Um pouco de História ajuda-nos sempre a entender o presente,
principalmente porque cem anos não é nada na evolução de uma espécie.
Uso o livro “Civilization” de Niall Ferguson, publicado em
2011 e editado em Portugal pela Editora Civilização, em Fevereiro de 2012.
Niall Fergurson é professor de História na Universidade de Harvard
A guerra que começou em 1914 não foi uma guerra entre meia dúzia
de Estados europeus quezilentos. Foi uma guerra entre impérios mundiais.
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Em 1917, a França estava à beira de perder a Primeira Guerra Mundial. Onde deveria pedir ajuda? A resposta foi: África.
Apesar dos súbditos africanos da França não terem direito à plena cidadania francesa, eram considerados elegíveis para pegar em armas em defesa da pátria. Contudo, em todas as colónias - Senegal, Congo, Sudão, Daomé, Costa do Marfim - os africanos declinaram responder ao apelo. A maioria acreditava que o recrutamento para o exército equivalia a uma sentença de "morte certa". O único homem que parecia capaz de dar a volta à situação era Blaise Diagne, o primeiro africano eleito para a Assembleia Nacional Francesa. Estaria ele disposto a regressar ao Senegal como uma espécie de sargento recrutador glorificado?
Diagne viu a possibilidade de fechar um negócio com o primeiro-ministro francês, George Clémenceau, e insistiu que todo o africano que se apresentasse para combater, recebesse a cidadania francesa e que os tirailleurs veteranos ficassem isentos de impostos e tivessem direito a uma pensão decente.
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Em Abril de 1917, Demba Mboup e os seus camaradas do Corpo Colonial
Francês, integrado no Sexto Exército do general Charles Mangin e no Décimo Exército
do general Denis Duchêne, tinham pela frente as posições poderosamente fortificadas
do Sétimo Exército alemão, comandado pelo general Hans von Boehn, no Caminho das
Damas – assim chamado por ter sido utilizado pelas duas filhas de Luís XV, no século
XVIII.
O comandante francês, o general Robert Nivelle, acreditava ser
o homem que iria conseguir o tão ansiado rompimento na Frente Ocidental. Os Franceses
construíram 450km de via férrea para apoiar a ofensiva com 872 comboios carregados
de munições. Ao longo de uma frente de 40km, foi concentrado para o assalto
mais de um milhão de homens. Dias e dias de barragens de artilharia deveriam
amaciar os Alemães. No dia 16 de Abril, às 6h00, as tropas coloniais começaram a
subir as colinas que a chuva e o granizo tinham transformado em lamaçais
escorregadios. Mangin colocara os Senegaleses na primeira vaga, quase de
certeza com o intuito de poupar vidas francesas. Segundo o tenente-coronel Bedieuvre,
comandante do 58º Regimento de Infantaria Colonial, os africanos eram “inquestionavelmente
e acima de tudo tropas de assalto soberbas que permitem poupar as vidas dos
brancos, os quais, avançando atrás deles, exploram o seu sucesso e organizam as
posições que eles conquistam”.
Nas trincheiras alemãs, o capitão Reinhold Eichacker
observou horrorizado:
Os escuros pretos do Senegal, o gado para o matadouro da
França. Centenas de olhos de combatentes, fixos, ameaçadores, mortíferos.
Avançaram. Primeiro sozinhos, muito espaçados. Às apalpadelas, como os tentáculos
de uma lula horrível. Ávidos, sôfregos, vacilando e por vezes desaparecendo na
sua nuvem. Tipos fortes, selvagens, de dentes arreganhados como panteras. Os olhos,
monstruosamente arregalados, acesos e injectados de sangue, eram horríveis.
Avançaram como uma parede móvel, negra e sólida, erguendo-se
e caindo, oscilante e palpitante, impenetrável, infindável.
“reduzir a alça! Fogo à vontade! Apontem bem!” – as minhas
ordens foram concisas e claras.
Os primeiros negros caíram a meio da corrida, em cima do
nosso arame farpado, dando saltos mortais como palhaços num circo. Grupos inteiros
evaporaram-se. Corpos desmembrados, terra pegajosa e pedras despedaçadas
misturaram-se numa desordem selvagem. A nuvem negra parou, vacilou, cerrou
fileiras e continuou a aproximar-se, irresistível, esmagadora, devastadora!
De súbito, uma parede de chumbo abateu-se sobre os atacantes
e o arame farpado mesmo à frente das nossas trincheiras. Um martelar e
chocalhar, um estalar e bater, um crepitar ensurdecedor atirou com tudo por
terra com um clamor de furar os tímpanos e destroçar os nervos. As nossas
metralhadoras estavam a apanhar os negros de flanco! Passaram como uma mão
invisível sobre os homens, atirando-os por terra, estropiando-os e fazendo-os
aos bocados! Os negros caíam sozinhos, em linha, em fila, ao monte. Ao lado uns
dos outros, em cima uns dos outros.
…
Blaise Diagne protestou contra o desperdício negligente dos
seus compatriotas mas regressou ao Senegal em busca de novos recrutamentos,
desta vez armado com a garantia de que o combate, além da cidadania francesa, lhes
valeria a Cruz de Guerra. No dia 18 de Fevereiro de 1918, Clemenceau defendeu o
retomar do recrutamento militar perante um grupo de senadores, deixando perfeitamente
claro o modo como os Franceses viam os Senegaleses:
“Tenho um respeito infinito por estes valentes negros, mas
prefiro ver dez negros mortos a ver um francês, porque julgo que já morreram
suficientes franceses e que há que sacrificá-los o menos possível”.
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Isto passou-se em França, país defensor dos direitos humanos - da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
Ao lado, na Alemanha Imperial o alemão médio via os africanos como primatas superiores - o termo predileto para eles era "babuínos" - e tratava-os como animais. Os povos de "raça mista" - os bastardos - eram considerados racialmente superiores aos negros puros, mas inferiores aos brancos puros. Admitia-lhes uma eventual utilidade como polícias coloniais ou funcionários menores. No entanto, desaconselhava qualquer mistura racial adicional.
Será que estes conceitos perderam actualidade e que já não é fácil recrutar carne para canhão.