terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Os livros e a Helena


Os textos que se seguem foram escritos pela minha filha Helena, em finais de 2018, em resposta a um desafio de indicar 10 livros que nos tivessem marcado.

Tropecei neles, hoje, ao limpar o Mail. Não resisto a publicá-los, sabendo que eles já anda pela Net pela mão dela.

Antes de mais, e principalmente porque gosto de começar com declarações de firmes convicções, quero dizer que não só odeio correntes como até, à mais leve sugestão, amiga de 'Helena, sabes o que é que tu podias fazer?' o meu cérebro dispara, ainda antes de saber o que é 'olha, é exactamente o que eu não vou farei!' e assumo que sou teimosa como um burro. Ou o Toino. Assim, quando a Filipa, que sabe quem é o Toino, me sugeriu que eu entrasse no jogo dos livros, nomeando-me com o delicioso 'o caso das criancinhas desaparecidas' do não menos delicioso Luiz Pacheco, eu pensei 'vais ter sorte, vais...'
O problema é que eu odeio correntes e sou teimosa vários (diversos mesmo) degraus abaixo do meu amor aos livros e sendo que o amor e o ódio são a mesma coisa mas em sentido contrário, os livros ganharam.
No entanto, diz a corrente que não se deve explicar o porquê da escolha e apenas debitar 10 livros em 10 dias, mas a minha teimosia, na escala, é bem maior do que as regras do jogo e se quiserem 'exclassifiquem-me'!, que para mim, falar de livros é das coisas que eu mais gosto e este mural é meu e aqui sou eu que mando.
Tendo isto esclarecido - a teimosia, o ódio às correntes, o mau hábito de falar quando me pedem silêncio e o aviso de que este post tendencialmente pende para o longo - quero dizer que vou começar pelo início e que quem não tiver pachorra para ler, pode apenas olhar para a bela foto que tenciono tirar mais tarde deste belíssimo livro e seguir com a sua vida. Prometo não dizer nada de terrivelmente importante ou revolucionário ou sequer interessante (quem é que tem conversas interessantes numa 3ª feira à noite, anyway?!?)

No início eu não gostava de ler. Em primeiro lugar porque não sabia as letras (só na segunda classe me descobriram pitosga) e em segundo lugar porque a minha irmã mais velha queria, por essa altura, ser princesa (depois passou, felizmente) e, como tal, os seus livros que eu, como segunda filha, herdei, eram de princesas e eu era... digamos bichos e fato de treino, princesas e principes não me entusiasmavam.
A minha mãe cresceu numa aldeia, num tempo em que livros eram coisas de gente que não tinha nada que fazer e a minha avó não lhe dava descanso - quando não havia o que fazer a minha avó inventava - dar de comer aos coelhos, fazer um recado, tratar dos irmãos, arrumar a cozinha, ir à horta, um rol que não acabava nunca, como o pó - e os livros, pedidos na carrinha da biblioteca itinerante da Gulbenkian que passava na aldeia, que se chama Bairro, de seis em seis semanas à 5ª feira, eram a sua paz. Lia-os no quarto de banho, voraz, demorando-se porque a minha avó lhe perdoava a suposta prisão de ventre, deliciando-se com outros mundos que não as couves, a rega  e o pó. Por isso, a minha mãe adorava livros e não percebia como era possível eu não gostar deles. Todas as sextas-feiras íamos à Bertrand à frente da Matriz e a minha mãe dizia 'Lena, escolhe um! O que quiseres! Tantos livros, já viste? Há-de haver de que tu gostes.'
Este foi o primeiro. Fui eu que o escolhi. Tinha 7 anos e ainda hoje trago no coração a imagem da rosa amarela à janela - Eugénio de Andrade com ilustrações de Júlio Resende. Quem começa bem, raro se entorta e, no que toca a livros (só nisso!) muito me orgulho do percurso.
Eu hoje gosto muito de livros. Agora não posso comprar muitos porque a minha enfermeira querida me fez prometer que só comprava mais livros quando acabasse de ler 4 (específicos) dos 17 que tinha na mesinha de cabeceira, sob a pena de ter de lhe comprar 2 por cada que comprasse para mim - já levou com os 2 primeiros porque, no outro dia, não resisti ao 'o direito à preguiça,' mas estou em sérias negociações com ela. É que um dos 4 da lista é uma seca e eu entretanto já li outros 4 (fora da lista) e tenho esperança que a menção desta penosa situação faça o seu coração amolecer... (sim, Anabela?)
Enquanto cresci (sim, eu sei, pouco!) a minha mãe, que não nos dava tudo o que queríamos (o vício da música, por exemplo, saía-me da semanada), dizia que os livros eram os que eu quisesse. Ainda hoje, que lê menos - já não tem de se esconder no quarto de banho - regozija-se quando lhe conto as aventuras que ando a ler e quando me queixo do preço dos livros, ela ri-se e diz 'vá, eu pago esse, depois contas-me'.

