terça-feira, 22 de março de 2022

Jornais


Na casa da minha avó, onde passei parte da minha infância, havia um quarto de banho na marquise anexa à cozinha. Era um pequeno espaço com uma sanita com tampa de madeira partida e um reservatório de água do autoclismo lá no alto, de onde pendia uma corrente que terminava num punho de madeira áspero pela tinta descascada. Uma pequena janela ao alto assegurava a ventilação.

Eu usava esse espaço e dava por mim a aí permanecer por longos períodos atraída pelo papel de jornal. Nessa casa de banho o papel de jornal, cortado em rectângulos de modo irregular, que pendia de um arame dobrado em forma de anzol, suspenso num prego da parede, destinava-se a ser usado como papel higiénico. 

E eu aí ficava a ler fragmentos de noticias, em que só podia imaginar o início ou o fim, se não conseguisse encontrar o fragmento correspondente.

Deliciava-me com a publicidade ao "Bryllcreem" com imagem de rapazes bonitos e bem penteados, ou à Solarina, em que donas de casa, com aventais com folhos, punham cobres a brilhar ... 

Aliás o papel de jornal era omnipresente em casa e de uma enorme utilidade. Consumidas as notícias do dia, embrulhava o bacalhau, forrava gavetas,  prateleiras e caixotes de lixo. Secava sapatos e não raras vezes servia de palmilha. Para lavar janelas e espelhos uma bola de papel de jornal acrescentava o brilho e polimento sem manchas. Nos dias de pôr os bibelots de cobre, prata ou latão a brilhar,  o papel de jornal não faltava a proteger a roupa e no polimento final. 

E se as paredes pediam pintura, era o papel de jornal que forrava o chão. Se era preciso subir a uma cadeira ou a uma mesa era uma folha de papel de jornal que nos permitia não tirar os sapatos. 

Chegava na ceira do mercado a embrulhar as sardinhas e um elegante cartucho, enrolado na mão, abrigava as quentes e boas castanhas.

Nos dias de sol, um improvisado bivaque feito com um folha bem dobrada protegia da inclemência dos raios solares e, com a mesma técnica, se improvisava um barquinho de papel que competia, na bacia de água, com a cortiça dos supositórios de "Rectofenicol"... 

O meu pai diz que o meu avô o ensinou a ler com as notícias dos jornais diários e eu ganhei destreza no manejo da tesoura a recortar fotografias.

Por tudo isso havia sempre uma pilha de jornais velhos que mais tarde ou mais cedo encontrariam a sua utilidade. Nas casas modernas não há lugar para eles. Os que, apesar das notícias em suporte digital, entram sorrateiramente, acabam no lixo com a mesma velocidade com que as notícias se tornam obsoletas. 

Hoje tinha planeado dedicar o dia às minhas plantas que precisavam de ser replantadas e foi a custo que ainda consegui encontrar um jornal velho. E lá dei por mim a ler noticias de há um ano, inalando o  cheiro sui generis do papel húmido, antes de o estender na mesa da cozinha e espalhar a terra e as raízes. 


História de MHSG

sábado, 19 de março de 2022

A Ucrânia e a "Realpolitik"

A primeira palestra tem seis anos. É uma Crónica de uma Morte Anunciada.

   
O segundo vídeo é o complemento do primeiro, já depois do início da Guerra na Ucrânia.

Realism is one of the dominant schools of thought in international relations theory. Political realism, is a view of international politics that stresses its competitive and conflictual side. It is usually contrasted with idealism or liberalism, which tends to emphasize cooperation. Realists consider the principal actors in the international arena to be states, which are concerned with their own security, act in pursuit of their own national interests, and struggle for power.

The strong do what they will, and the weak suffer what they must!

It has nothing to do with "rights"! When you talk about great power politics, rights in a final analysis, just don't matter. Might makes right!


Adenda a 22 de Março de 2022 (28º dia da Guerra)

segunda-feira, 14 de março de 2022

Karl Popper e os Beatles


"Para compreender o futuro ao ponto de se conseguir prevê-lo, é necessário incorporar elementos do próprio futuro!"

