Na casa da minha avó, onde passei parte da minha infância, havia um quarto de banho na marquise anexa à cozinha. Era um pequeno espaço com uma sanita com tampa de madeira partida e um reservatório de água do autoclismo lá no alto, de onde pendia uma corrente que terminava num punho de madeira áspero pela tinta descascada. Uma pequena janela ao alto assegurava a ventilação.
Eu usava esse espaço e dava por mim a aí permanecer por longos períodos atraída pelo papel de jornal. Nessa casa de banho o papel de jornal, cortado em rectângulos de modo irregular, que pendia de um arame dobrado em forma de anzol, suspenso num prego da parede, destinava-se a ser usado como papel higiénico.
E eu aí ficava a ler fragmentos de noticias, em que só podia imaginar o início ou o fim, se não conseguisse encontrar o fragmento correspondente.
Deliciava-me com a publicidade ao "Bryllcreem" com imagem de rapazes bonitos e bem penteados, ou à Solarina, em que donas de casa, com aventais com folhos, punham cobres a brilhar ...
Aliás o papel de jornal era omnipresente em casa e de uma enorme utilidade. Consumidas as notícias do dia, embrulhava o bacalhau, forrava gavetas, prateleiras e caixotes de lixo. Secava sapatos e não raras vezes servia de palmilha. Para lavar janelas e espelhos uma bola de papel de jornal acrescentava o brilho e polimento sem manchas. Nos dias de pôr os bibelots de cobre, prata ou latão a brilhar, o papel de jornal não faltava a proteger a roupa e no polimento final.
E se as paredes pediam pintura, era o papel de jornal que forrava o chão. Se era preciso subir a uma cadeira ou a uma mesa era uma folha de papel de jornal que nos permitia não tirar os sapatos.
Chegava na ceira do mercado a embrulhar as sardinhas e um elegante cartucho, enrolado na mão, abrigava as quentes e boas castanhas.
Nos dias de sol, um improvisado bivaque feito com um folha bem dobrada protegia da inclemência dos raios solares e, com a mesma técnica, se improvisava um barquinho de papel que competia, na bacia de água, com a cortiça dos supositórios de "Rectofenicol"...
O meu pai diz que o meu avô o ensinou a ler com as notícias dos jornais diários e eu ganhei destreza no manejo da tesoura a recortar fotografias.
Por tudo isso havia sempre uma pilha de jornais velhos que mais tarde ou mais cedo encontrariam a sua utilidade. Nas casas modernas não há lugar para eles. Os que, apesar das notícias em suporte digital, entram sorrateiramente, acabam no lixo com a mesma velocidade com que as notícias se tornam obsoletas.
Hoje tinha planeado dedicar o dia às minhas plantas que precisavam de ser replantadas e foi a custo que ainda consegui encontrar um jornal velho. E lá dei por mim a ler noticias de há um ano, inalando o cheiro sui generis do papel húmido, antes de o estender na mesa da cozinha e espalhar a terra e as raízes.
História de MHSG