1979. “Para cá do Marão mandam os que cá estão!”
Talvez fosse verdade, porque só a obrigação levava alguém por aquelas terras de estradas de náuseas e escarpas de vertigem, de frios e calores traiçoeiros.
Abril de 1974 abrira-lhe uns postigos por onde fracas brisas se afoitavam, despenteando cabeças e milheirais, sempre no temor de serem engolidas nos vazios da montanha, pouco interessada no bucólico das aldeias ou na pujança agreste das suas gentes.
Trás-os-Montes era terra de passagem. Para a Europa, para um domingo de vinhos e enchidos ou para o funeral de um parente lá esquecido. Não era terra para se ficar. Tinha ritmos diferentes. Havia servos e senhores. Reverências e mordomias e rostos de olhos baixos a revelar uma disponibilidade ancestral para o sofrimento.
Era terra de poucas urgências, mesmo em caso de morte, porque ela era certa e parca a crença em contrariá-la, e todos assim a entendiam, dos doentes ao médico do hospital.
Os nomes estavam lá, escritos para quem os soubesse ler, mas as funções "tinham dias". Umas vezes sim, outras assim-assim, outras a rasar o inacreditável. As instituições viviam dos poucos resistentes que lhe davam sentido, sem, no entanto, deixarem de sacralizar as refeições, pois o estômago em tempo algum podia ser esquecido.
O Hospital regia-se pela disponibilidade de cada um e por uma “comissão instaladora”, sem médicos ou enfermeiros. Mantinha a porta aberta e uma placa a orientar para um Serviço de Urgência, mesmo que o médico estivesse ausente.
Era o segundo ano do Serviço Médico à Periferia, que para ali atirara uma revoada de jovens cheios de entusiasmo e energia para agarrar a oportunidade de ganhar experiência e conhecer mundo. Uns mais afoitos, outros cheios de timidez, mas todos assumindo o seu papel nos primórdios do SNS, contrariando a normal resistência dos interesses instalados por quem ali era senhor.
Adolfo Miranda Nobre era um inconformado. Habituado aos ritmos da grande cidade, impacientavam-no os empecilhos à sua actividade clínica.
-"Tenha calma!" Aconselhava-o, nesse dia, o enfermeiro no Serviço de Urgência. -"O Dr. Fragoso só vai chegar ao fim da manhã, depois de passar pela Clínica! Está à beira da reforma. Às vezes bebe uns copitos a mais e nem sempre as coisas lhe saem certo. Pode vir tarde, mas vem sempre! Já foi director do Hospital!".
-Está bem! Mas, por favor, avise-me quando ele chegar. É quase meio-dia e eu pedi para o chamarem ainda não eram dez horas, e há aí um homem a precisar de uma cirurgia urgente!".
Lá fora o Inverno ameaçava. Um vento gélido uivava pelo vale, a obrigar os mais pintados a resguardos, no temor de que uma ponta de ar não descambasse em pneumonia, enquanto, no quente do Hospital, o Dr. Adolfo media-se com as doenças, feliz por lhes encontrar soluções.
Tentara ser exemplo, cumprindo horários e mostrando disponibilidade, mas cedo notara que essa cordialidade fora entendida, por alguns, como fraqueza e, logo na sua primeira semana, tivera de pôr fora da sala um maqueiro que entrara a chupar um gelado e sentira má vontade ao recusarem-lhe uma radiografia por não ter o aval de um dos médicos da casa. Também a algazarra no refeitório lhe pareceu estranha, com diárias fanfarronices de novos-ricos, como se o 25 de Abril os tivesse libertado da escravidão num estalar de dedos.
Metido no seu mister, tropeçava amiúde em disfunções. De umas ria-se pelo insólito, com outras preocupava-se.
Eram quase duas da tarde quando a porta da Urgência se abriu e entrou um velho com um pesado sobretudo cinzento. Desapertou o cachecol e, enquanto tirava as luvas, dirigiu-se ao enfermeiro, que solícito assumiu as cortesias. -“Bom dia Dr. Fragoso! Como está?”, disse, recebendo-lhe o chapéu, num gesto quase automático de anos de familiaridade e conivências.
O Dr. Fragoso era um homem magro, que a muita roupa compunha vergando-lhe os joelhos. As mãos cianosadas e o lábio inferior ligeiramente pendente, assinalavam um corpo bem regado pelos sucos das margens penteadas do Douro.
