O corredor de paredes azul-acinzentado (ou cinzento-azulado) tem uma iluminação alta e fria, como é usual nos hospitais. No chão, sobressai uma linha negra a todo o comprimento e a dois terços da largura, que curva à direita e indica o caminho do “raio x”.
Para que chamem sala de espera a este corredor, colocaram 2 filas de cinco cadeiras de um lado e, do outro, um ecrã de televisão sintonizado na SIC, sem som, onde de madrugada, se sucedem repetições de televendas destinadas a publico insone.
Debaixo do ecrã, outras três cadeiras não podem disfrutar da TV. Ao seu lado, duas máquinas de venda automática ronronam pela noite fora e gemem cuspindo comida e bebida sempre alguém lhes dá moedas.
De pulseira roxa no pulso, ali permanecem os acompanhantes daqueles a quem a saúde faltou, de modo suficientemente severo para serem rotulados de “laranja” … São maioritariamente mulheres! … será que lá dentro são maioritariamente homens?
Entre o olhar perdido no ecrã da televisão ou do telemóvel, fazendo escorregar o polegar em suaves carícias desperdiçadas, o tempo não passa.
De cada vez que a porta da área laranja se abre, os olhares convergem na esperança de vislumbrar o que se passa lá dentro com o seu familiar, ou com qualquer outro, que a curiosidade não se perde, mesmo em circunstâncias adversas.
Do que vislumbro, os profissionais enfrentam os computadores que dominam o centro da sala e impõem a sua luz azul. Falam, circulam, sentam-se, levantam-se de olhos sombrios, assoberbados com a intensidade e volume das tarefas – hoje foi mesmo o pior dia para vir à Urgência – desabafou comigo um médico em jeito de desculpa.
O movimento do corredor é intenso. Sendo um dos acessos ao serviço de Urgência, médicos, enfermeiros, auxiliares e administrativos, todos o percorrem garbosos nas suas fardas novas, assexuadas, de cores distintas por classe profissional, mas sem que haja uma legenda em que possa descortinar a ligação da cor à função. A atenta observação da execução das tarefas lá me deixou interiorizar o código cromático.
Parece estipulada uma cadência de movimentação e todos se deslocam à mesma velocidade – nem demasiado rápido, nem demasiado lento.
Os fragmentos de conversas atiçam a imaginação de quem fica pendurado na frase e a tenta completar…
Passam-se as horas neste limbo e é então que me apercebo que, a espaços regulares, sai da área laranja um auxiliar que empurra ora uma maca, ora uma cadeira de rodas. Invariavelmente transporta um idoso na tal cadência certa, mas gerindo com destreza o rodado que se aproxima dos pés dos que ostentam a pulseira roxa e se mantêm sentados nas incrivelmente desconfortáveis cadeiras.
E ao passar apregoam: “familiar da Sr.ª Antónia”, familiar do Sr. José”, “familiar do Sr. Manuel” … em voz alta e monocórdica, sem olhar para o lado, sem atrasar o passo…
Despojados do seu nome de família e exibidos pelo exíguo corredor em jeito de leilão, estes idosos, de olhar perdido, são transportados para as salas de exames ou para o internamento. Para muitos, não houve ninguém que se levantasse da cadeira para o acompanhar.
Eu tive a felicidade de acompanhar o meu.
Texto de M.Helena S. Gomes
1 comentário:
Que bom - bem pensado, bem escrito...
Enviar um comentário