sábado, 20 de novembro de 2010

Consulta de 2ª feira


São 14:00h de segunda-feira, estou no Hospital desde as 08:00h de domingo e vou iniciar a Consulta Semanal. Fazer uma Urgência Extraordinária ao fim de semana, tem destas coisas. Consegui passar pelas brasas entre as três e as sete horas. Já me tinha prometido uma folga a seguir a um período de Urgência de 24 horas, mas, por uma razão ou por outra, acabo sempre por não adiar os doentes. … Mas para a frente, que hoje são dez.

Vou começar pelo terceiro da lista, que me parece fácil. Deve ser só para ver um exame e orientar. É como se fosse um “aquecimento” para o que vem a seguir. Tem uma doença cardíaca.
Chamo-o pelo intercomunicador, enquanto procuro o processo clínico no monte em cima da secretária. Não está! Lembro-me agora, que recentemente me interpelou, num corredor, por causa de uma cirurgia às hemorróides.

Entra acompanhado pela mulher e por uma criança pequena. Tem 48 anos e todos os vícios. É gordo, bebe, fuma, está quase surdo e desequilibrado por sequelas de uma cirurgia ao ouvido.
Pergunto-lhe pelo coração e ele responde-me das hemorróides. A mulher assume o papel de intérprete, enquanto a garota, depois de um curto período de retracção no meio das pernas dela, se aventura entre os móveis do consultório.
-Quantos anos tens?, pergunto-lhe, para a tentar fixar na área de influência dos adultos. Ela abre as palmas das mãos para mim. Dez? pergunto. Dois! Responde a mulher. É minha neta!
Procuro no computador alguma informação que possa suprir a falta do processo, mas falta o exame efectuado no exterior. Chamo a auxiliar para que o tente achar. A criança aproveita a distracção e, num gesto propositado, atira o que lhe está mais próximo da secretária para o chão .
-A criança devia ter ficado lá fora!, digo, depois de constatar que ela é incontrolável. -Mas com quem?, pergunta a mulher, que não tem mais de quarenta e cinco anos. -A minha filha, trabalha!
-A Sra. podia ter ficado com ela lá fora!, arrisco, e ela contrapõe-me que tem de acompanhar o marido para o ajudar na surdez e no equilíbrio.
-Dá-lhe a bola que ela cala-se!, impacienta-se também o Sr. Aniceto, e, no instante seguinte, uma bola rola na sala com a criança no seu encalço.

Interrompo a consulta. -Por favor! Assim não dá!... Vão esperar lá fora, que eu chamo-os, de novo, quando chegar o processo e os exames!

Atendo os cinco doentes seguintes, até me vir a auxiliar com a informação de que o processo pedido aquando da cirurgia, não está arquivado, e, até lá, é impossível encontrá-lo, mas que o exame ao coração que fez no Porto, foi entregue ao doente na altura da alta.

Chamo-os de novo. Estão impacientes. Ela vocifera, que ninguém lhe disse para trazer o exame. A criança chora, e ele procura nos bolsos do casaco o papel com o nome dos medicamentos, para que eu lhos prescreva, pois já acabaram. Marco-lhe consulta para a semana seguinte, enquanto ele espalma à minha frente os recortes das caixas dos medicamentos.
Rapidamente identifico três que pertencem ao mesmo grupo farmacológico.
-O Sr. Aniceto não pode estar a tomar estes medicamentos!?, questiono a mulher, temendo a toxicidade cumulativa.
- Não Sr. Dr.!, responde, enquanto se levanta. -Ele só toma o Nebilet. O Carvedilol é para pagar na farmácia, que o temos em dívida, e o Concor é para mim!

São quase dezassete horas e ainda me faltam quatro doentes. Respiro fundo …
História de A.S.

1 comentário:

Anónimo disse...

Isto de ser médico, não é pêra doce.
Sobretudo quando se é médico a sério.