Acendeu a televisão. Anunciava-se a morte de Fidel de Castro e o médico anotou o corropio de comentadores e as frases de circunstância - que só a História o julgará, que era uma figura controversa, singular, que tinha um sonho, que … . Desligou ao quinto, sem esperar pela análise de Marcelo que, a julgar pelas fotos da sua visita, um mês antes, o deve ter surpreendido com uma qualquer “bavaroise”.
Pegou no smartphone e ligou para a mulher. Que não demorava! Que adiantasse o jantar! Que havia sopa no frigorífico, mas que fizesse um arroz e uma omeleta ou então que fosse à churrascaria buscar qualquer coisa já confeccionada!
Foi à cozinha, pegou numa tábua de queijos, numa garrafa de vinho e num pão tradicional do Alentejo. Foi para a sala, pôs a tocar, no leitor, o Álbum de Chopin de Lang Lang e sentou-se a petiscar.
Foi nessa altura que tocaram à porta. Um homem escanzelado, com múltiplas crostas na face, apareceu no intercomunicador.
Hipólito, perguntou: - Quem és, e o que pretendes?
-Tem calma! Eu necessito de ajuda! Já deves ter ouvido falar de mim. Sou Jó!
- Jó????, exclamou o médico. - O da Bíblia?
- Sim! Esse mesmo!
Foi à porta. Olhou-o de alto a baixo. A tez escura, a longa barba, a túnica rota, por onde saíam dois braços com inúmeras pústulas, o sotaque e a linguagem corporal, davam coerência à sua afirmação e Hipólito não hesitou e convidou-o a entrar.
- Tens uma história de vida do mais bizarro que há!, disse-lhe enquanto empurrava a porta. - Em que te posso ajudar? Pensei que estavas na maior e não nesse estado lastimoso. Ao fim e ao cabo voltaste a ter património, família e saúde, depois de Deus te ter tirado tudo, naquela aposta descabelada com o Diabo!
Jó, fez-lhe um salamaleque e entrou, enquanto explicava:
- O que se escreveu sobre mim não corresponde ao que se passou. Já nessa altura os narradores confabulavam para tornarem as histórias apelativas. A verdade é que foi quando adoeci que tudo começou a correr mal.
O médico, ofereceu-lhe uma cadeira em frente à sua e foi à cozinha buscar outro copo, na esperança de que aquele Quinta da Bacalhoa fosse fermento para pormenores que dessem maior credibilidade às suas afirmações.
- Estás então a dizer que foi a doença que levou a tua casa à desgraça?
- É a pura verdade! Já rebobinei o filme da minha vida vezes sem conta e, depois de ter lido muita coisa, cheguei à conclusão de que sofro de uma Perturbação da Ansiedade Generalizada!, respondeu Jó, contristado. Depois, bebeu dois goles de vinho, deu um estalo com a língua em sinal de aprovação, e continuou: - Como sabes, nasci numa família rica, na terra de Uz, que hoje faz parte da Jordânia. Herdei um património enorme e, nos primeiros tempos, até o acrescentei! suspirou, fez uma pausa como a relembrar o sofrimento passado, e continuou: - Grande nau, grande tormenta! Todos os dias havia problemas! A certa altura, dei por mim a "empreender" neles, sem lhes achar solução e a passar noites em claro. Em desespero, virei-me para Deus a pedir piedade, na esperança de uma ajuda, mas quanto mais orava, mais desgraças atraía e, em pouco tempo, eu, que era um dos homens mais ricos do oriente, perdi o gado, a gente que estava ao meu serviço e até os filhos. Por fim surgiu-me a doença da pele e fiquei com este aspecto desgraçado.
Hipólito mediu o pobre homem. Aquela história bíblica, por mais que as exegetas se esforçassem por lhe dar um significado actual, não tinha pés nem cabeça. Um Deus a apostar com um Diabo a fidelidade de um crente, a ponto de permitir que este lhe desse cabo da vida, era mau demais para um ser misericordioso. A interpretação que Jó dava, a de um homem atormentado por crises de pânico, que o tornam num farrapo, era uma explicação muito mais razoável para aquela situação.
- Jó!, interrompeu o médico, quando lhe chegava a cesta do pão. - Então não são “inverdades”, como agora se diz, as tuas constantes preces a Deus e a tua exemplar fidelidade?!
- Foi o desespero! Nessa altura, eu acreditava no poder da oração e que, se eu apelasse a Deus, ele realizaria maravilhas e ajudar-me-ia a superar todas aquelas dificuldades. Só mais tarde é que entendi que elas não eram reais, mas resultantes do meu problema de saúde.
- Mas uma vez que já morreste, o teu tormento devia ter acabado. No Céu é suposto haver um gozo pleno e eterno, ouvindo música celestial e bebendo o leite e o mel da contemplação divina.
- Não, Hipólito!, respondeu célere Jó. - Eu vivo no Purgatório! Ali, é como na Terra. Mesmo quando lá estamos há séculos, como eu, e temos direito a recreios prolongados e licenças precárias, há tribulações frequentes!
