Parecia-lhe inacreditável, que tendo os deuses tanto poder,
não interferissem com as guerras, mesmo quando solicitados por quem lutava “em
seu nome”, pelo que arriscou perguntar:
- Dona Hera! É de tempos imemoriais que antes das grandes
batalhas se faça uma missa campal ou qualquer coisa do género, para vos pedir
ajuda e até consta que, em algumas, houve aparições decisivas para as vitórias.
Vocês não estão nessa?
- Não! Definitivamente! Nós não interferimos a esse nível.
Está a ver a quantidade de vezes que a humanidade nos reclama para problemas
menores. Até nos pede auxílio para a marcação de um penalty ou na escolha dos
números do Euromilhões! Quem trata disso é o Destino. Ele é que distribui as oportunidades.
Põe umas à frente dos olhos dos humanos e outras esconde-as onde só os mais
espertos conseguem dar com elas. O nosso trabalho tem sido definir quais são as
“oportunidades”. O modo como elas são distribuídas é com o Destino.
Para além disso, temos os mortos. O rei Hades, que há pouco
viu partir para o Médio Oriente, tem um contrato-programa para cumprir.
Tem obrigação de apresentar um número X de mortes por ano.
Tantos destes e tantos daqueles. Uns de doença e outros de morte violenta. Uns
mais novos e outros mais velhos. E isso é um grande problema porque os tempos
mudam e todos os anos se morre de modo diferente. A tecnologia fez com que, no
Ocidente, a longevidade aumentasse e que o número de mortes em jovens esteja
abaixo do contratado. A solução encontrada foi criar maiores oportunidades para
acidentes rodoviários e em desportos “radicais”, a par de um aumento da
resistência aos antibióticos nas doenças infecciosas. Mas não se estão a
mostrar suficientes. Se isto fracassar, teremos de criar mais oportunidades
para uma guerra. Para já, África e o Médio Oriente, estão a dar um grande
contributo com mortes jovens, mas se o seu número reduzir, vai ter de se de ir
para uma epidemia ou para uma guerra global.
Os números do contrato têm a ver com a taxa de ocupação do
planeta pelo homem.
- Então os reis Hades e Tanatos, foram para lá por causa
dos números?
- Claro! Apesar de todo o aparato, exigem-se mais mortos. A
estrutura que temos montada não subsiste com estes números. Mesmo que
requalifiquemos alguns, há deuses com ameaça de desemprego. Assim como está,
não pode continuar. O homem tem de abandonar alguns territórios e o seu número
tem de baixar.
Longe vai o tempo em que não havia preocupação com a função
social do emprego. Temos de ter empresas eficientes e rentáveis.
- Mas isso é pior que a lei da selva!, exclamou o médico. –
O que será de nós humanos!.
- Nós estamos a trabalhar para que vocês
tenham uma morte mais precoce. Principalmente nos países industrializados.
Não vai haver emprego para todos.
Temos na manga a possibilidade de uma catástrofe natural. O
Hefesto já se disponibilizou para provocar uma grande explosão num dos
supervulcões. Yellowstone é uma grande hipótese. E o Posídon já falou num
megatsunami de proporções apocalípticas provocado por enormes deslizamentos de
terras no flanco oeste da ilha La Palma, nas Canárias, com uma onda inicial de quase 2 km, a viajar, como se fosse um avião a jacto, a cerca de
1000 KM /hora. Inundaria o litoral da África Ocidental em cerca de uma hora, o
litoral sul do Reino Unido em 3,5 horas, e chegava à costa leste da América do Norte
em seis horas, altura em que a onda se teria transformado numa sucessão de
pequenas ondas, cada uma com cerca de 30 a 60 metros de altura. É capaz de
calcular os estragos?
- Com mil de demónios! Espantou-se Hipólito. -Isso arrasaria
a costa leste dos EUA e muitas das principais cidades da Europa. Vocês não
tinham coragem para tanto!
- Foi Posídon que falou nisso, mas os textos não foram ainda
a concílio. Para já demos ao Destino conflitos menores dispersos e umas pequenas
epidemias, que vocês controlaram com alguma eficácia. A SIDA, o Ébola, a Gripe A
e agora o vírus Zika, foram coisas para vos testar. Mas estamos a trabalhar numa
epidemia em grande, transmitida por via oral, com um tempo de incubação longo
como o VIH, para quando vocês derem por ela, já haver mais de metade da
população infectada. Mas não se preocupe, que isso são soluções extremas, que só
serão entregues ao Destino, se todas as outras se mostrarem ineficazes.
O médico estava siderado. Não queria acreditar que a pressão
dos números pudesse levar aqueles deuses a atitudes tão malignas. Voltou-se
para Hera e questionou-a.
- Então é isso que nos espera, caso persistamos em ocupar
todo o planeta, desrespeitando as outras formas de vida?
- É verdade, meu querido Hipólito! Vocês ainda não perceberam o que se passou com os dinossauros?
- Mas não é para já! Pois não?
- Talvez não seja no seu tempo. Se quiser saber,
terá que falar com Zeus. Ele tem ido a reuniões onde estão os deuses mais
importantes e já há planos de contingência para entregar ao Destino. Talvez o rei Hades saiba alguma coisa, porque ele
tem de arranjar espaço, para que não haja filas intermináveis nas margens do
Aqueronte. Se esperar um pouco, pode ser que ele passe por aqui no regresso.
Ele sabe que eu gosto de romãs e as da Síria são espectaculares.
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