domingo, 2 de novembro de 2025

O mapa e o território

 


“Aqueles que passaram demasiado tempo com o nariz colado aos mapas terão tendência para confundir o mapa com o território.”

Tropecei nesta frase de O Cisne Negro, de Nassim Nicholas Taleb, e ela ficou a ecoar-me. Pensei em alguns dos conflitos que vivi com a gestão do hospital onde trabalhei, sobretudo quando, por iniciativa própria, decidi conter despesas no serviço que dirigia, tentando tratar mais doentes com menos custos em medicamentos e meios complementares de diagnóstico. Era uma tentativa de eficiência, num tempo em que essa palavra soava estranha nos corredores da administração, como se o dinheiro fosse um bem inesgotável, bastando querer para poder.

Mais de uma década depois, o discurso mudo. Pela primeira vez, um governo português declara tornar a Saúde mais eficiente, combater o desperdício, corrigir os erros de gestão.

Mas o desperdício não nasce apenas da má organização. Brota também da pressão social exercida sobre os médicos e sobre as instituições. A Saúde é, nesse aspeto, irmã da Justiça: se queremos garantir que nenhum inocente é condenado, temos de aceitar que muitos culpados fiquem impunes.
Na Medicina, se se exige erro zero, os médicos defender-se-ão com baterias de exames e terapêuticas de eficácia duvidosa, para não poderem ser acusados de “não terem feito tudo o que era humanamente possível”. O preço é alto, e não apenas financeiro: multiplica-se a iatrogenia, o dano colateral do excesso de zelo.

Recordo-me de ter alertado um gestor para o impacto negativo que determinada decisão estava a ter sobre alguns doentes. Respondeu-me, sem hesitar, que o que o preocupava era “a floresta e não as árvores”. Noutra ocasião, pediram-me silêncio quando ousei questionar os custos da ineficiência.

Talvez alguma ineficiência seja inevitável, como o ruído que acompanha qualquer sistema vivo. Mas quando ela é evidente para quem está no terreno e invisível para quem observa de um gabinete, debruçado sobre relatórios e gráficos, é sinal de que confundimos o mapa com o território.

Mas, entre o querer fazer e o fazer, vai uma grande distância. Há que contar com os lóbis — os da indústria farmacêutica, os dos médicos, os dos enfermeiros, os dos psicólogos e ainda o da Assistência Social, que usa a muleta da Saúde para amparar o desamparo em que uma parte significativa da população cai quando a velhice ou a doença a atinge.
Ter resultados neste contexto é obra, porque é aimda maior a necessidade de não confundir o mapa com o território.

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