A possibilidade de lutar com palavras, em vez de lutar com armas, constitui o fundamento da nossa civilização.
A tentativa de trazer o céu para a Terra invariavelmente produz o inferno.
Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos.
Se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância.

Karl Popper (1902 – 1994) Um dos filósofos mais influentes do século XX. Nasceu em Viena de Áustria. Por causa da sua ascendência judaica, fugiu antes do início da II Grande Guerra, primeiro para a Nova Zelândia e depois para o Reino Unido. Beatles- 1969 - John Lennon/Paul Mccartney 

 Nunca tinha pensado na letra desta música, que conheço há 50 anos. É sobre a tolerância que a sociedade ocidental tem com os disfuncionais, e que a China, e não só, olha como "Decadência civilizacional".

quinta-feira, 3 de março de 2022

Os russos

 

Eu tenho medo dos russos e não é coisa de agora, nem é por eles serem comunistas e comerem criancinhas ao pequeno almoço. Nada disso! Eu tenho medo deles desde pequeno. 

Talvez a primeira vez que a palavra me alertou, foi quando os meus pais não me levaram a Espanha “por eu ser ruço!”, teria eu não mais que quatro anos, numa altura em que Salazar era rei e se rezava pela conversão da Rússia. Já no Liceu o sofrimento de Roma às mãos das invasões bárbaras vindas do Leste, ficou-me a borbulhar no bestunto como um perigo a que era necessário estar atento, não se fosse repetir e, quando estudei um pouco da mitologia grega e me deparei com as Amazonas que  também desciam desses lados para matar tudo o que era homem, então é que até delas iniciei receios, mesmo quando os seus cabelos louros e feições perfeitas estimulavam a minha líbido de teenager.

Agora, olho para os russos como os descendentes dos Tártaros e tártaro não é uma coisa boa, pelo menos para os nossos dentes. Admiro-os nas artes, sejam elas artes plásticas, música, dança ou literatura, mas não os tenho em consideração no desporto, nem pelos seus feitos bélicos ou aeronáuticos. Aqui, onde eles também são bons, vejo atitudes de confronto, onde vale tudo para cumprir objetivos determinados centralmente por governos que se põem continuamente em bicos de pés, em vez de se preocuparem em percorrer o caminho paulatinamente com mestria e segurança para dar ao seu povo as melhores condições de progresso.

Os seus heróis metem-me medo. Pedro o Grande construiu S. Petersburgo, no início do século XVIII, num pântano, com o trabalho escravo de prisioneiros de guerra suecos e de presos russos onde morreram aos milhares. De Ivan “o Terrível” ficou-me o filme sombrio de Sergei Eisenstein, cheio de intrigas e traições. Rasputin mete medo a qualquer um e os revolucionários de 1917: Lenine, Trotsky, Estaline arrepiam pela desumanidade. 

A “pátria do comunismo” é egocêntrica e pouco eficaz em melhorar as condições das populações. É uma “potência” que pouco contribuiu para o mundo. Electicidade, motores a vapor e de explosão, máquinas de lavar, computadores e robótica pouco lhes devem, e, no campo da saúde, tirando o Pavlov, não trouxeram novidade prática. Os seus cientistas foram preferencialmente aproveitados para as armas e para a engenharia aeroespacial e nuclear, mas mesmo aqui, à custa de cérebros da  Alemanha nazi.

Vejo no imaginário russo, um povo guerreiro, pouco globalizado, com forte espírito nacionalista, disposto a submeter os outros à sua agenda. O colapso da URSS está-lhes entalado. Não aceitam que não foram capazes de gerir esse imenso espaço que foi a União Soviética e agora recorrem à força para fazer valer “os seus direitos” sobre quem já decidiu não querer voltar ao passado.

Hoje é a Ucrânia, já foi a Georgia, já foi a Moldávia. Quem será o país que se segue?