Sr. Dr.! Eu estava ali a descansar, quando apareceu aquele Sr. que me tirou uma fotografia e me acordou!

Tem 45 anos, veste umas jeans surradas e a camisola da selecção. É magro, escuro de cabelo grisalho e seco. Quando fala, assomam-lhe à boca os dois caninos superiores e a língua tropeça perdida naquele excesso de espaço.

-Ele disse que era fotógrafo, para eu não me preocupar. Deve ter sido ele que chamou a ambulância!
-Olhe lá! Aqui na ficha diz que você é de Ermesinde! O que é que anda a fazer por aqui?
- Foi para espalhar. ... Por causa dos problemas. ... É só problemas e um homem, às vezes, ... tem de ir p’ra longe!

Ontem meteu-se no primeiro comboio que passou e acabou aqui. Diz que comeu umas iscas e um copo de vinho e que dormiu debaixo da ponte, sem mais roupa que a que traz vestida. Nem um caixote de cartão encontrou. Quando o dia surgiu, subiu ao tabuleiro da ponte e deitou-se ao sol para aquecer.

-Oh Sr. Serafim! Você, ontem, não bebeu só um copo! E agora? Como é que vai para casa?
-Vou de comboio outra vez.
-E você tem dinheiro?
-Tenho, sim senhor!
-Quanto?
-OooHhhh!, olha-me desconfiado. 

Diz que foi casado, e que deixou a mulher porque ela era uma bêbada.
-Às vezes, eu fazia um risquinho no garrafão e depois era vê-lo a ir sempre “ó p’ra baixo! Um homem assim não pode viver! ... Carago!
Está desempregado e vive em casa da mãe. Tem o Rendimento Social de Inserção. Roubaram-lhe o telemóvel, mas sabe o nº de telefone da casa. Telefono.

- Está?! Aqui é do Hospital! É de casa da mãe do Sr. Serafim? É para informar que ele está aqui no Serviço de Urgência, por causa de um pouco de vinho a mais, mas está bem! Querem vir cá buscá-lo?
- O quê? ... Como é que ele foi aí parar!
- Diz que veio de comboio!
- Ah foi? ... Então que se arranje! ... Ele vai dar cabo de todos nós. ... Tenho-o aqui em casa por favor, e todos os dias arranja problemas! … Pois é! ... Ele foi levantar ontem o dinheiro do RSI! … Ele que se arranje! ... Oh meu senhor! Ele que se arranje! ... Esse meu filho é a minha desgraça!
- Então eu vou chamar a Polícia para o meter no comboio e a Sra. fala com alguém para ir lá buscá-lo. Está bem!?

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O estado da Nação

Todos nós temos fragilidades, dúvidas e inseguranças, a nível pessoal e a nível profissional, facilmente captadas nos desabafos e nos pequenos gestos do dia a dia.

As Instituições não deveriam ter este problema, por estarem acima dos indivíduos, vivendo de saberes acumulados dos muitos que para elas contribuíram, ao mesmo tempo que lhes tamponavam as deficiências.

É assim nos países civilizados, onde as mais prestigiadas Universidades, cumprem normas de longas décadas, para não se perderem por um qualquer erro de um dos seus elementos, por mais notável que ele seja.
Isto para dizer que nenhuma, com um mínimo de responsabilidade, poria na mão de dois ou três dirigentes, dar benefícios de ocasião a políticos ou criaria cursos sem saída profissional para obter vantagens económicas.

Nós portugueses, que há quase 40 anos andamos a dizer que queremos ser uma democracia moderna, nunca cuidámos das nossas Instituições. Deixámos que elas fossem tomadas pelos políticos, como se isso fosse uma coisa normal, e agora queixamo-nos da sua falta de credibilidade.

Até as carreiras médicas, que davam alguma garantia de independência, foram lenta e progressivamente descaracterizadas, até pelos próprios médicos quando lhe acenaram com algumas benesses cheias de racionalizações.

Nos Hospitais foram colocadas administrações de nomeação política, que por sua vez tratam de nomear direcções de serviço "a seu jeito", deitando mão de qualquer razão que o momento lhes torna premente. A incompetência e o voluntarismo tomam o poder, os políticos e o grupo de oportunistas, que habitualmente os acompanha, trata do seu benefício, e estranha-se quando surgem as disfunções.