Era de poucas falas, como se muitos dramas lhe tivessem criado uma carapaça à prova de qualquer dor. A terra moldara-o, sobrepondo vinhedos à sua anterior preocupação com a medicina. O seu dia-a-dia era uma rotina. Acordar, tomar o pequeno-almoço, passar os olhos pela contabilidade da Clínica, ir ao Hospital para fazer o que lhe apetecesse, e por fim, passar pela quinta, para garantir que o vinho ombreasse com os demais. Na escala de urgência, estava de dia sim dia não.
– "Bom dia!" Respondeu, esfregando as mãos.
-"Dr. Fragoso! Leu os jornais? Os meus pêsames! Hoje desvalorizaram mais uma vez o escudo!", disse o enfermeiro, ignorando que ele não tinha desses temores. Os contactos em Lisboa, quer directos, quer por intermédio do seu irmão, figura de primeira página dos jornais, davam-lhe a garantia de que o que perdesse hoje, resolveria amanhã com meia dúzia de telefonemas.
-"Dr. ! Isso é que vai ser um rombo na sua conta do banco!", insistiu, desiludido com a indiferença, como a espicaçá-lo.
O velho levantou a cabeça que o frio ainda mantinha nos ombros e, benevolente, respondeu: -"Olhe! Vá ali ao Corgo. Tire-lhe um balde de água. Vê diferença?", e medindo os sorrisos, sentou-se, a folhear um dos processos da secretária.
Ao lado um maqueiro justificava-o: -"Ainda me lembro, de há uns vinte anos, quando o Dr. era médico das minas de Jales. Era um corre-corre de camionetas cheias de mineiros para fazer radiografias na sua Clínica. Aquilo é que era facturar! E quando era cirurgião da CP? Vinha gente de todo o lado para a sua Clínica! Era preciso um saco de boca de larga para não deixar fugir nada!". E a memória do Dr. Fragoso levou-lhe ao rosto o esboço de um sorriso.
Esfregou mais uma vez as mãos, cheirou-as e cruzou os dedos. Depois perguntou para ninguém: -"Parece que há aí um doente para eu ver!".
O Dr. Adolfo, que até aí se mantivera calado, sentiu-lhe a distância, e respondeu: - "Está tudo escrito no processo que tem nas mãos!", mas reconsiderou e continuou: -"Temos aqui um doente de 45 anos com febre e dor abdominal, com 48 horas de evolução. Chegou esta manhã desidratado. Deve ter uma peritonite aguda a necessitar de uma cirurgia urgente!"
O Dr. Fragoso olhou-o de soslaio, como a questionar-lhe as capacidades. Depois levantou-se e dirigiu-se à maca onde o homem tremia, de olhos encovados, expectante. Pôs-lhe as mãos sobre o ventre, sem tirar o cobertor de papa onde o doente se embrulhava, carregou ligeiramente, enquanto lhe olhava para o rosto e ordenou: -"Pode ir para a enfermaria!". Depois, virou-se para o jovem médico, que aguardava, e como quem está habituado a mandar e a ser obedecido disse-lhe, peremptório: -"Tem aí a folha de terapêutica? Então escreva!"
Há alturas na vida em que somos de tal modo surpreendidos, que a inibição nos tolhe e nos faz autómatos nas mãos de quem está acima.
Adolfo quase que recusou a ordem, mas um laivo de bom senso, inibiu-o. Podia ter-lhe dito que a partir desse momento se considerava desligado do doente e que não sendo a terapêutica de sua orientação a não deveria escrever, mas pesou o incómodo do conflito e sentou-se.
Pegou na caneta, puxou a folha de papel e ouviu uma voz rouca ditar-lhe: -"Soro 1000 cm3. Subcutâneo". Depois um pouco mais alto. -"Escreva subcutâneo por extenso, senão os enfermeiros põem-no endovenoso!" E novamente em tom normal. -"Águas com Cerinutrina. Na linha de baixo escreva Garalone de manhã e Rifocina à noite. É tudo!"
Acabou de escrever e parou, sem que o tempo fizesse parar a estupefacção e lhe permitisse um gesto que o não conotasse com o que ali se passava. Sentiu um calor envolvê-lo e um suor frio a escorrer por todo o tronco molhando-lhe a camisa e, sem melhor solução, virou-lhe a página e disse: -"Dr. Fragoso! É melhor ser o Sr. a assinar, não vão as enfermeiras questionar-me por esta terapêutica!"
E ele assinou.