- É curioso! Eu pensei que o Papa João Paulo II tinha fechado o Purgatório em 1999!, lembrou o médico.
- Como é que podia!, exclamou Jó, com alguma impaciência. - São biliões de almas que lá estão! Para lhes arranjar um outro destino, é preciso tempo. Há muita burocracia a cumprir. Lembras-te quando surgiram os movimentos que criticavam o atendimento dispensado nos Hospitais Psiquiátricos, acusando-os de promoverem isolamento, reclusão, abandono, estigmatização e tratamentos inadequados? Já analisaste os resultados do que se fez para que esses doentes passassem para o ambulatório? Lá ia ser pior! Uma coisa são as intenções e outra é pôr a obra no terreno!
Hipólito pasmou com a actualização de Jó.
- Vejo que estás a par do que se passa na psiquiatria portuguesa. Mas conta que a demografia e a crise também não nos têm ajudado. As famílias estão cada vez mais pulverizadas e sem capacidade para tratar dependentes.
- Entendo! Respondeu Jó. – Mas apesar de tudo há respostas! No Purgatório só há produtos “naturais” e não há apoios sociais.!
- E permitem entrada de medicamentos, vindos do exterior?, sondou Hipólito.
- Quanto a isso, não há problema! Até droga se pode levar! Na admissão há quem anote, para o "deve e haver" do Juízo Final! Mas não há limites!
Jó ajeitou-se na cadeira, puxou de um caco de louça e começou a raspar uma das crostas do antebraço.
- Está quieto e não agraves essas lesões!, levantou-se o médico, para lhe retirar o fragmento da mão. - Tens uma neurodermite infectada e ainda te pões para aí a escarafunchar!? Confirmo o teu diagnóstico. Vou ver se tens alguma outra doença concomitante, mas depois vou ter de te orientar para psiquiatria! e, a talho de foice, ainda intrigado com aquela aparição, perguntou: - Quem é que te aconselhou a vir ter comigo?
- Foi o Hércules. Encontrei-o em Petra, numa das minhas saídas precárias. Procurava dois cavalos que se tinham tresmalhado. Ficámos um tempo à conversa e ele falou que andava muito melhor desde que tu lhe mudaste a medicação. Então, dispus-me a vir até aqui na expectativa de me ver livre desta dor existencial que me faz amaldiçoar o dia em que nasci!
- Ainda bem que não entraste em depressão e mantiveste essa Fé, senão a coisa ainda era pior. A filha do Onassis também tinha tudo, como tu, e suicidou-se aos 37 anos!
- Ouvi falar!, respondeu Jó. – Talvez por temor a Deus, sei lá, recusei sempre o suicídio, mesmo quando a minha mulher me incentivava a fazê-lo. Mas cheguei a pedir a Deus que soltasse a sua mão protectora e me eliminasse.
- Ok!, já percebi as tuas angústias! Acaba o vinho e vamos ali para baixo, para eu te fazer o exame físico, não vá teres hipertensão ou outra qualquer maleita, que possa interferir com a medicação que te quero propor!
Hipólito deu-lhe a mão para que não tropeçasse nos dois degraus, que distavam da sala de estar. Depois, mediu-lhe os sinais vitais, viu-lhe a orofaringe, auscultou-o, palpou-lhe as cadeias ganglionares, deitou-o para uma palpação abdominal e fez-lhe um toque rectal. No fim concluiu. -Vais ter de fazer umas análises, uma radiografia ao tórax e um electrocardiograma. Entretanto inicias um antidepressivo em doses baixas associado a um ansiolítico, mais um antibiótico para essa estafilococia que tens na pele. Quero ver-te daqui por uma semana e, nessa altura, espero já ter um agendamento para um psiquiatra! Queres outro copo de vinho ou preferes que te faça uma sandes para a viagem?
Jó recusou ambos. Estava feliz na expectativa de tão bons resultados como aqueles que Hércules obtivera, e isso era um bom augúrio, constatou Hipólito.
Despediram-se. Jó deu três passos e um salto e, qual coruja, desapareceu na noite como um fumo, sem um ruído, quando, ao longe surgiam os dois faróis do automóvel da mulher. - Já não era sem tempo!, exclamou.
Hipólito mediu o pobre homem. Aquela história bíblica, por mais que as exegetas se esforçassem por lhe dar um significado actual, não tinha pés nem cabeça. Um Deus a apostar com um Diabo a fidelidade de um crente, a ponto de permitir que este lhe desse cabo da vida, era mau demais para um ser misericordioso. A interpretação que Jó dava, a de um homem atormentado por crises de pânico, que o tornam num farrapo, era uma explicação muito mais razoável para aquela situação.
- Jó!, interrompeu o médico, quando lhe chegava a cesta do pão. - Então não são “inverdades”, como agora se diz, as tuas constantes preces a Deus e a tua exemplar fidelidade?!