Amanhã, ou noutro dia qualquer, quando me apetecer (é a coisa de isto ser o meu mural) falo-vos de outro livro. Se calhar não vou ter uma fotografia tão bonita. Gosto tanto de alguns livros que os faço circular em mãos nem sempre 'desinvejosas' e até este, depois de o passar à minha irmã mais nova e anos depois aos meus sobrinhos, encontrei-o de novo, talvez 30 anos depois, no consultório dentário da minha irmã mais velha (senhores, não só é um excelente sítio para tratar os dentes como tem excelente literatura na sala de espera) e só muito recentemente voltou à minha estante. Tenho, sinceramente, alguma esperança de que alguns destes 10 livros, às custas destes textos publicados, sem apontar dedos, voltem para mim. Se tal não for possível, não tem mal, foram bem emprestados.

Ai que me esqueci das nomeações... vai Ana! Conta-me (e já agora empresta-me) os 10 livros da tua vida, como fazemos tão frequentente, agora que deixaste a coisa de ser princesa!

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MACONDO, 'a aldeia de vinte casas de barro e taquara, construída à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos' onde aconteceram 100 anos de inacreditáveis acontecimentos, é o cenário do meu #2 livro da lista que dificilmente se ficará pelos 10.
O meu pai nunca soube que idade nós tínhamos e sacava livros da estante dos escritório com sede de nos ensinar tudo o que havia para ensinar, talvez achando que lhes sairíamos da mão demasiado cedo para nos sabermos proteger deste mundo estranho. Dava-nos os livros todos em catadupa. O meu pai ainda não sabe que idade eu tenho. E se em tempos me achou antecipadamente preparada para Gabrieis Garcia Marquez, Kunderas, Günter Grasses e outros, este ano ligou-me um dia à noite para pedir para eu não ler o 'quem governa o mundo?' do Noam Chomsky que me havia emprestado à tarde, com o argumento de que eu era demasiado nova para me desiludir com a estupidez do mundo. ()
Já para Macondo mandou-me quando eu tinha uns 13 anos porque nunca é demasiado cedo para se mergulhar no realismo mágico do Gabriel Garcia Marquez. Li os “Cem Anos de Solidão”, o “Amor em Tempos de Cólera”, a “Crónica de uma Morte Anunciada”, o “Outono do Patriarca”, “O general no seu labirinto”, “Do amor e outros demónios”, a “Aventura do Miguel Linttin” e os magníficos “Doze contos peregrinos”, tudo de rajada, sem perceber quase nada, todos uns a seguir aos outros, continuamente a aprender que o mundo é muito mais do que os olhos vêem. Talvez esteja errada e a memória me atraiçoe, mas penso que durante mais de um ano não li mais nenhum autor. Vivi meses a fio dentro do realismo mágico por dentro e à noite fechava os olhos e encontrava aventuras com gelo, mortalhas, mulheres loucas descabeladas, quartos assombrados, calor tropical e Arcádios e Josés Buendias de 5 gerações,  prostitutas e galeões e fugas pela janela e pelotões de fuzilamento e Úrsulas e amores impossíveis.
Se eu fosse correcta a jogar este jogo dir-vos-ia que o livro a celebrar hoje seria os “Doze Contos Peregrinos”, ou mais especificamente o conto 'Só vim fazer um telefonema', que me marcou para sempre. Eu ainda não era louca, tinha 13 ou 14 anos e ainda não devia ter medo de um dia acabar compulsivamente internada por engano num hospício, mas os Cem anos de Solidão haviam-me falado do destino e eu vivia dentro daqueles livros.
O meu pai diz que ninguém foge ao seu destino e quem tem de morrer de um tiro não morre de uma facada e eu só descanso porque sei que a minha tia Lena me há-de salvar, assinando que é engano, que eu não sou louca e que foi só um furo no pneu do carro numa noite de chuva.
A delícia trágica deste livro, as bruxas e as loucas e os feitiços apaixonantes, as mil aventuras que cabem naqueles 100 anos de um mundo estranho fizeram a delícia dos meus 13 anos e dos meus 36, quando me deleitei a relê-lo.
Hoje fui a casa dos meus pais e, como é hábito, antes de sair, dei um salto ao escritório. A minha irmã entrou passados uns minutos. Disse-lhe 'não sei dos cem anos de solidão' e ela com um sorriso ' também dos teus? também vinha à procura dele para o "jogo" enquanto fotografava mais dois livros. Depois de desistir de o procurar, peguei em 3 livros para pedir ao meu pai e ela disse 'Lena, estes livros não são do pai. Isto é uma biblioteca partilhada!, não podes levar livros assim!.' Ela tem razão. Os livros que ali estão são de nós todos. Pedi-os emprestados e um foi-me recusado 'ai Lena, não leves esse que acho que ainda não o acabei' e eu 'oh pai!, tens de ler! É um dos meus favoritos.'
Os cem anos de solidão fui eu que perdi. Prometo, Ana e pai, repô-lo em breve, que a nossa biblioteca não pode passar sem ele.

