segunda-feira, 28 de março de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (16)



Despediram-se. Hipólito, iniciou a viagem de regresso a pensar na volatilidade do Universo, onde até os deuses têm de lutar, temerosos que as outras religiões lhes ganhem o espaço conquistado, palmo a palmo, durante séculos.
A pequena quota que estes, mesmo retirados, ainda mantinham, mais para combater o ócio que para influenciar o curso da história humana, em vez de os ter tornado complacentes, dificultava-lhes o progresso.
Pareciam ignorar que as suas histórias já não tinham credibilidade e que só convenciam crianças e os pobres de espírito.

Hipólito chegou a casa mais cansado que o habitual, com um pressentimento de que algo importante procurava oportunidade para se revelar. Talvez o lobby dos deuses desiludidos, tivesse ganho e já todos estivessem de mudança para aquele planeta de seres vermelhos, à base de silício, que tanto tinha encantado Hera.
Passou em revista as notícias, ouviu pela enésima vez o Marcelo a explicar a triangulação da esfera, e saiu para esticar as pernas, aproveitando a folga daquela tarde.

Meteu pela Rua da Constituição em direcção ao Marquês, entrou na Rua da Alegria, cumprimentou as prostitutas na esquina e foi por ali fora, quando se apercebeu que a luminosidade diminuíra e que, de repente, se estabelecera noite cerrada. 
Olhou em redor. Nas ruas perpendiculares, passavam faróis dos automóveis, como se o dia tivesse encolhido doze horas. Depois, sentiu um cheiro a enxofre e viu surgir, do nada, um vulto de grandes asas negras a barrar-lhe o caminho.

Hipólito estacou ao reconhecê-lo. Era Tártaro.
- Boa noite!, disse, simulando a calma de quem não teme a morte. O deus do submundo sentou-se em cima do marco do correio, como a dispor-se para uma longa conversa.
- É a terceira vez que nos encontramos!, disse. – Na última avisei-te, para não interferires com a minha actividade, e tu, nem um mês depois, pões-te a tentar tirar o Sísifo da minha jurisdição. Quem é que pensas que és?

Hipólito, olhou-o, com a sensação de que qualquer que fosse a sua resposta, iria despertar uma reacção fora do seu controle. Perdido por cem ou por mil, jogou a cartada.
- Carísssimo! Como sabe, sou médico, discípulo de Esculápio, e, basta-me essa razão para reter, o mais tempo possível, os mortais neste mundo. Quando soube que o Sísifo voltara ao mundo dos vivos, senti-me na obrigação de lhe dar apoio, principalmente por saber o que o esperava, se fosse apanhado.
- Estou a ver!, disse Tártaro. – És daqueles que não mede as consequências antes de se aventurar. Como médico, podes usar poções e intervenções que alterem a evolução das doenças, mas a tua jurisdição sobre a vida acaba aí. No resto és igual a todos os outros! Devias conhecer as razões porque Zeus matou Esculápio!

Hipólito, que olhava para cima, numa posição de clara inferioridade, respondeu: - Desculpe mas, se não desce daí,  terei de subir para o tejadilho deste automóvel, para conversarmos. Tenho uma hérnia cervical que se agrava quando estou muito tempo com hiperextensão do pescoço.
Tártaro desceu e sentou-se no guarda-lamas do carro estacionado e Hipólito subiu para a soleira de uma porta para o poder olhar de frente.

- Obrigado! É mais fácil entendermo-nos quando estamos confortáveis!, e continuou: - A minha conversa com Zeus visou pô-lo a par dos conceitos que actualmente obrigam os carcereiros no mundo ocidental, para que ele os considerasse numa eventual reformulação das penas. Há mais mundo para além das punições e há malta que teve comportamentos nada recomendáveis na juventude e que na idade adulta foi fonte de inovação de que muitos beneficiaram. Pelo contrário, há para aí uns mongas de “low profile” que chegam a velhos sem nunca terem contribuído para o bem comum.
Quanto a Sísifo, penso que ele podia ter sido reabilitado, se vocês se tivessem modernizado!