É este o estado da Nação.
Temos demasiados Varas, Relvas, presidentes de nomeação política, e elegemos demasiados populistas sem seriedade.
Faltam-nos Instituições responsáveis, independentes e com democracia interna e não geridas por um qualquer que se sente um excêntrico do Euromilhões, por ter sido nomeado pelo político de serviço.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Cavatina

STANLEY MYERS (1930 – 1993) Ana Vidović (1980 - ... ) Croácia. Tema do filme "The Deer Hunter" (1978), de Michael Cimino, por John Williams (1941 - ...)Austrália.

sábado, 7 de julho de 2012

Desconfortos

Assim, curto e explicado.
Pena que a solução não esteja no remédio.
Aqui como na política, os remédios ajudam, mas são os hábitos que mais condicionam os desconfortos!

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Trás-os-Montes - 1979

1979. “Para cá do Marão mandam os que cá estão!”
Talvez fosse verdade, porque só a obrigação levava alguém por aquelas terras de estradas de náuseas e escarpas de vertigem, de frios e calores traiçoeiros.

Abril de 1974 abrira-lhe uns postigos por onde fracas brisas se afoitavam, despenteando cabeças e milheirais, sempre no temor de serem engolidas nos vazios da montanha, pouco interessada no bucólico das aldeias ou na pujança agreste das suas gentes.

Trás-os-Montes era terra de passagem. Para a Europa, para um domingo de vinhos e enchidos ou para o funeral de um parente lá esquecido. Não era terra para se ficar. Tinha ritmos diferentes. Havia servos e senhores. Reverências e mordomias e rostos de olhos baixos a revelar uma disponibilidade ancestral para o sofrimento.
Era terra de poucas urgências, mesmo em caso de morte, porque ela era certa e parca a crença em contrariá-la, e todos assim a entendiam, dos doentes ao médico do hospital.

Os nomes estavam lá, escritos para quem os soubesse ler, mas as funções "tinham dias". Umas vezes sim, outras assim-assim, outras a rasar o inacreditável. As instituições viviam dos poucos resistentes que lhe davam sentido, sem,  no entanto, deixarem de sacralizar as refeições, pois o estômago em tempo algum podia ser esquecido.

O Hospital regia-se pela disponibilidade de cada um e por uma “comissão instaladora”, sem médicos ou enfermeiros. Mantinha a porta aberta e uma placa a orientar para um Serviço de Urgência, mesmo que o médico estivesse ausente.
Era o segundo ano do Serviço Médico à Periferia, que para ali atirara uma revoada de jovens cheios de entusiasmo e energia para agarrar a oportunidade de ganhar experiência e conhecer mundo. Uns mais afoitos, outros cheios de timidez, mas todos assumindo o seu papel nos primórdios do SNS, contrariando a normal resistência dos interesses instalados por quem ali era senhor.

Adolfo Miranda Nobre era um inconformado. Habituado aos ritmos da grande cidade, impacientavam-no os empecilhos à sua actividade clínica.
-"Tenha calma!" Aconselhava-o, nesse dia, o enfermeiro no Serviço de Urgência. -"O Dr. Fragoso só vai chegar ao fim da manhã, depois de passar pela Clínica! Está à beira da reforma. Às vezes bebe uns copitos a mais e nem sempre as coisas lhe saem certo. Pode vir tarde, mas vem sempre! Já foi director do Hospital!".
-Está bem! Mas, por favor, avise-me quando ele chegar. É quase meio-dia e eu pedi para o chamarem ainda não eram dez horas, e há aí um homem a precisar de uma cirurgia urgente!".

Lá fora o Inverno ameaçava. Um vento gélido uivava pelo vale, a obrigar os mais pintados a resguardos, no temor de que uma ponta de ar não descambasse em pneumonia, enquanto, no quente do Hospital, o Dr. Adolfo media-se com as doenças, feliz por lhes encontrar soluções.
Tentara ser exemplo, cumprindo horários e mostrando disponibilidade, mas cedo notara que essa cordialidade fora entendida, por alguns, como fraqueza e, logo na sua primeira semana, tivera de pôr fora da sala um maqueiro que entrara a chupar um gelado e sentira má vontade ao recusarem-lhe uma radiografia por não ter o aval de um dos médicos da casa. Também a algazarra no refeitório lhe pareceu estranha, com diárias fanfarronices de novos-ricos, como se o 25 de Abril os tivesse libertado da escravidão num estalar de dedos.
Metido no seu mister, tropeçava amiúde em disfunções. De umas ria-se pelo insólito, com outras preocupava-se.

Eram quase duas da tarde quando a porta da Urgência se abriu e entrou um velho com um pesado sobretudo cinzento. Desapertou o cachecol e, enquanto tirava as luvas, dirigiu-se ao enfermeiro, que solícito assumiu as cortesias. -“Bom dia Dr. Fragoso! Como está?”, disse, recebendo-lhe o chapéu, num gesto quase automático de anos de familiaridade e conivências.