Hoje a nomeada é a Joana Moura Gomes, que tinha uma cábula para saber quem era quem nos cem anos de solidão para não se perder na deliciosa malha do mundo mágico do Gabriel Garcia Marquez.

Ps - mas é só porque a tia Lena não tem facebook e eu não posso mandar a bola para ela. Mas posso pedir aqui para ela nos dizer quais são os 10 livros da vida dela, porque aposto que todos gostávamos de saber.

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Os livros são das coisas mais bonitas do mundo e eu não sei se vou conseguir explicar porquê - às vezes é muito difícil simplificar evidências. ou qualquer outra coisa. explicar coisas é muito difícil. e os livros são objectos magníficos porque existem pessoas (os escritores) que se dispõem a oferecer um mundo que existe só dentro deles a um público que desconhecem e tirar coisas da nossa cabeça e fazê-las compreensíveis é uma arte.

Eu, com frequência, aborreço-me deste meu mundo. Viver, dizia o Pedro Paixão, todos os dias cansa, mas eu estou convencida que é porque todos os dias vestimos a mesma pele, a mesma farda, a rotina das mesmas ruas e de todas as outras coisas que em tempos já foram novidade e que agora são só banais, como os cantos dos dias que já conhecemos de cor.
Ler é ensinar aos olhos outros mundos, vestir outras peles, morar em casas diferentes, acordar no Japão, viajar à idade média, ser rainha ou pajem e velho e homem e mulher ou criança, ser perverso ou anjo, metódico ou suicida e voltar para casa a qualquer momento, com a alma cheia de experiências novas.
O 'Em Nome da Terra' foi, que me lembre, o primeiro livro que me roubou a mim própria. É um livro de uma sobriedade brutal acerca do fim da vida, da decadência do corpo, das rugas e peles, dos falhanços, do viver à espera do fim já só agarrado às memórias que também já falham e às saudades do corpo jovem e do corpo jovem e das peles firmes da mulher que já morreu.
É uma história de amor e começa assim 'Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever.', que é uma das frases que se me colou ao peito para sempre.
Aos 15 anos tive rugas, reumatismo, uma perna amputada, vivi num lar e senti toda a tristeza do fim de mim - dor de costas, de fígado, de alma, com uma lucidez incrível. É uma experiência estranha aprender-se a ser velho por debaixo de uma pele ainda tão esticada e num corpo com articulações lubrificadas.

Este livro matou o meu medo da morte e ensinou-me a amar a lentidão dos gestos dos velhos e disse-me que tinha a minha vida toda pela frente e que a devia encher de amor e histórias para ter com que me entreter quando chegar o dia em que espero o fim, deitada numa cama só com as minhas memórias.

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