segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Falar

Não fui bom aluno a Português. Não li o que devia nos anos do Liceu, e os Lusíadas e o Aquilino foram areia demais para a minha Toyota de caixa aberta.
Lembro-me dos caderninhos, com uma coluna para as palavras difíceis e outra para o seu significado e dos dicionários e da Enciclopédia Luso-Brasileira a ocuparem lugar de destaque na casa de meus pais. Nesse tempo, em que o audiovisual era uma miragem e a rádio “só dava fado e radionovelas”, não havia refeição em que os livros não saltassem para a mesa para pôr termo a qualquer discurso mais confuso, pois o que se afirmava não podia conter ambiguidades e tinha de ter suporte.
Falava-se mais de Ciência, mas, mesmo quando a Filosofia ou a História vinham à baila, havia necessidade de comprovar os porquês, e neste contexto, riamos com uma pequena história da família:

Uma comunidade religiosa, tinha por regra nunca mentir. Um dia, quando um dos seus frades passeava no exterior do convento, foi surpreendido por um homem a correr esbaforido que, antes de se esconder no meio de uns arbustos na sua frente, o ameaçou dizendo: “Se me denuncias, dou-te um tiro que te mato!”
Minutos depois surgiram os perseguidores, que lhe perguntam: “Viste passar por aqui um tipo a fugir?”, ao que o frade, de braços cruzados no hábito, respondeu sereno: “Por aqui não passou!”, permitindo assim a fuga ao fugitivo.
O facto foi casualmente observado por um seu “irmão”, que, de imediato, o confrontou, chamando-lhe a atenção para a mentira e para o incumprimento da regra, ao que o frade respondeu, enquanto abria ligeiramente os braços, mostrando que apontava com o indicador direito para dentro da manga esquerda. “Eu só disse, que ele por aqui, não passou. E como tal, não menti!”

“Espertezas” destas não eram aceites. As palavras tinham significados precisos e eu entendia-lhes a utilidade. Mais tarde, comecei a gostar da sonoridade de algumas (terebrátula, ornitorrinco, parcimonioso, baldaquino, parafernália, ...), e brincava com elas às voltas entre a língua e o palato antes de as deixar esgueirar pelos lábios e, quando aprendi inglês, “shrapnel” deu-me um gosto igual ao dos nossos emigrantes franceses a soprar o “Obadidan,… puff!”. Também entendi que há palavras noutras línguas que não são traduzíveis, por não ter havido necessidade delas, como é o caso de "accountability" que implica uma definição de mais de vinte palavras em português - "significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por que faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir".

Rodrigues Lobo marcou-me com o seu: Fermoso Tejo meu, Quão diferente te vejo e vi, Me vês agora e viste, …. Passei a gostar de palavras em sequências difíceis e cheguei a pensar que as musas me protegiam, até ao dia em que o fruto de um turbilhão de sentimentos da minha verve, para tentar impressionar uma adolescente de caracóis em cachos caídos pelos ombros, me ter sido devolvido sem resposta. 
Já adulto, Torga deu-me a mão para os livros, mostrando-me a tecedura da forma com o conteúdo, com as palavras certas a induzir os mais diversos sentimentos. Eficiente a separar desejos de factos, irrevogável a não permitir voltar atrás, incompatibilidades a impedir que quem se quer pelos pobres possa viver sumptuosamente ou que um moralista enriqueça em funções políticas.

Actualmente, com o poder a usar as palavras sem a significância dos Dicionários, a falar de "vitórias" onde se vêem roubos, compadrios, humores e contingências, corre-se o risco de que o mesmo mal grasse na sociedade e passemos todos a navegar à vista, naquela perspectiva tola  de que  – “Se é para a desgraça!?, … É para a desgraça!” e caminhemos inexoravelmente para o abismo.

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