O Dr. Fragoso era um homem magro, que a muita roupa compunha vergando-lhe os joelhos. As mãos cianosadas e o lábio inferior ligeiramente pendente, assinalavam um corpo bem regado pelos sucos das margens penteadas do Douro.
Era de poucas falas, como se muitos dramas lhe tivessem criado uma carapaça à prova de qualquer dor. A terra moldara-o, sobrepondo vinhedos à sua anterior preocupação com a medicina. O seu dia-a-dia era uma rotina. Acordar, tomar o pequeno-almoço, passar os olhos pela contabilidade da Clínica, ir ao Hospital para fazer o que lhe apetecesse, e por fim, passar pela quinta, para garantir que o vinho ombreasse com os demais. Na escala de urgência, estava de dia sim dia não.

– "Bom dia!" Respondeu, esfregando as mãos.
-"Dr. Fragoso! Leu os jornais? Os meus pêsames! Hoje desvalorizaram mais uma vez o escudo!", disse o enfermeiro, ignorando que ele não tinha desses temores. Os contactos em Lisboa, quer directos, quer por intermédio do seu irmão, figura de primeira página dos jornais, davam-lhe a garantia de que o que perdesse hoje, resolveria amanhã com meia dúzia de telefonemas.
-"Dr. ! Isso é que vai ser um rombo na sua conta do banco!", insistiu, desiludido com a indiferença, como a espicaçá-lo.
O velho levantou a cabeça que o frio ainda mantinha nos ombros e, benevolente, respondeu: -"Olhe! Vá ali ao Corgo. Tire-lhe um balde de água. Vê diferença?", e medindo os sorrisos, sentou-se, a folhear um dos processos da secretária.
Ao lado um maqueiro justificava-o: -"Ainda me lembro, de há uns vinte anos, quando o Dr. era médico das minas de Jales. Era um corre-corre de camionetas cheias de mineiros para fazer radiografias na sua Clínica. Aquilo é que era facturar! E quando era cirurgião da CP? Vinha gente de todo o lado para a sua Clínica! Era preciso um saco de boca de larga para não deixar fugir nada!". E a memória do Dr. Fragoso levou-lhe ao rosto o esboço de um sorriso.
Esfregou mais uma vez as mãos, cheirou-as e cruzou os dedos. Depois perguntou para ninguém: -"Parece que há aí um doente para eu ver!".

O Dr. Adolfo, que até aí se mantivera calado, sentiu-lhe a distância, e respondeu: - "Está tudo escrito no processo que tem nas mãos!", mas reconsiderou e continuou: -"Temos aqui um doente de 45 anos com febre e dor abdominal, com 48 horas de evolução. Chegou esta manhã desidratado. Deve ter uma peritonite aguda a necessitar de uma cirurgia urgente!"
O Dr. Fragoso olhou-o de soslaio, como a questionar-lhe as capacidades. Depois levantou-se e dirigiu-se à maca onde o homem tremia, de olhos encovados, expectante. Pôs-lhe as mãos sobre o ventre, sem tirar o cobertor de papa onde o doente se embrulhava, carregou ligeiramente, enquanto lhe olhava para o rosto e ordenou: -"Pode ir para a enfermaria!". Depois, virou-se para o jovem médico, que aguardava, e como quem está habituado a mandar e a ser obedecido disse-lhe, peremptório: -"Tem aí a folha de terapêutica? Então escreva!"

Há alturas na vida em que somos de tal modo surpreendidos, que a inibição nos tolhe e nos faz autómatos nas mãos de quem está acima.
Adolfo quase que recusou a ordem, mas um laivo de bom senso, inibiu-o. Podia ter-lhe dito que a partir desse momento se considerava desligado do doente e que não sendo a terapêutica de sua orientação a não deveria escrever, mas pesou o incómodo do conflito e sentou-se.
Pegou na caneta, puxou a folha de papel e ouviu uma voz rouca ditar-lhe: -"Soro 1000 cm3. Subcutâneo". Depois um pouco mais alto. -"Escreva subcutâneo por extenso, senão os enfermeiros põem-no endovenoso!" E novamente em tom normal. -"Águas com Cerinutrina. Na linha de baixo escreva Garalone de manhã e Rifocina à noite. É tudo!"

Acabou de escrever e parou, sem que o tempo fizesse parar a estupefacção e lhe permitisse um gesto que o não conotasse com o que ali se passava. Sentiu um calor envolvê-lo e um suor frio a escorrer por todo o tronco molhando-lhe a camisa e, sem melhor solução, virou-lhe a página e disse: -"Dr. Fragoso! É melhor ser o Sr. a assinar, não vão as enfermeiras questionar-me por esta terapêutica!"

E ele assinou.