- Foi o desespero! Nessa altura, eu acreditava no poder da oração e que, se eu apelasse a Deus, ele realizaria maravilhas e ajudar-me-ia a superar todas aquelas dificuldades. Só mais tarde é que entendi que elas não eram reais, mas resultantes do meu problema de saúde.
- Mas uma vez que já morreste, o teu tormento devia ter acabado. No Céu é suposto haver um gozo pleno e eterno, ouvindo música celestial e bebendo o leite e o mel da contemplação divina.
- Não, Hipólito!, respondeu célere Jó. - Eu vivo no Purgatório! Ali, é como na Terra. Mesmo quando lá estamos há séculos, como eu, e temos direito a recreios prolongados e licenças precárias, há tribulações frequentes!
- É curioso! Eu pensei que o Papa João Paulo II tinha fechado o Purgatório em 1999!, lembrou o médico.
- Como é que podia!, exclamou Jó, com alguma impaciência. - São biliões de almas que lá estão! Para lhes arranjar um outro destino, é preciso tempo. Há muita burocracia a cumprir. Lembras-te quando surgiram os movimentos que criticavam o atendimento dispensado nos Hospitais Psiquiátricos, acusando-os de promoverem isolamento, reclusão, abandono, estigmatização e tratamentos inadequados? Já analisaste os resultados do que se fez para que esses doentes passassem para o ambulatório? Lá ia ser pior! Uma coisa são as intenções e outra é pôr a obra no terreno!
Hipólito pasmou com a actualização de Jó.
- Vejo que estás a par do que se passa na psiquiatria portuguesa. Mas conta que a demografia e a crise também não nos têm ajudado. As famílias estão cada vez mais pulverizadas e sem capacidade para tratar dependentes.
- Entendo! Respondeu Jó. – Mas apesar de tudo há respostas! No Purgatório só há produtos “naturais” e não há apoios sociais.!
- E permitem entrada de medicamentos, vindos do exterior?, sondou Hipólito.
- Quanto a isso, não há problema! Até droga se pode levar! Na admissão há quem anote, para o "deve e haver" do Juízo Final! Mas não há limites!
Jó ajeitou-se na cadeira, puxou de um caco de louça e começou a raspar uma das crostas do antebraço.
- Está quieto e não agraves essas lesões!, levantou-se o médico, para lhe retirar o fragmento da mão. - Tens uma neurodermite infectada e ainda te pões para aí a escarafunchar!? Confirmo o teu diagnóstico. Vou ver se tens alguma outra doença concomitante, mas depois vou ter de te orientar para psiquiatria! e, a talho de foice, ainda intrigado com aquela aparição, perguntou: - Quem é que te aconselhou a vir ter comigo?
- Foi o Hércules. Encontrei-o em Petra, numa das minhas saídas precárias. Procurava dois cavalos que se tinham tresmalhado. Ficámos um tempo à conversa e ele falou que andava muito melhor desde que tu lhe mudaste a medicação. Então, dispus-me a vir até aqui na expectativa de me ver livre desta dor existencial que me faz amaldiçoar o dia em que nasci!
- Ainda bem que não entraste em depressão e mantiveste essa Fé, senão a coisa ainda era pior. A filha do Onassis também tinha tudo, como tu, e suicidou-se aos 37 anos!
- Ouvi falar!, respondeu Jó. – Talvez por temor a Deus, sei lá, recusei sempre o suicídio, mesmo quando a minha mulher me incentivava a fazê-lo. Mas cheguei a pedir a Deus que soltasse a sua mão protectora e me eliminasse.
- Ok!, já percebi as tuas angústias! Acaba o vinho e vamos ali para baixo, para eu te fazer o exame físico, não vá teres hipertensão ou outra qualquer maleita, que possa interferir com a medicação que te quero propor!
Hipólito deu-lhe a mão para que não tropeçasse nos dois degraus, que distavam da sala de estar. Depois, mediu-lhe os sinais vitais, viu-lhe a orofaringe, auscultou-o, palpou-lhe as cadeias ganglionares, deitou-o para uma palpação abdominal e fez-lhe um toque rectal. No fim concluiu. -Vais ter de fazer umas análises, uma radiografia ao tórax e um electrocardiograma. Entretanto inicias um antidepressivo em doses baixas associado a um ansiolítico, mais um antibiótico para essa estafilococia que tens na pele. Quero ver-te daqui por uma semana e, nessa altura, espero já ter um agendamento para um psiquiatra! Queres outro copo de vinho ou preferes que te faça uma sandes para a viagem?
Jó recusou ambos. Estava feliz na expectativa de tão bons resultados como aqueles que Hércules obtivera, e isso era um bom augúrio, constatou Hipólito.
Despediram-se. Jó deu três passos e um salto e, qual coruja, desapareceu na noite como um fumo, sem um ruído, quando, ao longe surgiam os dois faróis do automóvel da mulher. - Já não era sem tempo!, exclamou.
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