A Fernandinha era uma solteirona bem-disposta. Nessa altura andaria pelos setenta, mas ainda tratava de tudo.
Desde a morte dos seus pais que vivia sozinha, no centro histórico da cidade. Herdara aquele prédio de três pisos, com uma frente de 10 metros, encaixado na rua e confinando, nas traseiras, com um palacete devoluto, à espera de um louco disponível para enterrar lá o dinheiro de uma vida.
Professora primária reformada, mantinha-se activa. Cantava no coro da Matriz e dava explicações na Casa dos Rapazes. Somava horários e pressas ao peso dos anos, das maleitas e ao cuidado da casa, presa às memórias e à insegurança daquele mundo que desabava em seu redor, plasmado no pequeno comércio agonizante e no eterno papagaio que resistia embalsamado à porta da mercearia, para gaudio dos passantes menos distraídos.
Um dia, estranhando a falta dos chinelos aos pés da cama, decidiu percorrer toda a casa. Subiu e desceu escadas. Abriu e fechou portas daqueles quartos há anos fechados de inutilidade para, num pasmo, encontrar num deles, os chinelos desarrumados e logo a seguir uma cama desfeita com um sem-abrigo enrolado num velho cobertor.
Mal refeita do susto, perguntou-lhe decidida: - O que é que o senhor está aqui a fazer?, e ouviu a voz sumida do pobre homem responder-lhe, temeroso: - Eu … vivo aqui, ... há uns dias!, enquanto se arrumava para sair pelas traseiras, por onde entrava sorrateiro ao fim do dia.
Dizem que o coração da Fernandinha a impeliu a deixá-lo lá ficar, que mais não fosse, aquela noite, mas que o medo de um homem tão perto, e a lembrança dos yogourts e da fruta que vinham faltando no frigorífico, mais as pratas de que desconhecia o destino, não deram sorte àquela aparição, e nem considerou a hipótese do príncipe, da bruxa má e do encantamento, que um terno beijo pudesse vir a quebrar.
5 comentários:
Inacreditável!
(Que pena só agora ter descoberto este blog. Estou a gostar imenso.)
Obrigado pela sua atenção.
A Fernandinha era a minha "Titi" ou a "Fu". Histórias como esta, tem imensas. No início, esse "visitante" tinha cama montada no patamar das traseiras, encostada à porta da sala onde, diariamente, a minha Tia passava o serão. Quando descobri, tentei acabar com a situação. Em vão! Encerrou o assunto assim:
- Já viste como tem a cama bem feita? Coitado, deixa-o estar ali.Assim até ouve a televisão.
Mais tarde, dando conta da ausência da Fernandinha há várias noites, o dito "visitante" resolveu instalar-se lá em casa. E aí surge a história dos chinelos. Foram as pratas e muitas outras coisas, mas o que realmente a aborreceu foi:
- Não é que o malandro me deu cabo do comando da televisão.Que maçada!
Mili:
Espero ter contado a história com a graça que a sua tia merece!
obrigado pelo seu comentário!
Como sempre, Doutor, foi um prazer ler o seu texto. Lá em cima, a Fernandinha deve ter adorado.
Bem haja.
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