Tártaro ouvira-o com enfado e demorou a resposta, como a ponderar a utilidade daquele diálogo. Depois, talvez por ter encontrado as palavras que julgava certas, levantou-se e respondeu:
- Talvez eu esteja aqui a perder tempo, mas como não quero chatices com Zeus, vou dar-te uma oportunidade!
Deu meia dúzia de passos e voltou a sentar-se, para continuar.
- Olha para as catedrais. São formadas por múltiplas pedras mais ou menos trabalhadas, encaixadas umas nas outras ou unidas por um cimento. No conjunto fazem um edifício harmonioso onde as pessoas encontram um ambiente propício à reflexão. Agora pensa a religião não como um edifício físico, mas como uma estrutura muito maior, feita de conceitos uns mais trabalhados que outros, onde cabem muitas mais pessoas que se regem por essas referências para uma vida em comum.
Como não estão todas no mesmo patamar de pensamento abstracto, os conceitos da sua base têm de ser abrangentes e eternos. Sísifo, é uma ficção com fundamento real, que utilizamos para marcar bem que há princípios a que se não pode desobedecer. Não te preocupes que ele passa muito tempo no Hades. Zeus só o queria apanhar porque ele não saiu pelo Lethes e assim a sua alma não ia começar do zero, dentro de uma família que lhe garantisse a sobrevivência. O resto era show off. A história que se conta é fundamental para que vocês tenham referências.
- Eu entendo isso!, respondeu o médico. – Mas também vos quero dizer que, se vocês se não actualizam rapidamente, não terão hipóteses!
Tártaro continuou: - Não te preocupes com isso. Nós, deuses, também precisamos de descansar e de mudar de ares. Como nos movemos por todo o Universo, alteramos frequentes vezes a Sede.
Olha! Antes de te ter encontrado aqui, estive num Concílio onde se decidiu a nossa deslocalização! Por isso, se queres ajudar alguém, é melhor virares-te para os cristãos. Esses estão a ver o tapete a fugir-lhe debaixo dos pés. E não é o Islão que os vai destronar. São os Secularistas! Nós vamos fechar a porta, mas levamos a chave! É por isso que tem de ficar tudo como está! Percebes porque é que o Sísifo tem de continuar?

- Ok! Então Zeus desistiu da Humanidade!?, espantou-se o médico. -Ainda há pouco estivemos a almoçar e ele não me disse nada!
Tártaro ao sentir o desconforto do médico, tentou pôr água na fervura. - De certo modo, mas com intenções de virmos regularmente à Terra. Só se as coisas se processarem muito melhor que o previsto, é que deixamos de nos preocupar definitivamente convosco e só cá viremos nas férias. O Plano A é mudar só a Sede!
- Já que falou nos Secularistas, posso perguntar-lhe se a luta que antevê entre eles e os Cristãos vai ser tão sangrenta como a que se desenrola com o Islão desde há mil e quatrocentos anos?
Tártaro deu uma gargalhada. - Olha este a querer tirar nabos da púcara!, exclamou. – Só te digo que não há religiões eternas, que toda a mudança é traumática e quem é apanhado na curva de aprendizagem, habitualmente sofre consequências. Mas está descansado, que vais saber muito antes do conflito chegar a Portugal. Aqui chega tudo requentado!

- Se é como diz, só me resta pedir desculpa!, concluiu o médico. – Se as almas que estão eternamente no Inferno são figuras semânticas, já cá não está quem falou! Desejo-vos boa viagem e que nesse outro planeta, para onde agora vão, tenham muita saúde, paz, amor e dinheiro para os gastos.
- Ora isso é que é falar!, anuiu Tártaro. – Até dá vontade de te levar connosco!
- Muito obrigado! Mas tenho afazeres por estes lados e não tenho estrutura para o ambiente para onde vocês vão, nem para a vossa relação com o espaço/tempo. Dê os meus cumprimentos a Zeus e à família, e diga-lhes que escusam de se despedir.  Fico à espera das vossas férias. Até mais ver!

Deram um longo aperto de mão e Hipólito ficou a ver as suas asas negras iridescentes desaparecerem na linha do infinito, iluminadas por um forte sol, que entretanto aparecera.
No fundo aquelas visitas estressantes faziam-lhe subir a tensão arterial.

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